Nenhum navegador se tornou tão lendário, empolgou tanto a mente
juvenil e teve em torno de si tanta estória quanto Isnard Dransi.
Ora retratado como pirata, ora como heróico inimigo deles, teve sempre
a imagem de genial embusteiro, cheio de estratagema e blefador inspirado.
A Virgélia, esse continental arquipélago, denso emaranhado de
ilha no centro do oceano Profundo, é o cenário de sua aventura.
Suas enigmáticas rotas sempre acompanhadas de descrição
e relato inverossímil encantaram milhões de leitores.
E o tesouro.
Comerciante hábil, salteador feroz, entesourador dissimulado, Isnard
Dransi, a raposa do mar, teria seu tesouro enterrado nalguma das inumeráveis
ilhas da Virgélia.
Conta a lenda que Isnard Dransi descobriu a Virgélia antes dos descobridores
navegantes nerlandeses. Em seu castelo na ilha Fulda recebeu o velho sábio
Lisançõ, refugiado da Eródia, que passava grande parte
do dia estudando as ondas do mar e, eventualmente, as noites também.
Comparando com os estudos que fizera antes em seu país, fez uma descoberta
que revelou a Isnard e pediu que guardasse em sua biblioteca as anotações.
Insignificantes perturbações da onda marinha indicavam a existência
duma massa de terra muito longe no oceano. Algo análogo à perturbação
da órbita dum planeta pela proximidade duma massa significativa, indicando
a existência dum planeta a descobrir.
Isnard viu, estupefato, Lisançõ colocar engenhocas na arrebentação,
pequenas cadeiras de mola, que registravam essas insignificantes variações
do comportamento ondular. Lisançõ chegava a ficar de olhos esbugalhados
com tanta empolgação, o que quer dizer que sua teoria se confirmava.
Estória que cai no domínio da lenda, já que não
há registro de ter Lisançõ se refugiado na Nerlândia.
E mais: Isnard Dransi é um pseudônimo ou pura invenção,
já que não existe comprovação da existência
dessa personagem.
Em que ilha estaria o tesouro de Isnard Dransi? Em seis ilhas, segundo o historiador
delinglês Loroaldo Estiral.
Numa grande embocadura da grande (grande pro padrão da Virgélia)
ilha Isdra (primeira sílaba de Isnard e de Dransi)
fica um arquipélago de pequenas ilhas muito juntas, formado por cerca
de vinte ilhas, as ilhas Mariauá. As únicas ilhas que começam
com as letras que formam o nome Isnard (ou Dransi, dá no
mesmo, posto que o par Dransi e Isnard é um palíndromo)
se distribuem numa sequência um pouco costurada ligando um extremo
a outro. Essas seis ilhas se estendem numa faixa nordeste ou sudoeste. Pra percorrer
a faixa nordeste começamos pela ilha Iauai (a extremo sudoeste).
A seguinte é a ilha Sinimara, depois a menor delas, Nanica.
Em seguida Abujamara, Rancatanga e, enfim, Donescal (a
extremo nordeste). Dransi é Isnard invertido, portando
Isnard Dransi é o código que indica as ilhas tanto na ida como
na volta!
Loroaldo visitou aquelas paragens pra completar sua teoria e o espantou o tanto
que sua aventurada tese parecia ser exata. Estudou detalhadamente os locais
que tinham vestígio de ter ali sido enterrado algum tesouro e indícios
vários de atividade de navegadores esquivos. A vegetação
é luxuriante e a topografia acidentada, o que torna as ilhas muito adequadas
a camuflagem de pequena comunidade de homens sempre alertas.
Logo que publicou seus estudos um cineasta se interessou em fazer um filme baseado
no livro. Loroaldo aceitou a proposta e deixou o cineasta livremente fazer o
filme, desde que pusesse como subtítulo baseado... O filme seria
rodado no local, pois o cenário em geral sairia mais barato, na ocasião,
filmado no próprio local, que forjado. Além do mais o cineasta
tinha pretensão de semidocumentário. Loroaldo é um historiador
mas também gosta muito de ficção.
A ficção, disse ele, é uma forma importante de se inspirar
pra solucionar a realidade. Os que desprezam a ficção são
tão estúpidos quanto os que desprezam a realidade. Afinal a história
está recheada de ficção assim como muita ficção
é baseada em história.
Acompanhou atentamente o desenrolar da filmagem. O ator Maurício Destemores
fez o papel de Isnard Dransi, que chegara à ilha Isdra após uma
estupenda presa. Acabaram de pilhar o famoso navio maltino Tiberinus com uma
carga de incalculável tesouro em pedra, joia, moeda e ouro bruto.
O navio que misteriosamente teria afundado na proximidade da Virgélia,
segundo o filme foi pilhado por Isnard Dransi.
Pra se precaver Isnard Dransi resolveu esconder o tesouro em partes. Escolheu,
então, as seis ilhas que tinham nomes cujas iniciais coincidiam com seu
nome. Dividiu o tesouro em seis partes e foi enterrar cada uma numa dessas ilhas.
Em cada uma das seis missões levou apenas um de seus homens de confiança.
Assim, tendo como referência seu nome, poderia percorrer a sequência
insular onde estavam as partes do tesouro, quer começasse da primeira
quer da última.
A filmagem começou exatamente na data que o livro indica como a que seria
a da chegada dos piratas à ilha Isdra. Os veleiros se aproximavam da
Virgélia após a pilhagem quando uma tempestade repentina se formou
e escureceu o céu. Na furiosa ventania subsequente tanto os navios
do filme quanto os barcos da equipe de produção foram arrastados
à costa imediata da ilha Isdra. Ali altos montes, quase montanhas, serviam
de barreira aos ventos e as naves se viram repentinamente protegidas da tormenta.
