A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Bloco das piranhas

(Maria José Zanini Tauil)

Plena noite de natal. A mulher de Terêncio o surpreende com um sensual vestido vermelho.Isso o deixa eufórico. De madrugada, na cama, percebe que não era ela, era o vestido que o excitava.Enquanto fuma, observa o vestido jogado sobre a cadeira.
Desde então, uma vez ou outra, abre o guarda-roupa dela...só para admirar o vestido.

Chega o carnaval. Sargento das Forças Armadas, Terêncio estaria de serviço no domingo. A família viaja para a região dos lagos e ele os encontraria na segunda-feira.

Na noite de sexta-feira, já sozinho,Terêncio pega-se a admirar o vestido vermelho. Sábado pela manhã, ouve no rádio que o Bloco das Piranhas sairia de Madureira às quinze horas daquele dia. Nesse bloco saem jogadores de futebol e até artistas, todos vestidos de mulher. Uma luzinha acende na caixa de ideias do sargento. Não tem nada para fazer a não ser dormir e ver tv.

Às treze horas, num impulso incontido, veste o sensual vestido. O lastex da cintura se alarga. Ele perde a graça, pois não cobria os contornos sensuais de Marisa, sua mulher. Terêncio vai acrescentando acessórios: sutiã com enchimento, brincos, colares, pulseiras, um tamanco bem alto, dourado,que deixa os calcanhares de fora, bolsinha da mesma cor.
Os cabelos cortados à moda militar não oferecem possibilidades. Passa um mousse molhado e penteia-os para a frente, como franja, arremata com um diadema dourado. Sorri vendo-se no espelho...parece uma cópia mal feita de Carmem Miranda...mas falta alguma coisa...hum...claro! A maquiagem! Esmera-se no batom vermelho, no blush nas bochechas e na sombra azul-turquesa. Agora sim...uma verdadeira piranha! Só faltava rodar a bolsinha nas esquinas da Lapa.

Chama um táxi por telefone. Entra no carro depressa para não ser visto pelos vizinhos."Madureira, moço! Estrada da Portela". Uma hora de carro, nenhuma chance de ser visto ou reconhecido..

Terêncio salta em plena muvuca, onde o trânsito está sendo desviado. Entra num buteco, toma uma cachacinha...sente-se inibido. Quer destravar, cair na folia. Como os outros, acaba soltando a franga, desmunheca, imita os trejeitos femininos exageradamente, faz gestos sensuais. As pessoas se apertam ao longo das calçadas para assistir a passagem do bloco.

Umas mocinhas de minúsculos shortinhos mexem com ele. Terêncio se achega.Perguntam seu nome. Novos trejeitos e a resposta: "Lolita...LO-LI TAAAA!" Acerta um beijo na face do namorado de uma delas, deixando a marca do batom e sai rebolando.

Exausto, depois de desfilar por todo o bairro carioca, sujo, suado, com os tamancos nas mãos, Terêncio pega um táxi de volta. Está no bagaço, deu o seu tudo na brincadeira.
O corpo dói, o pé está cheio de bolhas: "Que heroínas são as mulheres...não caem dos saltos".

E o vestido? Precisa voltar para o cabide impecável. Lava-o no banho mesmo e coloca-o na secadora. Ainda bem que não precisa passar.

Manhã de domingo. Sargento Terêncio rigorosamente fardado, barba feita, cabelinho rente...reúne a tropa, distribui tarefas. Prepara-se para cumprimentar o antipático capitão Lobato, o oficial de dia. Pede licença, entra no gabinete, bate continência e nem percebe um sorrisinho sarcástico do oficial:
"Bom-dia, capitão!" "Bom-dia, Lolita!"

  • Publicado em: 13/02/2006
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br