A Garganta da Serpente
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O homem que queria ser Deus

(Mário Jorge Lailla Vargas)

(A Jacques Bergier)

Foi assim que perdi a aposta mais louca que se poderia imaginar.

Numa taberna eu, o cientista Delmar e um amigo seu, Bertoldo, bebíamos à saúde do primeiro filho de Bertoldo. Gole atrás outro o assunto foi fundo na filosofia e conceitos científicos avançados. Discos voadores, Triângulo das Bermudas, monstros lacustres, antropóides misteriosos, fantasmas. Mal discutíamos o efeito Hutchinson quando discutimos religião. Bertoldo era o ateu típico, bem ao estilo comunista. Pra ele o conceito de Deus era a maior estupidez da humanidade, só concebível a mentes pueris.

- Só mesmo um ser tão estúpido e sentimentalóide como ser humano pra acreditar em coisa tão estapafúrdia. Crer em coisas tão estapafúrdias em tempo antigo, onde não se sabia que o Sol é uma estrela, imperando a total ignorância, ou no campo, sem livros nem meio de comunicação. Mas pessoas instruídas, universitárias, cheias de informação, com internete, televisão, celular, crer em coisas tão estapafúrdias e pueris não cabe em minha cabeça!

- Ora, ora... - Interrompeu, serenamente, Delmar - Será Deus uma fantasia, simplesmente? Não foi dito que o universo é mais estranho do que podemos imaginar?

- Por misericórdia!, Delmar. Não digas que és um daqueles cientistas bobocas que perscrutam as galáxias tentando desvendar a mente de Deus!

- Pensemos bem: Já não foi dito que o universo não é um grande mecanismo e sim um grande pensamento? Que sua estrutura não é mecânica e sim psíquica? Lembremos que a quantidade de estrela na galáxia é muito maior que a quantidade de neurônio no cérebro humano.

- Não! Não! Religião é apenas manipulação da massa.

- Se entendi bem, - interrompi - esse deus da religião, como o vampiro, o fantasma, a bruxa, não é que não exista mas é, apenas, um estereótipo?

- Sim! Esse deus deturpado pode existir, de fato, mas não é um velhinho de barba branca...

- É alguma outra coisa!

Então os olhos de Delmar brilharam. Levantou o copo meio-cheio de vinho branco, olhando através dele como uma lente.

- Amigos. Não estou louco nem bêbado mas afirmo solenemente: Eu, Delmar Durães Mercante, posso me converter em Deus!

Blasfêmia das blasfêmias!, pensará o leitor. Confirmamos, solenemente, nossa aposta, certos da vitória. Com certeza absoluta de que Delmar, após a ressaca no dia seguinte, ficaria arrependido e muito envergonhado, chegando a fingir não se lembrar ter feito a imprudente aposta.

Pra nosso espanto ficou ainda mais arrogante em sua posição. Mantinha e confirmava a aposta. Seu semblante irradiava uma autoconfiança a toda prova. Senti um calafrio, um mórbido pressentimento de que ele tinha uma carta na manga.

O grande laboratório de física de alta energia no qual Delmar trabalhava tinha, certamente, algo a ver com o que afirmava. Bertoldo dizia em tom de mofa:

- Oras bolas! Na certa nos apresentará alguma descoberta na física de micropartícula e tentará nos convencer armado dalguma teoria parapsicológica. Tipo aqueles religiosos que veem em qualquer evento fora do comum a prova da existência de Deus.

Após passarmos por todas as precauções de segurança que se possa imaginar fomos recebidos por Delmar. As galerias imensas lembravam as do seriado O túnel do tempo ou o filme Planeta proibido. Mas em tudo predominava o espaço vazio. Não havia tanta parafernália de máquina como eu imaginava.

Delmar nos contou como nasceu a ideia do projeto Teocósmico.

Um psiquiatra amigo meu me contou o caso do beato Magu. Era um religioso ultrafanático obsedado na ideia de se encontrar com Deus, pessoalmente, mas vivo, e voltar. Se empenhou, então, em entrar em êxtase pra sua alma vagar ao Céu a encontro de Deus. Foi a uma caverna de difícil acesso pra executar seu plano.

Então, bem a estilo de Buda, sua alma cresceu, cresceu de modo a abarcar todo o universo, que ficou, em relação a ela, tão pequeno quanto um átomo dentro do nosso. Assim entrou num universo maior, onde o nosso é menor que a menor das partículas e mais efêmero que um piscar de olhos.

Seu desejo intenso de se encontrar com Deus o pôs diante dum homem comum, um cientista que criou, numa garrafa magnética, um microuniverso em condição ideal, onde o tempo fugaz foi congelado, constituindo um fantástico campo de experimento científico.

Perscrutou intimamente a alma desse ser e viu um homem sovina, que batia na mulher, que jogava sujo pra vencer a concorrência com seus colegas e que não se importava com a dor nas criaturas que lhe serviam de cobaia. Um homem cruel, pusilânime. Enfim, apenas um homem.

Foi com o minucioso relato desse beato que desenvolvemos nossa teoria do cientista-deus. Assim é que, em cada momento histórico, um emissário é enviado, disfarçado, pra atuar em determinado lugar. Um intermundo induzido é um campo pra testar todas as opções possíveis de destino do mundo. Verdadeiro computador pra testar todas as combinações de eventos históricos. É esse o sentido de O que está encima é como o que está embaixo. Assim, manipulando cada pequena variação de destino, usando a teoria da consequência, podemos agir com precisão e dominar o mundo.

Delmar nos olhou altaneiro, caminhando de lado e dando volta como um autêntico cientista-louco dos filmes de horror.

- Foi assim. Graças ao místico beato, que foi, sem querer, um espião industrial, desenvolvemos um projeto igual. Do extermundo trouxemos o segredo pra criar nosso intermundo. Naquela redoma magnética: Ali posso acender e apagar as estrelas, criar e destruir mundos. Eis nosso primeiro microuniverso em relação ao qual sou Deus!

Arrepiamos. Sabemos muito bem o destino de beato Magu. Foi internado como louco, longe de qualquer polêmica e no mais profundo segredo. Então era verdade o rumor dos pesquisadores marginais: Magu foi internado porque sabia demais!

Percebemos que não sairíamos impunemente dali.

- E o que farás conosco? Pirata que ajudou a enterrar o tesouro, tanto quanto operário que trabalhou na ereção da pirâmide: Queima de arquivo! Não somos tão ingênuos a ponto de crer que nos deixarás livres após conhecer tão alto segredo.

- Calma, meus amigos. Não vos lembrai de nossos debates, na taberna, sobre viagem no tempo? Que nada mais é que um deslocamento lateral a uma das miríades de universos com realidade com pequena variação com relação ao nosso? Façamos como Leonardo da Vinci.

- O que tem Leonardo?

- Alguém como nós, com boa cultura geral e algumas especialidades, somos apenas cientistas em nosso mundo. Não seria mais interessante irmos a uma época onde nosso conhecimento seria tido como assombroso? Não seríamos tratados como deuses? Basta escolher uma época e lugar com uma boa média: Não tão evoluído onde somos apenas mais um, nem tão intolerante onde seríamos queimados como bruxos. Foi o que fez Leonardo. E vós: O que quereis? Viver como senhores de escravo? Ser rei numa ilha polinésia no século 14? Ser um papa medieval? Um sultão num harém? Inventar a roda e o fogo entre trogloditas? Basta escolher. Ou que se faça Minha vontade!...

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