O sol quente, um calor infernal. Carros, uma fila de carros parados em um monótono
sinal, descompassado, seria mais um dia daqueles, podia sentir no ar, na cara
das pessoas.
Meu carro parou à frente do sinal e vi um daqueles moleques fazendo malabarismo
com bolas, odiava aquilo, pois sabia que a maioria destes garotos faziam estas
exibições, enquanto outros moleques poderiam estar se preparando
para assaltar algum motorista distraído. Moleques, pequenos marginais
em fase de treinamento. O sinal abriu, o garoto magro, saiu da frente dos carros,
feio, crioulo, um short e uma camiseta suja.....
Oito e vinte cinco da manhã, tinha que ter chegado às oito em
ponto, droga de trânsito, droga de dia quente. Logo que entrei na delegacia
vi que minhas impressões do dia se confirmavam. Fui ao armário,
coloquei minha farda e fui me apresentar ao delegado de plantão. Policial,
odiava ser polícia, odiava a farda, a rotina, a miséria que presenciava
todos os dias mas fazer o que ? Se ainda estava na polícia era pela falta
de opção de emprego e talvez pelo poder que a farda me dava, pela
sensação de ser inatingível ao usar uma arma de fogo.
O delegado estava em uma pequena sala com um homem magro algemado, à
sua frente e dois colegas de farda dando apoio . O delegado gritava com aquele,
ameaçava dar coronhadas se ele não confessasse, sei lá
o que. Suado, com ódio nos olhos ele se calou e ficou mirando o sujeito
magro, foi ai que eu vi seu braço levantar e descer na nuca do marginal
desferindo um forte tapa na nuca dele. O sujeito caiu para frente como laranja
madura. Daí foram pontapés, socos, até o rosto, o corpo
do elemento ficar ensanguentado. Eu ali parado, na porta sem mexer um músculo,
cena comum, normal.
Levaram o sujeito desmaiado para uma cela e o delegado reuniu a mim e os outros
escalados para uma "blitz" que faríamos em uma estrada de acesso
para fora do rio. Havia rumores de que um traficante mais perigoso da cidade
iria traçar sua rota de fuga pôr aquela estrada. O piquete tinha
à sua frente um sargento , um cabo e eu, enquanto na retaguarda ficava
um tenente e dois soldados. Assim, fomos varando a madrugada examinando cada
carro, cada veículo suspeito em busca do traficante.
Ao final do plantão eu só pensava em ir para casa, cansado, muito
cansado. Saí do quartel dirigindo como um robô. Parei no sinal.
Outra fila de carros à minha frente. Coloquei meu braço na janela
e acho que cochilei porque quando vi, um menino estava ao meu lado, parado,
olhando-me com aqueles olhos esquisitos de quem passa fome. Foi automático,
talvez tenha sido pelo cansaço, pela soneira, pelo estresse, não
sei. Peguei o revólver que estava no banco do carona e atirei. Lembro-me
que vi o menino levar a mão ao peito e deixar suas bolas de malabarismo
caírem como frutas de uma árvore: ele me olhou e eu vi a vida
indo embora do seu corpo. Ele caiu para trás, alguém gritou. Fiquei
ali parado, olhando o corpo do garoto enquanto me seguravam. Daí foi
uma confusão dos diabos, gente queria me linchar, gritos, um camburão
chegou e me jogaram na caçapa, jornalistas, fotos, luzes, barulho....
Na delegacia o delegado me pedia explicações mas que explicações? Eu não sabia de nada, não havia entendido nada como explicar?
Ele me disse que não poderia fazer nada, que a imprensa estava lhe pressionando
que eu ficaria numa cela do meu quartel de origem até que fosse julgado,
que o governador queria me usar como exemplo, etc, etc, etc.....
Fui julgado, expulso da corporação, minha mulher me abandonou,
sem nada aprendi para me distrair a fazer malabarismos com bolas. Suportava
tudo, as humilhações, as ameaças mas à noite, quando
todas as luzes se apagavam era o meu desespero pois vejo na escuridão
da minha cela o menino e seus olhos famintos me olhando. Tenho medo e grito.