Reunião de natal familiar. Mais um round anual. Cada uma das quatro filhas
e três noras se encarregam de trazer um prato doce e um salgado, tirados
em sorteio.
Mal os pratos são colocados à mesa, já surgem os ti-ti-tis:
" Como ela tem coragem de trazer uma travessa minúscula com rabanadas
se somos sessenta?" Num outro canto: "Você viu como sua irmã
implica comigo? Encheu o pernil de pêssegos, ameixas e abacaxis! Faz de
propósito, pois sabe que detesto essa mistura de salgado com doce!"
Até as mais novinhas, adolescentes, matracavam: "Viu a roupa da
Aninha? Coitadinha! Parece uma velha! Eu não deixaria minha mãe
fazer isso comigo!"
A casa parece um formigueiro. Gente espalhada pelo jardim, pela varanda, pela
grande sala. Crianças correndo pelos corredores.
A senhora, dona da casa, põe o vestido novo trazido pela filha, que
costura. Resmunga alguma coisa sobre a falta de criatividade na confecção
de roupas para obesos: " Um buraco para o pescoço e dois para os
braços...sempre iguais! E você ainda escolhe essas cores de burro
quando foge!".
Desce as escadas amparada e é depositada como um embrulho na cadeira
de balanço, próxima à imensa árvore de natal.
Um bisneto afoito, correndo, pisa no dedão de seu pé e ela não
consegue conter um tremendo palavrão, que nem chegou a ficar entalado
na garganta.
Ceia, brindes, depois a entrega dos presentes das crianças e do amigo
oculto. Novo ti-ti-ti: "Ela me deu um CD da Alcione sabendo que eu queria
o último do Caetano!" Outra: "Debochada! Traz uma camisola
tamanho M sabendo que uso EG!"
Já é madrugada quando todos se despedem. As crianças nem
falam com ninguém. Pulam dentro dos carros, ansiosas para chegarem em
casa e encontrar o presente que papai noel deixou, na sua passagem por lá.
À porta, a velha senhora acena, apoiada em Maria, antiga empregada,
que virou companheira de solidão e relíquia da casa.
Maria nem sequer acena, alheia em seus pensamentos: "Meus Deus! Por que
inventaram o natal? Quanta louça pra lavar! Quanta sujeira pra limpar!"