Reticências. Era tudo o que conseguia escrever agora, porque jamais lhe
ocorrera ter de escrever uma carta que trouxesse alguém de volta. Na verdade,
nem sabia porque estava fazendo aquilo. Ou sabia: saudade, desespero e medo.
Pensou que Joel poderia ter desaparecido com um ano de idade, e não quinze.
Assim seria bem mais fácil. Mas logo censurou a ideia. Era simples:
ele jamais deveria ter desaparecido, garoto idiota! Merecia uma surra quando aparecesse.
Se aparecesse...
Pela enésima vez, relembrou a sequência de cenas ridículas
daquele dia. Tudo para afirmar que a culpa não era dela, porque sabia que
era. Se tivesse voltado junto com ele... Ah, esses adolescentes são
completos imbecis!... E por isso fazem uma falta tremenda.
Se a intenção do merdinha se resumia a chamar a atenção
ou pregar um susto, ele já tinha conseguido, podia voltar agora que a brincadeira
não tinha mais graça. A polícia, os noticiários e
os detetives particulares já haviam conseguido sua fatia de pão
às custas do caso, agora ele já podia voltar.
As dores de cabeça periódicas já tinham se tornado constantes,
ela já chamava a analista pelo apelido, suas roupas já sobravam
em alguns números, as ONG's já estavam esgotadas de suas visitas
e ela já não suportava mais ver os cartazes com fotos dele espalhados
pelas rodoviárias, aeroportos e lugares que todo mundo passa. Ele podia
voltar, droga! Ou ela não teria mais como procurá-lo.
Num gesto automático, pegou as chaves do carro, desceu as escadas e, em
poucos minutos, estava no estacionamento do shopping de novo. Nem sabia mais quantas
vezes tinha repetido aquela besteira ao longo de onze meses. Fora ali também
que encontrara o mendigo.
É certo que as figuras que habitam as ruas não seguem padrões,
mas este chegava a ser intrigante. Usava um manto e um cajado, seus pés
estavam descalços e próximo a eles um pequeno caldeirão fervia
ervas perfumadas.
Pensar que gente daquele tipo poderia ter lhe roubado Joel, fez com que ela fosse
alertar os guardas. Mas, para sua surpresa, eles não o viam, sequer sentiam
o cheiro das ervas. Como?! Eu estou calma, sim!... Louca é a senhora
sua mãe, ouviu?
Quiseram levá-la para a enfermaria, entupí-la de calmante. Preferiu
dizer algo como "Acho que o sol está muito quente" e se livrar
deles. Comprou coisas sem importância, tomou sorvete e esperou que se esquecessem
dela. Foi até o velho, que lhe sorriu um sorriso de avó bondoso
e lhe estendeu o cajado, em reverência.
- O senhor sabe que não pode ficar aqui, não é? Isso é
um estacionamento privado. Vá embora, antes que eu chame os guardas.
- Estou exatamente onde deveria estar, e Joel também.
Antes que conseguisse dizer qualquer coisa, a água da fervura revelou o
rosto de Joel desapontado diante de um dedo em riste, como ela costumava repreendê-lo.
Se soubesse que aquela seria a última vez...
Mas ele tinha que tirar o tênis para apoiar o pé na poltrona alheia?
Tinha que esquecer o tênis novo no maldito cinema? Onde é que ele
estava com a cabeça que não sentiu o toque dos pés no chão
frio? Ora! Que voltasse para buscar sozinho, e "ai "se o tênis
tivesse sumido!
Chorou - o que há tempos não fazia por pensar que já tinha
esgotado o limite de lágrimas de um ser humano - e aquela porcaria de fervura
não parava de reproduzir o tormento.
A água cheirosa mostrou-lhe tudo, exatamente como aconteceu:
Estava irritada, olhando no relógio e se perguntando porque ele demorava
tanto. Descia do carro, explicava ao dono do cinema que seu filho era um cabeça
de vento mal educado que havia confundido a poltrona do cinema com o sofá
de sua casa e, muito à vontade em ficar só de meias, havia tirado
o tênis e esquecido lá. Explicava que ele tinha voltado para buscar
mas estava demorando, então pedia para entrar na sala... e lá
estava: só o par de tênis, sem Joel.
