A Garganta da Serpente
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Isnard Dransi

(Mário Jorge Lailla Vargas)

Nenhum navegador se tornou tão lendário, empolgou tanto a mente juvenil e teve em torno de si tanta estória quanto Isnard Dransi.

Ora retratado como pirata, ora como heróico inimigo deles, teve sempre a imagem de genial embusteiro, cheio de estratagema e blefador inspirado.

A Virgélia, esse continental arquipélago, denso emaranhado de ilha no centro do oceano Profundo, é o cenário de sua aventura. Suas enigmáticas rotas sempre acompanhadas de descrição e relato inverossímil encantaram milhões de leitores.

E o tesouro.

Comerciante hábil, salteador feroz, entesourador dissimulado, Isnard Dransi, a raposa do mar, teria seu tesouro enterrado nalguma das inumeráveis ilhas da Virgélia.

Conta a lenda que Isnard Dransi descobriu a Virgélia antes dos descobridores navegantes nerlandeses. Em seu castelo na ilha Fulda recebeu o velho sábio Lisançõ, refugiado da Eródia, que passava grande parte do dia estudando as ondas do mar e, eventualmente, as noites também. Comparando com os estudos que fizera antes em seu país, fez uma descoberta que revelou a Isnard e pediu que guardasse em sua biblioteca as anotações.

Insignificantes perturbações da onda marinha indicavam a existência duma massa de terra muito longe no oceano. Algo análogo à perturbação da órbita dum planeta pela proximidade duma massa significativa, indicando a existência dum planeta a descobrir.

Isnard viu, estupefato, Lisançõ colocar engenhocas na arrebentação, pequenas cadeiras de mola, que registravam essas insignificantes variações do comportamento ondular. Lisançõ chegava a ficar de olhos esbugalhados com tanta empolgação, o que quer dizer que sua teoria se confirmava.

Estória que cai no domínio da lenda, já que não há registro de ter Lisançõ se refugiado na Nerlândia. E mais: Isnard Dransi é um pseudônimo ou pura invenção, já que não existe comprovação da existência dessa personagem.

Em que ilha estaria o tesouro de Isnard Dransi? Em seis ilhas, segundo o historiador delinglês Loroaldo Estiral.

Numa grande embocadura da grande (grande pro padrão da Virgélia) ilha Isdra (primeira sílaba de Isnard e de Dransi) fica um arquipélago de pequenas ilhas muito juntas, formado por cerca de vinte ilhas, as ilhas Mariauá. As únicas ilhas que começam com as letras que formam o nome Isnard (ou Dransi, dá no mesmo, posto que o par Dransi e Isnard é um palíndromo) se distribuem numa sequência um pouco costurada ligando um extremo a outro. Essas seis ilhas se estendem numa faixa nordeste ou sudoeste. Pra percorrer a faixa nordeste começamos pela ilha Iauai (a extremo sudoeste). A seguinte é a ilha Sinimara, depois a menor delas, Nanica. Em seguida Abujamara, Rancatanga e, enfim, Donescal (a extremo nordeste). Dransi é Isnard invertido, portando Isnard Dransi é o código que indica as ilhas tanto na ida como na volta!

Loroaldo visitou aquelas paragens pra completar sua teoria e o espantou o tanto que sua aventurada tese parecia ser exata. Estudou detalhadamente os locais que tinham vestígio de ter ali sido enterrado algum tesouro e indícios vários de atividade de navegadores esquivos. A vegetação é luxuriante e a topografia acidentada, o que torna as ilhas muito adequadas a camuflagem de pequena comunidade de homens sempre alertas.

Logo que publicou seus estudos um cineasta se interessou em fazer um filme baseado no livro. Loroaldo aceitou a proposta e deixou o cineasta livremente fazer o filme, desde que pusesse como subtítulo baseado... O filme seria rodado no local, pois o cenário em geral sairia mais barato, na ocasião, filmado no próprio local, que forjado. Além do mais o cineasta tinha pretensão de semidocumentário. Loroaldo é um historiador mas também gosta muito de ficção.

A ficção, disse ele, é uma forma importante de se inspirar pra solucionar a realidade. Os que desprezam a ficção são tão estúpidos quanto os que desprezam a realidade. Afinal a história está recheada de ficção assim como muita ficção é baseada em história.

Acompanhou atentamente o desenrolar da filmagem. O ator Maurício Destemores fez o papel de Isnard Dransi, que chegara à ilha Isdra após uma estupenda presa. Acabaram de pilhar o famoso navio maltino Tiberinus com uma carga de incalculável tesouro em pedra, joia, moeda e ouro bruto. O navio que misteriosamente teria afundado na proximidade da Virgélia, segundo o filme foi pilhado por Isnard Dransi.

Pra se precaver Isnard Dransi resolveu esconder o tesouro em partes. Escolheu, então, as seis ilhas que tinham nomes cujas iniciais coincidiam com seu nome. Dividiu o tesouro em seis partes e foi enterrar cada uma numa dessas ilhas. Em cada uma das seis missões levou apenas um de seus homens de confiança. Assim, tendo como referência seu nome, poderia percorrer a sequência insular onde estavam as partes do tesouro, quer começasse da primeira quer da última.

