A criatura nos açoita diariamente sob capa de bondade. Nunca ordenou ou
amaldiçoou: tudo o que sabe fazer é, em meio a soluçantes
risadas, dizer rimas tão patéticas quanto enjoativas. Os olhos vermelhos
parecem enxergar multiângulos. Poderiam ser assustadores.
Vez ou outra, rende-se ao instinto e salta de sua pouca dignidade animalesca para
cravar em um de nós o descomunal par de dentes. Em instantes, a vítima
tem todo o seu sangue sorvido em goles desastrados.
Dizem que ataca apenas para exercitar seu inesgotável humor, ou porque
as cenouras que nos obriga a plantar não são suficientes para seu
sustento. Porém, há quem acredite que é o sabor de nosso
fluido transformado o que torna os homens fiéis consumidores de seus ovos.
Em sua alegria exagerada, ele dança com nossa rainha a estúpida
canção que nos faz entoar. Na letra, as crianças perguntam
o que ele traz para elas. A visão da rainha em seus braços faz com
que alguns de nós sintam pesar porque ainda recordam a magnitude de nosso
povo.
Entre as raças criadoras, éramos responsáveis pelas cores.
Compartilhávamos nossas substâncias para originar novos tons, e à
rainha, a quem foi concedida a imortalidade, cabia o batismo e a manutenção
deles. Tal tarefa nos bastava... E foi justamente essa a nossa falha: jamais
houve um exército ou muros protegendo o povoado.
Para nos ter como escravos, não houve necessidade do uso da força;
ele capturou a rainha e, em sinal de fidelidade, muitos a seguimos. Os mais perspicazes
fugiram assumindo a forma humana. Esses ainda salpicam cores aqui e ali, conforme
podem. Mas, sem ter alimento, muitas já desbotaram.
De majestade à escrava, aquela que tem nossa estima passa os dias a retocar
o branco do pelo de seu senhor ou prateando um sem-fim de papel que usamos para
o primeiro revestimento dos ovos espessos e pegajosos. A segunda cobertura é
plástica, colorida pelos mestres. São os únicos que ainda
mesclam suas essências.
Os mais jovens, nascidos aqui, nem chegaram a aprender o nosso ofício,
não conhecem sua capacidade e, portanto, não se importam de terem
os dedos calejados pela feitura de laçarotes decorativos para os ovais
que ele põe segundo por segundo, com escassas interrupções.
Trabalhamos sem prazer e cada um de nós tem medo de ser o próximo
a saciar a fome do horrendo, mas cuidamos para que não haja atraso. Isso
porque, uma vez por ano, ele recolhe toda a produção e sai para
espalhar suas crias em ninhos de serragem, pelos lares dos homens. Nesse dia,
a pedido da rainha, nos deixa descansar.
Então, relembramos costumes, há bebida, alguns galanteiam para as
moças enquanto os mais audaciosos devaneiam sobre estratégias de
fuga, e temos nosso tempo bom. É nessa data que desejamos um ao outro:
Feliz Páscoa!