O velho secou com as mãos gordinhas as lágrimas dela, enquanto entoava
uma canção estranha. Depois, dois olhos de jabuticabas muito vivos
rodeados de rugas foram adquirindo um ar sinistro e a olharam profundamente. Por
alguns instantes, ela teve medo.
- Joel não será encontrado, a menos que queira... Ou que você
o busque. Você quer que ele volte?
Aturdida, ela concordou com a cabeça.
- Se é assim, faça o que eu disser: escreva sobre o menino, uma
carta... Tudo o que souber...
- Eu sou a mãe dele, não sou? Sei tudo sobre o meu filho!
- Você quer que ele volte?
- Já disse que sim!
- Então não me interrompa! A carta deve conter o mesmo número
de páginas que o garoto tem em anos de idade. E, a partir do momento que
começar a ser escrita, tem vinte e quatro horas para ser concluída.
Acordou com alguém estapeando de leve seu rosto, debruçada no concreto.
Acreditou que o sol estivesse mesmo quente e lhe houvesse provocado devaneios.
Foi pra casa, assistiu TV e tentou esquecer aquilo tudo,
Os dias se arrastaram com alguns desaforos a dizer, contas a pagar, visitas a
receber e nenhuma pista ou notícia de Joel. Foi assim que numa manhã
ensandecida, apanhou papel e caneta e começou a escrever.
Esqueceu das horas e não prestou atenção numa dorzinha crescente
nos dedos em uma, duas, três... sete páginas desde o nascimento,
a primeira fala, a morte do papai... até a mudança pro interior.
Aí as palavras faltaram e ela quis dizer àquele velho que teria
as quinze páginas bem antes do esperado. Por isso, talvez, tivesse pego
o carro e voltado ao estacionamento, levando consigo toda a papelada - escrita
e por escrever.
Sem apoio, com letra disforme, alcançou onze páginas discorrendo
sobre os tombos, arranhões e namoradinhas do filho. Contou sobre a fantasia
de Batman que ela cismou em lavar e encolheu às vésperas do baile
e das vezes que chorou escondida após ter dado umas palmadas no infeliz.
Ou ainda sobre quando organizou em caixas discretas a coleção de
Playboy's do garoto para depois discursar sobre ética e ordem.
Naturalmente, meio que sem perceber, chegou ao meio da quinquagésima
página e decidiu falar sobre o desaparecimento do menino e de como ela
estava sofrendo sem saber se ele estava bem. A carta ganhou até uma promessa
de mais paciência.
Começou a ouvir uma vozinha de galo galinzé assim, muito rouca,
e quase ordenou que se calasse porque precisava pensar, que aquilo era importante.
- Ô, mãe! Tá surda? Tá aqui o tênis, dá
pra gente ir embora agora?
- Daqui a pouco, meu filho. Preciso fazer uma coisa antes.
- Que coisa? Onde cê vai? Hei, dá pra me responder? Vai me deixar
sozinho aqui?!
O velhinho com cara de avô recebeu as folhas escritas como se fossem algo
muito precioso - uma história contada - agradeceu e foi embora, cantarolando
a mesma canção estranha, enquanto ela olhava-o, totalmente besta,
até que desaparecesse na esquina. Se tivesse tempo de raciocinar um minuto
que fosse, juraria que Joel sempre estivera junto dela, mas sentiu uma mão
pousar em seu ombro, precedida de um "Mãe, tô com fome!"
E teve certeza de ter desejado ouvir aquilo de novo.
Voltou para o carro abraçada ao filho e, sob protesto, começava
agora mesmo a dar a ele todos os beijos e abraços de um ano quase inteiro.
Enquanto ele lhe narrava em detalhes as lutas sangrentas do filme, ela sorriu
ao pensar que se demorasse mais um pouco, seriam dezesseis páginas.