O dia já vinha chegando e o sono lhe faltava ainda. Sua mente, involuntariamente,
buscava cada crepitar, farfalhar ou gorjeio daquela madrugada, o que a deixava
ainda mais desperta. Ouviu um galo cantar e não pôde deixar de lembrar
que a estada no interior tinha sido ideia de Marta.
Pousou os olhos sobre ela. Dormia e sua imagem lembrava a de uma ninfa que vira
anos atrás, numa viagem alucinógena. Um lençol fininho deixava
à mostra sua barriga, iluminada por um filete incipiente de luz que ao
atravessar a cortina, tornava-se verde.
Começou a pensar no quanto aquela situação, meses antes,
seria inimaginável, já que tudo o que tivera até então
não passavam de aventuras ou envolvimentos traumáticos.
Trabalhava num escritório contábil durante o dia, gastando seus
neurônios, tempo e paciência, mas garantindo um bom salário.
À noite se transformava. Vestia-se com o melhor que podia, perfuma-se e
maquiava o rosto. Sob uma capa de mulher fatal, saia à caça pela
agitação de São Paulo.
Nessas circunstâncias, adquirira uma autoestima bastante delicada, olheiras
e um fígado comprometido por doses cavalares de whiskey. Não
admitia, mas tudo o que procurava era companhia, alguém com quem se preocupar,
contar segredos.
Dividia apartamento com um amigo assumidamente gay que, certa vez, piedoso
do estado deplorável em que ela se encontrava - justamente quando ela acendia
um cigarro no que restava do interior - convidou-a para um mirabolante fim de
semana em sua cidade... cujo número de habitantes somado ao de animais
não chegava a dez mil.
Como não tinha nada mais interessante a fazer e estavam ficando raras as
boates de Santo Amaro que ainda não visitara, Júlia aceitou o convite
prometendo a si mesma que aquele seria um tempo para organizar os pensamentos
e se renovar. Tais ideias se abalaram um pouco quando chegaram á
"rodoviária" do lugar.
Era um boteco incrustado de gordura, com uma mesa de bilhar, alguns marmanjos
coçando os respectivos sacos e uma superpopulação de mosquitos.
Só havia espaço para um ônibus de cada vez estacionar e todos
que desembarcavam eram recepcionados por uma plateia de banguelas, corcundas
ou carecas pançudos.
Incrível, mas para Gilson havia um contingente especial: primos, irmãos,
amigo da cunhada da madrinha, o cara que construiu a casinha do primeiro cachorro
que ele teve, a sobrinha recém-nascida que vinha nos braços de uma
senhora obesa dona de um peculiar odor azedo... e uma garota tão deslocada
quanto Júlia, sentada a um canto.
Numa gentileza exagerada, carregavam as malas, estalavam beijinhos molhados nas
bochechas e arrastavam os visitantes pelas ruelas de terra vermelha da cidade.
A moça os acompanhava com os olhos, devia ter uns vinte anos e trajava
preto. Aquela sobriedade não combinava com nada ali. Havia um esboço
de sorriso em seus lábios e seu modo de sentar-se denunciava: também
não era de lá.
Já devidamente acomodados e empanturrados de deliciosas e indigestas iguarias,
foram deixados de lado por instantes, para que descansassem. Dispuseram na varanda
duas redes e Gil dormira logo, indiferente ao sol incidindo em seu rosto. Quando
os olhos de Júlia estavam quase acostumados a se esticarem pelo horizonte,
fora interrompida por um tranco mais forte em seu oscilante leito.
Quis dizer uma besteira bem cabeluda para ficar no vocabulário daquelas
pestinhas interioranas durante algumas gerações, mas engoliu o desaforo
ao perceber uns dentes brancos e alinhados em exposição. A brincadeira
vinha dela, da moça da estação.
- Você é amiga do Gilson?
- Sou, muito prazer. Meu nome é Júlia
- Marta. Sou prima dele num grau bem distante, fazia tempo que a gente não
se via...Desculpe, mas o que alguém como você faz aqui?
A essa altura, na testa de Júlia se formava uma ruga de desagrado pela
indiscrição da menina. Resolveu dizer apenas que queria descansar,
enquanto a outra lhe explicava que era geóloga e vinha em busca de amostras
para estudo.
Ela tinha talento de conversar sobre trivialidades sem torná-las aborrecidas.
