A Garganta da Serpente
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Numa madrugada de Santo Antonio

(Maria José Zanini Tauil)

O relógio parecia andar para trás. Sandrinha cochilava na sala. Estava tonta de sono e tinha que acordar às cinco para ir trabalhar. A mulher do rádio disse que aquela simpatia era infalível. Encontraria um namorado, um marido, ou amante. Tinha trinta anos, não aguentava mais dividir o quarto com as cinco irmãs, ter o guarda-roupa invadido frequentemente e depois encontrar calcinhas e blusas sujas, emboladas nas gavetas.

Era dia dos namorados. Quantas amigas saíram da fábrica abraçadinhas com os namorados. Só ela, ali, sozinha. Há dois anos não beijava ninguém, quer dizer...beijou o Flavinho no baile da vila e também o Jailso na festa da igreja. O Jorge, não valeu. Foi beijo à força. Até cuspiu depois.

Comprou uma faca novinha. À meia-noite, iria cravá-la na bananeira. Quem ensinou a simpatia garantiu que a nódoa da árvore formaria um desenho na lâmina, que deveria ser decifrado, pois daria indícios do seu prometido.

Por fim, meia-noite. Pé ante pé, ela atravessou o quintal às escuras. Tropeçou num alçapão e quase caiu. Continuou meio amedrontada. A bananeira ficava na fronteira do quintal do vizinho, separado por uma minúscula cerca , que não servia de obstáculo a ninguém, somente estabelecia limites. O mato estava alto, há muito tempo aquele terreno não recebia uma boa limpeza. "Devia ter trazido uma lanterna...se tiver cobra? Me ajuda Santo Antonio! Que medo!"

Aproximou-se da bananeira e com toda a sua força, desfechou-lhe a facada. Era capaz de jurar que a coitada gemeu. Correu para casa e por pouco, não leva uma paulada na cabeça. O pai ouviu barulho no quintal e correu para pegar o gatuno. Difícil foi explicar o que fazia ali, àquela hora. A luz do vizinho estava acesa e outra lâmpada se acendeu na cabeça do pai. Aquele homem morava só, era viúvo e não tinha filhos.Seria capaz de jurar que Sandrinha veio de lá.Ela insistiu que foi buscar boldo para um chá, mas não convenceu.Contar a verdade? Nunca! Debochariam dela pelo resto da vida. Na mesma hora, o pai foi tirar explicações com o vizinho, que veio atendê-lo só de cueca.Evidentemente, foi chamado de maluco e colocado para correr.

Pela manhã, ao sair para o trabalho, Sandrinha correu para retirar a faca. Olhou a lâmina manchada, virou-a para todos os lados...nada! Um olhar mais minucioso distinguiu uma faca, com o cabo mais escuro. Que estranho! Assustou-se com umas voz às suas costas. Era seu Turíbio, o vizinho. Ele a olhava indagador:
"Qui ocê qué, minina?Teu pai é doidio mai teim razão, num sábi? Teim mermu qui ti cuidá, tu é beim bunitinha! Mai num quéru nada cum moça vrige!"

Sandrinha foi saindo, envergonhada; " Que papelão!Morria mas não contava a verdade! Ah, Santo Antonio! Que decepção!"

Alguns meses depois: Seu Turíbio passou a prestar atenção e se encantar com o andar rebolativo de Sandrinha e até a chamava de "minha frô di manacá".
Ela, por sua vez, passou a achá-lo irresistível, parecia o personagem do Antonio Fagundes em O Rei do Gado.

Dia de Santo Antonio, ano seguinte. Dona Turíbia, ou melhor, dona Sandra, grávida de três meses. A casa do viúvo pintada de cores alegres, cortinas novas, frente ajardinada. A profissão do Turíbio? Puxa! Quase esqueço de contar! Ele, até hoje, mata galinhas no aviário da esquina.

  • Publicado em: 08/08/2006
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