A Garganta da Serpente
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Meus quartos
(Marcos Ferraz)

Quando eu era pequeno vivia brigando com meu pai por ter que dividir quarto com o meu irmão. Ele era muito bagunceiro; e eu odiava bagunça.
Eu sempre sonhei em ter um quarto só pra mim. Todo pintado de vermelho, cheio de prateleiras com miniaturas de carros. Tudo organizado do meu jeito.
Até que um dia meu pai resolveu construir um quartinho pra mim no fundo do quintal. O quintal era grande, e meu quarto ficou longe da casa. E outra, era só um quadrado, não tinha banheiro nem nada.
Algum tempo depois eu teria outro quarto. Mas aí é outra história e não serei eu quem vai contá-la.

[...]

Um dia desses ele acordou - era uma madrugada na verdade - com muita sede. Tinha acabado de ter um pesadelo. Não queria levantar. O quintal era grande. Seu quarto era no fundo da sua casa, um pouco longe.
Estava com muita sede, mas estava também decidido a não se levantar. Mas tanto pensamento em água acabou dando vontade de ir ao banheiro. Pronto, pacote completo. Levanta, tomava água, ia ao banheiro e tudo certo.
Levantou, esquecera o quanto estava frio, acendeu a luz, vestiu seu agasalho, abriu a porta e saiu correndo. Quando chegou à porta da sala de estar de sua casa, lembrou-se de sua chave - sua mãe não queria deixar a casa aberta toda noite -, voltou correndo pro quarto, pegou a chave e novamente saiu correndo.
Quando e ele estava no meio do caminho a luz de seu quarto se apagou, ele levou um tremendo susto, mas isso era normal, qual casa não tem uma lâmpada com mal contato?
Parou na área do lado da casa - ela era grande, toda em cerâmica, fazia um "L" com a frente da casa. Tinha ali duas cadeiras de área e uma palmeira. Daquele ponto se olhasse pra frente veria o portão automático da entrada, e alguns passos a mais virando à esquerda era a área da frente, onde havia mais duas cadeiras e duas samambaias penduradas na porta de entrada. Só que a sua porta era a do lado.
Ficou parado olhando para seu quarto na esperança de que a luz acendesse de novo.
Só que o que ele viu foram dois vultos correndo ao redor da casa. Olhou por cima dos dois ombros e não viu mais nada. Olhou pro seu quarto e viu um deles entrando, e na hora em que entrou a luz se acendeu. Ficou imóvel. Lembrou-se então do quanto estava frio e entrou em casa.
Fechou a porta com bastante cuidado pra não acordar ninguém - seus pais e seu irmão acordavam cedo -, a porta era de vidro transparente com grade. Via-se tudo do lado de fora, inclusive seu quarto. A sala era pequena tinha apenas duas poltronas encostadas na parede do lado direito, com um quadro acima da cabeça de quem senta, à esquerda ficavam os quartos, à frente havia um corredor que levava pra cozinha e ao banheiro.
Foi até lá, abriu a geladeira, pegou uma garrafinha de água e quase morreu engasgado. A porta por onde havia entrado bateu, como se o vento a houvesse empurrado. Mas ele não a tinha fechado? Talvez não fechei direito, pensou, mas tinha fechado sim, e sabia muito bem disso.
Foi ao banheiro, meio na marra porque a essa altura tinha outras coisas querendo sair.
Ao sair do banheiro e olhar pra porta da sala percebeu novamente os vultos ao redor da casa. Foi até o quarto dos pais e chamou por eles. Eles não responderam.
Foi pra sala novamente.
A luz da sala se apagou (susto), um vidro se estilhaça na cozinha (susto maior ainda). A luz de fora flagra um rosto, coberto com um capuz, olhando pra dentro de casa, suas pernas ficaram bambas.
Gritou pelo seu pai, sua voz não saiu. Continuou olhando pro rosto que agora o encarava nos olhos. Mas ele só via algo embaraçado dentro do capuz. Correu o corredor e começou a bater na porta do pai desesperadamente. Voltou até a porta da sala. O vulto branco desapareceu.
Tentou abrir a porta. Não conseguiu, estava emperrada.
Correu pro quarto do seu pai e chamou novamente.
Eles não responderam. Gritou mais alto. Ninguém respondeu.
E cadê o maldito cão nessa hora?, pensou. Correu pra porta e tentou abrir de novo, e o que eu vou fazer sozinho ali fora. Olhou em direção a seu quarto, a luz estava piscando feito uma danceteria.
Eles estão brincando comigo.
Eles quem?
Voltou pro quarto dos pais e chamou mais, porém de nada adiantou.
Mas que mania que vocês tem de deixar a porta trancada, esbravejou até sua garganta doer.
Foi caminhando devagar até a porta. Cada passo parecia uma eternidade. Encostou o rosto na porta e ficou olhando seu quarto. A luz piscava mais lentamente agora, porém ainda piscava.
Começou a ouvir ruídos de vidro se rachando. Meio atordoado olhou pra porta e viu que no vidro se rachava como se se formassem teias de aranha. Parecia que tinha alguém pisando nele.
