A Garganta da Serpente
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Morte Insana

(Marcos Ferreira)

Esperou a mãe ir dormir, esperou que as horas fossem passando e assim fizesse que o sono da mulher ficasse mais pesado. Na pequena casa só viviam ele e a mãe, não tinha irmãos e o pai havia morrido há alguns anos.

Sentado no sofá da sala, a TV ligada, podia ver a porta do quarto da mãe a sua frente, olhou o relógio: meia-noite e meia, podia ir. Pegou o martelo que escondera em cima da estante da sala e foi com passos lentos até a porta do quarto. Os lábios secos, a respiração forte. A hora seria aquela, não podia esperar mais, não aguentava mais viver ao lado dela, sua voz, suas implicâncias eram torturantes, infernais. Matá-la seria como quebrar uma vitrola velha que range, range, range, range.....

A mulher deitada, as mãos no peito, parecia que adivinhara seu destino e se deixara ficar numa fotografia "pré-mortis". Precisava ser rápido, silencioso. Levantou o martelo e desferiu dois golpes certeiros precisos na cabeça da mãe. Não houve grito, nada, apenas o sangue se espalhando no lençol. A fraca luz vinda pela janela do quarto deixava à mostra um corpo inerte, a cabeça desfarelada. Não sentiu nada, nenhum remorso, numa vontade de chorar ou vomitar, como se matar para ele fosse comum. Saiu do quarto assobiando e deixou-se cair no sofá, fixou os olhos na TV como se nada tivesse acontecido. Largando o martelo de lado sentiu um sono tranquilo, suave, invadindo seu corpo, logo adormeceu.

Sonhou com paisagens lindas, manhãs de sol, vento, terremoto....a terra toda tremia, o sacudia, uns solavancos que o jogava longe. Acordou com a mãe o sacudindo a mesma voz irritante, a vitrola rangendo, rangendo....mas como? Ele a matara no dia anterior, tinha certeza, o martelo, os golpes na cabeça e agora....

Sentou-se ligeiro e tentou fixar os olhos ainda sonolentos na imagem a sua frente: a mãe, gorda, imensa, a boca pequena, os cabelos brancos e a voz, aquela voz.....

- Levanta daí seu preguiçoso, levanta que está na hora de ir trabalhar, seu vagabundo.

Ele olhou rapidamente em direção ao martelo que deixara cair ao lado do sofá na noite anterior e ele estava ali. Pegou-o ante a cara cínica da mãe. Não havia uma gota de sangue, estava limpo: o cabo, o martelo, todo limpo. Quis falar algo mas não pode, levantou-se de um salto e foi ao quarto da mãe, a cama arrumada, os lençóis limpos, como se nada houvesse acontecido, como se nada houvesse manchado a alvura daqueles lençóis. Virou-se para a mãe. Meu Deus, havia sonhado, dormira no sofá com o plano na cabeça e só o havia executado em sonho. A mãe, a maldita velha ainda estava viva. Olhou-a com ódio, teve ímpetos de pular em seu pescoço e esganá-la mas conteve-se, era dia e os vizinhos poderiam ouvir. Deixou-se ficar ali, mudo, olhando-a enquanto ela falava, falava, falava.....

Vida medíocre a dele, quarenta e dois anos e nada havia conseguido na vida, um emprego de frentista em um posto de gasolina, mulheres só as tinha se pagasse, era feio, magro, as orelhas grandes, culpava a mãe pôr ter nascido com aquela aparência, culpava a Deus, a genética. Viver com aquela mulher sempre fora insuportável, com o pai vivo ainda podia aguentar, ele era bom, amigo mas ela....sempre a odiara, desde que aprendera a concepção desta palavra em criança a odiara, havia então finalmente, decidido matá-la, livrar a ele e ao mundo daquela mulher grotesca, louca, chata. Mas o que dera errado? Pôr que dormira naquela hora tão importante? Era a sua liberdade, sua vitória, sua vida, mesmo que fosse descoberto, condenado e preso seria melhor do que conviver com aquela maldita vitrola em seus ouvidos, rangendo, rangendo.....

Comendo a marmita fria analisava os fatos: havia esperado pacientemente que a velha dormisse e quando ela dormia seu sono era pesado como uma pedra. Estava com o martelo escondido, pronto para vir a suas mãos e só ficara pôr algumas horas vendo TV. Quando entrou no quarto da velha e desferiu os golpes foi como se sentisse até o cheiro de sangue, parecia tão real..... mas era um sonho, havia dormido no sofá e sonhado, merda, merda ! Jogou a marmita para o lado com ira. Precisava se livrar da velha, dar um presente ao mundo tirando a carcaça daquela mulher da face da terra, que se dane-se que fosse sua mãe, ela era um verme. Nem do seu salário tinha direito pôr completo, a velha lhe tomava metade lhe deixando uma miséria para sair, se divertir, enfim, viver.

Chegou em casa as onze da noite, desta vez não haveria falhas. Primeiro daria a mãe um sonífero misturado no café, depois ficaria só esperando o efeito, o sono da velha iria ficar o triplo de pesado, difícil de acordar.

Solícito serviu o cafezinho para a mãe depois de misturar o sonífero desfeito em pó. Em meia-hora a velha roncava no sofá da sala. Pegou o martelo e foi cruel: uma, duas, três, quatro, cinco marteladas desferidas com ira. A massa sangrenta, a cabeça da velha disforme. Sorriu, gargalhou, diante da velha morta. Dançou como um índio diante de seu oponente vencido, havia sido vitorioso, havia vencido. O corpo da mãe jogado no sofá, estava feito.

Foi até a geladeira e pegou uma cerveja que bebeu sentado, em frente ao corpo.

Não havia sequer pensado em um plano para escapar do assassinato. De manhã ligaria para a polícia e diria calmamente: "Alo? É da polícia ? Eu acabei de matar minha mãe à marretadas, à marretadas !!"

Foram-se se passando as horas, dormiu no chão em frente ao corpo. Sonhou novamente com doces sonhos, lugares lindos, pessoas lindas, o vento, vozes suaves....toscas, o ranger da vitrola, a voz da mãe, o tagarelar da mãe em seus ouvidos: "Acorda desgraçado, preguiçoso, hora de ir trabalhar!". Acordou assim, num sobressalto, a mãe a sua frente, as mãos nas cadeiras, gritando e ele ali no chão da sala. Levantou-se horrorizado: lá estava ela, viva, cruel, sem marcas, impune. Como uma fera agarrou o pescoço da velha e apertou, ela gritava, logo o grito morreu em sua garganta, a língua roxa, pendurada. Para se certificar pegou o martelo e desferiu dois, cinco, vinte golpes. O sangue em sua roupa, abriu a porta, louco, gritando: " Matei a desgraçada ! Matei a desgraçada !!"

Quando a polícia chegou encontroou pelas ruas andando com um martelo nas mãos, louco, transtornado. A mãe ligara para a polícia assim que viu o filho correr para rua aquele martelo na mão. Levaram-na para o hospício, onde ele vive segurando um martelo imaginário, esperando um dia de visita da mãe.

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