A Garganta da Serpente
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Fogos

(Migai)

Quando finalmente conseguiu conduzí-la até o beco pediu - por favor - que se virasse. Não gostava que elas percebessem seu deleite, já que era para que o pudor se mantivesse que fazia aquilo. Jamais por prazer.

Às vezes as seduzia, fáceis que eram. Outras, as perseguia, as violava, e o que gostava mais era de ouví-las aos berros, aterrorizadas com sua forma quasímoda e seu pênis rijo a agulhar os órgãos apertados e secos de medo.

Não as matava, que era para se lembrarem de nunca mais deixarem as pernas à mostra ou exporem os seios em decotes. Numa ocasião, arrancara um seio, mas certificara-se de que a mulher seria atendida rapidamente, sem dar chances para o sangue se esvair todo, livrando-a de purgar.

Admirava - só um pouco - as mães. Não as que, com o filho no braço, ainda ousavam ser bonitas, mas as gordas, suarentas, azedas mães que só conheciam o sexo para a procriação. Detestava as virgens porque tinham tendência ao que era sujo. Pensava que um corpo virgem fosse um portal para a perdição, por isso as doía, traumatizava e ensinava: para que minguassem os desejos.

Gostava de contemplá-lhas caídas, reduzidas, porque assim é que eram belas. Sabia que iriam à polícia, à igreja, o diabo! Mas ele era invisível, simplesmente porque ninguém dedicava a ele mais do que alguns segundos de olhar. Era feio, tanto que nem pena tinham. E elas, de tão assustadas, talvez nem conseguissem colaborar para um retrato falado.

Contava apenas com um dos olhos, que ainda assim via como se vê através dos vidros em dias de chuva. O outro, preguiçoso, deixara-se cair para um canto do rosto e, desistindo de sua função, secara tomando para si a cor cinza.

O corpo estava próximo a um experimento mal sucedido, involuido, e os modos eram tronchos, como os de um animal acuado. Tinha a fidelidade de um cão àquilo que acreditava ser certo, e em sua bestialidade, era cruel.

Na infância, criado por um tio, dono de uma loja de fogos de artifício, ganhou uma paixão pelos mesmos. Roubava-os aos poucos e os escondia no meio de suas parcas roupas. Ao conseguir uma quantidade que julgasse ser razoável, subia à torre da cidade e os acendia.

Fazendo isso sentia-se no ápice de sua existência: estrondava-se junto com eles, chovia, coloria-se e ria baixo para poder ouvir os sons que o extasiavam. Repetia aquilo sempre que reunia seu punhado de estouros, até perceber que o que roubava já não era suficiente.

Numa noite, ocorreu-lhe a ideia que seria o seu maior feito: a loja ficava na parte inferior da casa e antes de descer as escadas ele foi à cozinha e apanhou fósforos. Escolheu a prateleira onde ficavam os rococós e, a partir deles, criou uma cadeia de pavios. Riscou um palito e, excitado, saiu em busca de um bom lugar para assistir ao festival.

Já caminhava para o quintal, numa felicidade infantil quando se deu conta de que o tio dormia no sobrado. Em seu desespero de bicho, correu para dentro e tentou chegar ao andar de cima, mas o fogo lhe lambia, consumindo-o, fazendo as vestes colarem-se à pele.

Desmaiou de tanto inalar a fumaça e os bombeiros o encontraram em sua sobrevida. Mesmo bêbado e ardendo, escapou dos cuidados e voltou para carregar consigo os foguetes que conseguiu salvar.

Como era miserável e não tinha mais ninguém por si, levaram-no para o lar de umas senhoras curandeiras, onde tomou consciência da deformidade recém-adquirida, enfaixado e imóvel.

A casa era o próprio rol dos desgraçados, e entre seus esquálidos estava uma moça - a Louca, diziam - que as senhoras já não se preocupavam mais em vestir porque ela rasgava tudo o que tivesse a pretensão de lhe cobrir. Andava nua pelos corredores e encontrara nele, o novo hóspede, seu mais novo divertimento.

Deitava sobre os curativos que ocultavam a pele em bolhas, ignorando a pressão que fazia sobre as queimaduras. Serpenteava o corpo, abria-se obscena próxima ao seu rosto, quase que roçando os pêlos profanos em sua face e se deliciava com os próprios dedos. Depois os passava, melados, na boca carcomida do moribundo, que nada mais podia além de acompanhá-la com o olho baço.

Porém, às ataduras retiradas, a Louca o esquecera. Foi procurá-la, mas ela não o quis, tentou mesmo afastá-lo com um empurrão. Atirou-a então no chão, de costas, despiu-se da cintura para baixo apenas, utilizou-se da mão ainda ferida para vencer a firmeza das nádegas da moça e forçou-se através de sua justeza enquanto ela tremia e chorava fininho a desvantagem de ser frágil.

Sem que ninguém o barrasse, ainda parcialmente nu, saiu do lugar decidido a cuidar para que nenhuma criatura que, de longe, se assemelhasse àquela perturbasse qualquer ordem. Vagou assim, de canto a canto, sempre vigiando.

Agora, no beco, a vadia que o seguira até ali sem reclamar, se debatia e pedia socorro. Ele a possuía quando sentiu um baque muito forte na perna esquerda. Caiu de joelhos, agarrando-se a ela e tudo começou a ficar muito lento. Virou-se e enxergou um borrão segurando nas mãos algo reluzente. Recebeu outro impacto, dessa vez no peito.

Arrastou-se para um edifício, sentindo gosto de sangue. Escorregando, subiu pela escada de incêndio conseguindo chegar ao solário sem saber se pela piedade ou crueldade de quem parara de atirar.

Lá, ele tirou do bolso o maior bem que lhe pertencia: um último foguete guardado no bolso. Pôs o palito aceso na ponta do pavio e afundou o artefato na boca o máximo que pôde. Morreu feliz porque soube que, assim como o foguete, ele também podia explodir.

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