Deu um passo pra trás. Dois. Três. Quatro. O vidro se espatifou. Protegeu os olhos com o braço. Fragmentos de vidro voaram por toda parte, seu braço fora ferido e seu queixo também.
Caiu e engatinhou de costas. Encostou-se em alguma coisa, pensou que era seu pai. Olhou pra trás, não tinha nada.
Seu coração acelerou. Ele gritou.
Mas será que ninguém está ouvindo esses barulhos.
Correu mais uma vez para a porta do quarto dos pais. Chamou, chorando, pelo seu pai, sua mãe, seu irmão. Bateu tanto na porta que acabou com uma luxação no pulso.
Voltou para a sala, (surpresa), a porta esta intacta.
Relou nos machucados. Eles ainda estavam ali.
Chorou.
Sentou-se num canto da sala, segurando os cabelos com ambas as mãos e ficou parado, olhando pro nada.
Chorava por seus pais.
Tentara se acalmar.
Era impossível.
A porta.
Como alguém se acalmaria depois de ver uma porta quebrar-se e consertar-se como num passe de mágica?
No momento em que se tranquilizava, a luz da cozinha se acende sozinha. Apaga-se e acende a da sala.
E assim continuou. Em revezamento.
Cada vez mais rápido.
Estava ficando atordoado.
Começou a gritar.
Pedia para que parassem com aquilo. Perguntava o que queriam.
Não obtinha resposta.
As luzes piscando. Sem parar.
Levantou-se, foi até a cozinha, pegou a colher de pau e começou a quebrar todas as lâmpadas da casa.
Percebeu uma luz, branca, vindo de fora. Sem noção nenhuma foi até a porta e viu que ela se aproximava. Saiu de perto. A luz foi ficando fraca. Voltou a aproximar-se da porta. Quando se deu conta aquela coisa em forma de pessoa estava na sua frente. Cara a cara.
Ficou imóvel.
Sem falar. Sem reação nenhuma. Sem ver o que realmente era.
Fez cara de choro, começou a gritar e correr dentro de casa.
Correu em direção ao banheiro, sentou-se na porta.
Os olhos tremiam vermelhos. Faltava-lhe respiração. Faltava-lhe voz.
A luz começou então a entrar por baixo da porta. Pouco a pouco ela entrava, parecia fumaça soprada da boca de um fumante.
Ele não queria ver mais nada.
Entrou no banheiro.
Ligou a torneira da banheira, começou a tirar a roupa e entrou.
Será que ele queria se matar? Não. Havia um jeito mais fácil do que hipotermia.
Esquecera novamente do frio, mas dessa vez ele não se importava.
Viu que a luz estava se aproximando, e agora, entrando por baixo da porta.
Afundou-se na água e ficou o quanto seu pulmão aguentava sem respirar.
Voltou à superfície.
Aquela coisa agora estava completamente dentro do banheiro.
Ele ficou olhando pra ela, sem piscar.
Começou a formar um rosto. Do queixo ao nariz. Formou-se um sorriso. Macabro por sua vez, porém um sorriso.
O que queria? Ninguém sabe. Quantos deles havia? Um era suficiente pra fazer o que fez.
Decidiu sair.
Levantou-se devagar. Pensava em sair correndo. Pôs um pé pra fora da banheira, escorregou, deu com a cabeça no vaso sanitário.
Desmaiou.
Quando acordou já era dia.
Seu pai havia arrombado a porta do banheiro, chamado uma ambulância e ele estava numa cama de hospital tomando soro.
Começou a se debater, dizendo que tinha alguém querendo pegá-lo.
O enfermeiro o segurou. Machucou-se no braço que tinha a agulha.
Empurrou o enfermeiro que caiu nas bandejas ao lado da cama. Saiu correndo pelo corredor do hospital.
Aonde ele iria?
Outros dois enfermeiros junto com um segurança do hospital o seguraram. Debatia-se e gritava mais.
Alguma coisa queria pegá-lo.
Imobilizaram-no.
Sentiu sono. Não queria dormir de novo.
Fora sedado.
Quando acordou estava amarrado. Debatia-se na cama. Queria sair. Se ficasse amarrado seria mais fácil pra aquela coisa, segundo ele.
"Camisa de força" ouvira alguém dizer. Mas eu não estou louco.
Não completamente.
Fora sedado mais uma vez.
Acordou. Calmo dessa vez. Em um quarto... branco. Todo branco. Sem prateleiras nenhuma. E nem tinha sua própria decoração.
Cadê a coisa? Esse não é meu quarto!, dizia centenas de vezes a cada minuto.
Olhava pra todo canto do pequeno quarto. Até que viu a "pessoa de branco".
Não. Não era nenhum enfermeiro. Era aquela coisa. Aquele espectro que o atormentou alguma noite dessas.
Pergunto de novo: o que ele queria? Ainda não se sabe.

[...]

Não falei que eu teria outro quarto até o fim da história?
Pena que... era diferente do tipo que eu gostava.
Mas até que depois acabei me acostumando com ele. Afinal, nem fiquei muito tempo lá.
Foi rápida minha passagem naquele lugar. Fiz um grande amigo. Ele me visitava todos os dias. Mais do que meus pais, que me visitavam uma vez por semana, e olhe lá.
Mas foi bom. Eu gostei.
Ah! Esqueci de dizer. Não estou mais entre vocês. Estou no lugar do meu amigo de branco.

Você tem medo de espírito?
Então tente não olhar pra porta antes de se deitar...

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