Emendava um assunto no outro e deixava Júlia sem jeito de cortar aquela
prosa sobre nada. Contou que nascera ali mas tinha se mudado para Guarulhos ao
passar no vestibular, e que quando criança percorria aquela imensidão
toda a cavalo.
Júlia, já mais acostumada ao jeito elétrico de Marta, confessou
jamais ter montado. Foi o suficiente para que o rosto da moreninha se iluminasse
e ela propusesse um passeio numa égua bem mansinha que tinha lá
no sítio só para as visitas mesmo. Antes de levantar da rede com
um puxão nos braços, Júlia ouviu Gil roncar.
Cavalgaram por quase uma hora. Aquilo não tinha razão de ser, mas
era agradável, envolvente. A cachoeira... Ainda sentia um arrepiozinho
quando relembrava. Marta apeara sem avisar e prendera seu animal num toco de árvore.
Depois, desembainhou um facão e abriu passagem entre as folhagens. Júlia
a seguia, temendo os insetos. Não podia escutar o que a outra dizia por
causa do barulho da água, mas estava maravilhada, não precisava
de explicações sobre que formação rochosa era aquela.
Enquanto se arrependia de não ter pego máquina fotográfica,
Marta se livrava das roupas para se lançar num mergulho. Despiu-se também,
mas preferiu descer devagar escalando as pedras com sua dificuldade paulista.
A água gélida tocava sua cintura, causando um certo desconforto
e medo de aprofundar-se.
A figura maluca, inquietante até, ia longe, submersa, muito à vontade
de brincar naquele sem-fim molhado. Ora sumia, ora aparecia em pontos diferentes.
Numa das aparições, tocou de leve o calcanhar de Júlia, como
um peixe dócil. Subiu fazendo gracinhas por suas pernas até aninhar
a cabeça em suas costas. Os bicos dos seios, rijos, roçavam sua
pele enquanto os dedos embrenhavam-se loucos pelos cabelos.
Não pensava, só sentia o inédito daquilo, sem julga-lo. Abandonou-se,
boneca, nas mãos de Marta, que a manipulava delicada e ávida ao
mesmo tempo. Uma carne macia beijava-lhe dos olhos à boca... havia um
gosto doce naquele corpo de forma semelhante ao seu. Era arrastada, sabia, porque
as águas passavam contra ela. Sentiu as costas tocarem uma pedra lisa,
seguidas de sua cabeça e o resto de si depositados cuidadosamente na cama
natural.
Mãos firmes afastavam-lhe as pernas e uma língua serpenteante alcançava
seu sexo, invadindo-o. Chorava baixinho à insolência, tremia. Suas
pernas prendiam a língua ali, como se sua vida dependesse do músculo
quente que a assaltava.
Contraiu-se várias vezes porque tinha algo que queria escapar dos limites
de seu corpo para se integrar ao rio, à terra, às sementes, à
mulher enroscada em cada pedaço seu. As lágrimas confundindo-se
aos respingos, o ecoar do som transbordando... cansaço, descompasso,
duas à mercê da correnteza, num balé de gente doida. Cheiro.
Suspiro. Unhas. Pêlos. O peso exausto dela sobre o seu, mil viagens de ácido...
ELA.
Nunca pensou que dali para adiante gostasse tanto daquele aglomerado de cidades
que formava a Grande São Paulo. Guarulhos era tão perto que logo
a distância nem existia. E, para quem estranhasse que, ainda hoje, nesses
tempos individuais pudessem existir duas amigas tão próximas ou
carinhosas entre si, elas não davam satisfação.
Gil andava feliz, jurava ser o padrinho daquela união pouco convencional,
sobretudo porque Júlia parara de fumar e ganhara peso. Ele mesmo sugeriu
que fizessem um programa romântico em comemoração aos seis
meses que marcavam o tempo recorde da amiga com uma mesma pessoa e coincidiam
com as férias de Marta.
Então alugaram, a gosto da própria, um chalé discreto nas
redondezas da cidadezinha que as apresentara. Arrumaram as malas e fizeram um
juramento de não se desgrudarem durante uma semana inteira. A insônia
talvez se devesse à estranheza de ter alguém dividindo a cama consigo,
num lugar pouco familiar. Mas isso tudo não tinha importância alguma
porque, nesse exato momento, a moça havia acordado e passava os braços
por sua cintura fazendo cara de quem quer carinho.