A filmagem começou exatamente na data que o livro indica como a que seria a da chegada dos piratas à ilha Isdra. Os veleiros se aproximavam da Virgélia após a pilhagem quando uma tempestade repentina se formou e escureceu o céu. Na furiosa ventania subsequente tanto os navios do filme quanto os barcos da equipe de produção foram arrastados à costa imediata da ilha Isdra. Ali altos montes, quase montanhas, serviam de barreira aos ventos e as naves se viram repentinamente protegidas da tormenta. O fato espantou Loroaldo. O acidente poderia ter sucedido a Isnard Dransi, pensou. E de fato. Pesquisando minuciosamente encontrou vestígios de ter sido aquele recanto, antes de esconderijo, um refúgio de tormentas tão comuns naquela área. Numa grande pedra batida por onda na maré cheia encontrou uma inscrição em baixo relevo: Aqui agradecemos à deusa Britt. Britt, a deusa da tempestade!

Enquanto o filme prosseguia com cenas da chegada, Loroaldo foi procurar o local onde poderiam ter dormido os piratas. Num barranco uma pequena caverna cuja entrada estava escondida por cipó que descia do alto como se longa melena de meiga donzela, acessível por uma escada espiral cavada no chão e agora coberta de grama. A uns 25m diante da caverna passava um pequeno rio de forte e sonora corredeira pedregosa. Na caverna um arqueólogo imediatamente reconheceria indiscutível vestígio de presença de acampamento humano arqueologicamente recente, de há séculos.

Num compartimento contíguo a terra revolvida evidenciava algo que fora enterrado e poderia ainda ali estar. Tesouro não poderia ser, pois jamais se enterraria tesouro em lugar tão óbvio. A equipe desenterrou ali garrafas de aguardente muito bem lacradas.

Na terceira noite, descansando da filmagem, a equipe jantou, dançou e bebeu numa confraternização à luz de vela e lampião. Nessa ocasião o ator principal, Maurício Destemores, depois duns tragos a mais, num acesso de empolgação cênica, desembainhou a espada e a brandindo de ponta ao alto:

- Rápido! Aqui não é seguro. Fujamos pela cachoeira!

O que era aquilo? Delírio? Chalaça? Exercício de ator? Maurício não estava tomado pela personagem, nem lera aquilo nalgum lugar. Explicara que aquilo lhe adviera como uma súbita inspiração.

Loroaldo nada sabia da cachoeira. Havia uma a uns 100m à direita da caverna mas nada se sabia sobre algo de especial que ela desempenhasse na epopeia dos piratas.

A cachoeira escondia um longo e estreito túnel que parecia ser uma nascente do rio e desembocava ali, junto à cachoeira. Molhando os pés ao passar naquela água rasa, numa penumbra silenciosa e com forte cheiro de limo, se chegava a uma cerrada mata que seria o refúgio seguro no caso do esconderijo ser descoberto. Mas tal parece nunca ter ocorrido.

Nas noites seguintes o evento parecia ter se intensificado. Maurício se transmutara de ator em autor e os outros atores o seguiam numa encenação pirata, que fugia, divergia totalmente do roteiro. Maurício parecia tomado duma louca inspiração, o roteiro original lhe parecia muito sem graça se comparado ao que brotava da imaginação. Mas não pensai que era a personagem que tomava conta dele, que estava possuído, em delírio. Não. Quando o cineasta interrompia o delírio tudo voltava ao normal. Maurício e os outros atores passaram a se divertir nas horas de folga dando vazão a esse doce delírio. E o cineasta, tão experiente, que já aproveitara deixar filmando a tempestade, parecia, também, fascinado em filmar esse filme dentro do filme, seja pra documentário de bastidor, outro filme ou nova cena dentro do filme.

Maurício, o melhor ator do mundo, conseguira em tal intensidade vestir a pele da personagem que estava até mesmo proporcionando revelações autênticas sobre fatos desconhecidos por todos e conhecidos apenas por Isnard Dransi!

Dizia Maurício que seu velho hábito de relaxação e meditação é que o impedia de se deixar dominar totalmente pela personagem. Tantos atores são vítimas dessa caracterização demasiado intensa. Tantos atores que acabam tendo de fato os sintomas que representavam nalgum filme, por se acidentar tal qual a personagem que representavam, por acabar seus dias num asilo tendo assumido integralmente a personagem que fora tão marcante em sua carreira. Até morrer ao representar alguma cena de morto! São os mistérios de nossa mente, uma faceta fantástica da realidade, a força da autossugestão ou o que seja.

Só uma coisa atemorizava Loroaldo: Acontecer Maurício descobrir alguma parte do tesouro enterrado. O que adviria então? Lá-se-sabe se a equipe não se mataria, cada um tentando eliminar os outros e ter pra si a exclusiva posse do tesouro?! Todo conto de tesouro mostra esse evento inevitável: Quem obedece a ordem ou ajuda a enterrar é sempre eliminado, sejam quantos forem. Ninguém pode prever a reação das pessoas ante tão fabulosa descoberta. Por sorte é quase certo que o tesouro todo foi recuperado por Isnard Dransi ou quem quer que seja, pois tudo indica que houve um resgate completo.

O filme foi um sucesso. Ainda mais que ao mesmo tempo foi filmada a história do filme, com bastidor e tudo. Dois filmes num.

O que me intrigou foi a repentina parada de Maurício Destemor de sua louca encenação em intervalo de filmagem. Abandonou totalmente o ofício de ator e virou autor. Mas suas peças não me fascinam. Me fascina, sim, o que deve ter escrito sobre Isnard Dransi. Sim, tenho certeza que escrevera uma peça continuando a encenação de interfilmagem. Não me espantaria se Maurício Destemor repentinamente ficasse fabulosamente rico.

A meu ver, Maurício se converterá num mistério, numa personagem enigmática e fascinante não menos que Isnard Dransi.

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