A Garganta da Serpente
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Eu com "eu" mesma

(Maria José Zanini Tauil)

Minha mãe já tinha aqueles "pitis" característicos da menopausa quando engravidou.Desesperou-se. Escondeu-se por nove meses, com vergonha das pessoas. Quando o menino nasceu, corri para dar a notícia à vizinhança. Não acreditaram. Pensavam que meu irmão era adotivo, até porque tinha os cabelos cor- de- palha. Em plena amamentação, engravidou outra vez. Foi o último dos cinco filhos.

Eu, a mais velha e única mulher. Estava na pré-adolescência. Cuidei, troquei fraldas, dava mamadeira, papinha na boca. Via minhas amigas nas noites de verão conversando e brincando na rua e eu não podia ir. Ficava tomando conta dos filhos da menopausa. Acho que foram mais filhos meus do que dela. Cerquei-os de carinho e amor, vi-os crescer, levei à escola. Mamãe jamais pisou numa reunião de pais. Era eu quem lá estava.

Meu pai morreu em oitenta e um. Minha mais doída perda, ausência definitiva.
Quando o mais velho desses "meus filhos" resolveu prestar concurso para a polícia federal, desdobrei-me com o programa nas mãos procurando os livros da bibliografia com amigos e maridos de amigas, advogados. Eu já era professora. Ele estudou sozinho e foi o primeiro classificado do Brasil.

Vibrei com sua vitória...quase morri quando ele viajou para ficar seis meses em Brasília. Muita saudade, conversas por telefone, aos domingos. Duas vindas em casa nesse período e despedidas sempre muito tristes. Depois de formado, mais um ano em Paranaguá. Depois disso, ficou no Rio definitivamente.

Naquele tempo, com essa experiência, eu achava que jamais poderia viver longe de um filho, de um ente querido muito chegado. Nem preciso dizer que desde que casei, moro do lado da minha mãe. Várias vezes quis mudar, sentir outros ares...vendi minha casa, passei a não dormir, desfiz o negócio a tempo. Não consegui cortar o cordão umbilical.

Tive dois filhos, o Júnior e a Viviane. A infância deles foi a época mais feliz da minha vida. Ansiava que crescessem...hoje, queria-os outra vez na barriga.

Júnior é capitão do exército. Rodrigo também. Viviane conheceu-o na formatura do irmão. Casaram no mesmo ano...1999. A filha ficou no Rio, o filho foi morar em São Paulo.

Separar-me do Júnior foi como usar um sapato que aperta muito o pé , mas vai se ajustando com o uso. Ele já estava fora de casa há cinco anos, um em Campinas e quatro em Resende, nas escolas preparatórias. Quando vinha em casa, corria para os braços da namorada. Conversávamos mais ao telefone do que quando vinha em casa. Ficava feliz quando ele vinha do campo de treinamento. Falávamos bastante quando ele saía do banho enrolado na toalha, deitava na cama e eu ia catar os carrapatos de mato, grudados nos seus pêlos pubianos.

Quando minha filha foi para Mato Grosso do Sul, meu mundo desabou. Camilla tinha dois anos e Rafa, dez meses. No chão do aeroporto Tom Jobim, quem olhasse com atenção, certamente veria espalhados pelo chão os cacos de um coração de mãe-avó.
Curiosamente, não morri! Eles descobriram um oásis no centro-oeste. Dourados é uma bela e tranquila cidade. Sofri com a saudade, embora nos falássemos dioturnamente por telefone. "Mãe, como se faz aquele pudim?"..."Mãe! A Rafa levou dois pontos na testa!" Ainda bem que o posto de saúde era bem do lado da casa, na vila militar em que foram morar.

Junior só veio ao Rio para a filha nascer. Quarenta e cinco dias depois, Mariana voava para Roraima. Por lá ficaram por dois anos.

Estava aposentada, voltei a trabalhar numa carga horária de dezesseis horas semanais e só. Quero tempo para mim, para a minha ginástica, minhas caminhadas, meus cuidados com a aparência. O marido, também, militar reformado, continuou trabalhando. Nada de homem dando palpites pela casa.(Ainda mais quando é chato e quer fazer da casa um quartel)"Vamos comer, filha ?" "Já com fome?" "Não...é porque está na hora".

Aprendi nesses anos o quanto ficar só pode ser enriquecedor. Não sinto solidão. Aprendi a conviver comigo mesma, conhecer-me melhor. Eu e eu batemos longos papos.
Às vezes, o eu interior entra em conflito com o eu exterior, mas acabam se entendendo.
O de dentro é sonhador, acredita ainda,(coitado!), que a vida é um conto de fadas. Vive dando ordens ao de fora para olhar mais o céu, contar estrelas, ser menos comodista, menos preguiçoso, não entregar os pontos em situações adversas. O de fora é que me chama à razão...porque o de dentro é pura emoção, é eterno adolescente . Os sentimentos são mensageiros do coração. Aprendi nos meus momentos comigo mesma que Deus dá o tesouro da felicidade a todos, inclusive com a chave para abri-lo... o problema é que insistimos em usar a chave errada.

  • Publicado em: 05/10/2005
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