O fato espantou Loroaldo. O acidente poderia ter sucedido a Isnard Dransi, pensou.
E de fato. Pesquisando minuciosamente encontrou vestígios de ter sido
aquele recanto, antes de esconderijo, um refúgio de tormentas tão
comuns naquela área. Numa grande pedra batida por onda na maré
cheia encontrou uma inscrição em baixo relevo: Aqui agradecemos
à deusa Britt. Britt, a deusa da tempestade!
Enquanto o filme prosseguia com cenas da chegada, Loroaldo foi procurar o local
onde poderiam ter dormido os piratas. Num barranco uma pequena caverna cuja
entrada estava escondida por cipó que descia do alto como se longa melena
de meiga donzela, acessível por uma escada espiral cavada no chão
e agora coberta de grama. A uns 25m diante da caverna passava um pequeno rio
de forte e sonora corredeira pedregosa. Na caverna um arqueólogo imediatamente
reconheceria indiscutível vestígio de presença de acampamento
humano arqueologicamente recente, de há séculos.
Num compartimento contíguo a terra revolvida evidenciava algo que fora
enterrado e poderia ainda ali estar. Tesouro não poderia ser, pois jamais
se enterraria tesouro em lugar tão óbvio. A equipe desenterrou
ali garrafas de aguardente muito bem lacradas.
Na terceira noite, descansando da filmagem, a equipe jantou, dançou e
bebeu numa confraternização à luz de vela e lampião.
Nessa ocasião o ator principal, Maurício Destemores, depois duns
tragos a mais, num acesso de empolgação cênica, desembainhou
a espada e a brandindo de ponta ao alto:
- Rápido! Aqui não é seguro. Fujamos pela cachoeira!
O que era aquilo? Delírio? Chalaça? Exercício de ator?
Maurício não estava tomado pela personagem, nem lera aquilo nalgum
lugar. Explicara que aquilo lhe adviera como uma súbita inspiração.
Loroaldo nada sabia da cachoeira. Havia uma a uns 100m à direita da caverna
mas nada se sabia sobre algo de especial que ela desempenhasse na epopeia
dos piratas.
A cachoeira escondia um longo e estreito túnel que parecia ser uma nascente
do rio e desembocava ali, junto à cachoeira. Molhando os pés ao
passar naquela água rasa, numa penumbra silenciosa e com forte cheiro
de limo, se chegava a uma cerrada mata que seria o refúgio seguro no
caso do esconderijo ser descoberto. Mas tal parece nunca ter ocorrido.
Nas noites seguintes o evento parecia ter se intensificado. Maurício
se transmutara de ator em autor e os outros atores o seguiam numa encenação
pirata, que fugia, divergia totalmente do roteiro. Maurício parecia tomado
duma louca inspiração, o roteiro original lhe parecia muito sem
graça se comparado ao que brotava da imaginação. Mas não
pensai que era a personagem que tomava conta dele, que estava possuído,
em delírio. Não. Quando o cineasta interrompia o delírio
tudo voltava ao normal. Maurício e os outros atores passaram a se divertir
nas horas de folga dando vazão a esse doce delírio. E o cineasta,
tão experiente, que já aproveitara deixar filmando a tempestade,
parecia, também, fascinado em filmar esse filme dentro do filme, seja
pra documentário de bastidor, outro filme ou nova cena dentro do filme.
Maurício, o melhor ator do mundo, conseguira em tal intensidade vestir
a pele da personagem que estava até mesmo proporcionando revelações
autênticas sobre fatos desconhecidos por todos e conhecidos apenas por
Isnard Dransi!
Dizia Maurício que seu velho hábito de relaxação
e meditação é que o impedia de se deixar dominar totalmente
pela personagem. Tantos atores são vítimas dessa caracterização
demasiado intensa. Tantos atores que acabam tendo de fato os sintomas que representavam
nalgum filme, por se acidentar tal qual a personagem que representavam, por
acabar seus dias num asilo tendo assumido integralmente a personagem que fora
tão marcante em sua carreira. Até morrer ao representar alguma
cena de morto! São os mistérios de nossa mente, uma faceta fantástica
da realidade, a força da autossugestão ou o que seja.
Só uma coisa atemorizava Loroaldo: Acontecer Maurício descobrir
alguma parte do tesouro enterrado. O que adviria então? Lá-se-sabe
se a equipe não se mataria, cada um tentando eliminar os outros e ter
pra si a exclusiva posse do tesouro?! Todo conto de tesouro mostra esse evento
inevitável: Quem obedece a ordem ou ajuda a enterrar é sempre
eliminado, sejam quantos forem. Ninguém pode prever a reação
das pessoas ante tão fabulosa descoberta. Por sorte é quase certo
que o tesouro todo foi recuperado por Isnard Dransi ou quem quer que seja, pois
tudo indica que houve um resgate completo.
O filme foi um sucesso. Ainda mais que ao mesmo tempo foi filmada a história
do filme, com bastidor e tudo. Dois filmes num.
O que me intrigou foi a repentina parada de Maurício Destemor de sua
louca encenação em intervalo de filmagem. Abandonou totalmente
o ofício de ator e virou autor. Mas suas peças não me fascinam.
Me fascina, sim, o que deve ter escrito sobre Isnard Dransi. Sim, tenho certeza
que escrevera uma peça continuando a encenação de interfilmagem.
Não me espantaria se Maurício Destemor repentinamente ficasse
fabulosamente rico.
A meu ver, Maurício se converterá num mistério, numa personagem
enigmática e fascinante não menos que Isnard Dransi.