A Garganta da Serpente
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Defunto não come bolo

(Maria José Zanini Tauil)

Era uma mulher amargurada. Fazia oitenta anos e não aceitava a velhice. Lamentava ter boa visão pois podia observar atentamente no espelho, as marcas da vida, a pele enrugada como a folha seca de outono. Detestava depender de outras pessoas. Sentia-se cada vez mais limitada.

Era uma pessoa depressiva, gostava de solidão, ou melhor, só estava bem se estivesse só.
Usava bengala,...quebrara o fêmur duas vezes. Os cômodos da sua casa eram todos cercados por corrimãos, para evitar quedas.

Quando estava nervosa, implicava com a empregada, brigava. Em dois anos, teve três.

Não gostava de visitas e até mesmo os filhos, quando chegavam, ela queria que não demorassem muito. Preocupava-se com eles, rezava por eles...mas nada de viver dando palpites em sua vida. Esperava que se fossem para fazer o que queria e não o que sugeriam.

Os filhos preparavam uma festa de aniversário e ela resmungava: "Pra que isso? Não quero nada disso! Velhice não se festeja, se lamenta",

Claro que eles não ligavam para os amargos comentários e diziam: "Na hora, ela se anima!"

Chegou o dia da festa. Vieram parentes de longe. Irmãos, sobrinhos, filhos e netos que somavam sessenta pessoas. A filha levou-a a contragosto ao cabeleireiro, fez unhas e cabelos.

Estava bonita, num vestido marrom com detalhes em ouro velho e sapatos da mesma cor.

Um neto se incumbiu das fotos, outro da filmagem."Sorria, vó!" dizia ele. "Não tenho motivo nenhum para sorrir", respondia ela, sempre carrancuda e de cabeça baixa.

Todos riam, conversavam. Ela, em seu canto, calada. Num momento, chamou a filha: "Vamos cortar o bolo, acabemos logo com isso, quero dormir".

A filha fez-lhe a vontade. Convidou os presentes para se acercarem da mesa e cantar o "Parabéns pra você".Antes, fizeram uma oração e uma breve retrospectiva do que foi a sua vida até chegar aos oitenta.

A senhora cortou o bolo, deu uma fatia a cada um dos seus quatro filhos presentes. Tirou fotos com eles.Depois cortou outra fatia e deixou-a no meio do bolo. Um menino se apressou em pegá-la.
Ela brigou com ele: " Essa tem dono"! Ninguém entendeu nada.

Muitos acharam que era esquisitice da velhice. Ela pegou sua bengala e voltou ao seu lugar.

A filha quis levá-la para a cama...ela quis ficar, mudou de ideia.

Uma neta, curiosa, perguntou se a fatia sobre o bolo era dedicada ao falecido marido. Paciente e vagarosamente, a senhora respondeu:
"Não...defunto não come bolo. Aquela fatia é do meu filho, que está ausente.
Sou mãe de cinco. Sei que ele não vai comer, mas é dele"....
A neta retrucou: "Ele não veio porque não quis, vó"...A senhora se calou.
Alguns minutos depois, ela olhou para a neta e completou:" Ele não está aqui, por minha causa. É de pequenino que se torce o pepino.Não lhe dei a devida educação, Hoje ele é um homem maduro que não cresceu. Não se entrosa com os irmãos, por isso não veio."

Fiquei olhando aquela mulher. Tão sábia em sua ignorância.Ela dizia tanta coisa fora de lógica, sempre depressiva, sempre resmungando, pedindo para morrer.
De repente colocou para fora, como um vômito, rápido e com poucas palavras, tudo que lhe ia na alma.

Como envelhecer feliz, como se alegrar se não tem frutos para colher, do que plantou ao longo da vida?

A mãe pode ter dez filhos, mas cada um tem a sua importância, é um ser insubstituível em sua vida. Nove podem trazer muitas alegrias, mas se somente um não trouxer, ela vai achar que viveu em vão...

  • Publicado em: 18/06/2004
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