A Garganta da Serpente

Márcio Ferrazzo

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Inspiração e aspirações do Patriarca e dos empatriarcados

(Márcio Ferrazzo)

Um copo de café ao lado do computador, um cigarro aceso caindo dos lábios e um conto a ser escrito.... Um conto que insiste em permanecer incontável; a vontade do escritor fronte à barreira de concreto abstrata montada pelo que ele acredita responder por "escassez de inspiração".

A mulher pergunta o porquê da expressão emburrada. Ele diz-se assaltado pela tal "escassez..." Bruscamente, aumentando o tom da voz, ela completa a frase: "de inspiração!?". O pânico se instaura no lar. Os filhos vêm correndo à saleta, dividem agora espaço com a fumaça, indagações sobre a saúde intelectual do pai. Tudo isso porque ele é o patriarca da família, seu mantenedor, o único responsável pelas contas.

E os dois filhos e a mulher sabem bem que da mesma forma que eles dependem do pai para cumprir com seus vencimentos, o pai depende da tal inspiração para exercer essa admirável - e por vezes complicada - função, sob a forma de responsabilidade, de bancá-los.

Têm certa razão os dependentes em suas preocupações. Na última vez em que ele não conseguiu, subitamente, escrever seus textos - e esse período obscuro estendeu-se por sete semanas -, eles tiveram que trabalhar para não precisar emprestar dinheiro.

O filho homem, mais velho, já tinha dezenove anos, idade boa para pegar no batente, apesar dos temores de que o humilde emprego de vendedor na loja de calçados do amigo da mãe lhe atrapalhasse a faculdade de educação física. Já a filha, dezessete, repetido de série duas vezes já havia - a verdade é que ela pouco se importava com os estudos; pelo contrário, viu no emprego a oportunidade ideal para alcançar a "liberdade incondicional de mulher moderna", qual era seu discurso - quis arranjar seu emprego por conta própria.

A menina sempre foi "rebeldizinha", como o pai adjetivava a sua fúria de mulher do século vinte e um. Mulher!? Não passava de uma adolescente desmiolada, como muitas da sua idade e todas da roda de amigas. Desmiolada e despreparada para exercer a função de secretária. Não sabia que certos patrões cantam tais funcionárias, se as julgarem bonitas, naturalmente - e que ela era bonita, todos: patrões, empregados e desocupados concordavam.

Rejeitou o mesmo emprego do irmão, que o amigo da mãe lhe oferecera também, para consolidar sua independência junto aos pais e, de fato, conseguiu algo rapidamente: numa loja de automóveis usados. Pensou, na sua ingenuidade etária, que conseguira "convencer os proprietários da agência, na entrevista, de que era a mais bem preparada das garotas que passaram por ali".

Tão rapidamente quanto conseguiu o emprego, foi alvo de piadinhas indecentes dos patrões, mas enquanto eram piadas nada contou aos pais. Até o dia em que, num fim de expediente, uma cantada recebeu, bem direta: "Sai comigo hoje?", do sócio mais jovem da empresa, cinquenta e dois anos. Disse que não, instantaneamente. Durou mais duas semanas no cargo.

O filho permaneceu vendendo calçados até o dia em que ouviu um grito estridente, nitidamente submerso numa alegria incontida, vindo da saleta: "abundância..." E a voz da mãe bruscamente arrematando: "de inspiração!". Sete semanas ele trabalhou na vida. Há quase oito anos a felicidade e a paz reinavam no lar do escritor Gerônimo Francisco Neto.

Procedeu ao grito dos inconformados com a volta da escassez a orientação paterna: deviam recolher tudo em que havia o número sete. Gerônimo era supersticioso. Tinha um baú onde depositava o que entendia que lhe dava azar - e o sete encabeçava essa lista. Justificava a aversão ao numeral num tripé que chamava de "tríplice coincidência azarenta": a primeira decepção amorosa aconteceu quando tinha dezessete anos, seu pai morrera num dia sete de setembro e sua primeira crise de escassez durou sete semanas.

Seguiram, trabalhando pela felicidade geral do lar, a orientação do pai. Nada, desde os jogos de sete erros do suplemento de passar o tempo do jornal do dia à carteira profissional do filho, permaneceu fora do baú. Mas só isso não bastava: o segundo passo seria mudar a saleta de trabalho de lugar. Mas antes de qualquer atitude drástica, o escritor faria a última tentativa...

Sentou-se à frente da tela com a disposição de quem pretende vencer o inimigo oculto. Tomou o restante do café num gole só, sem nem notar que a xícara dispunha-se quase cheia. Também não viu o cigarro aceso deslizar da boca direto ao chão, onde encontrou com a desorganização: dezenas de folhas avulsas; quase álcool, tão fácil pegaram fogo. Mas nem o fogo armado em volta atraiu a atenção de Gerônimo.

A mulher e os filhos, em clima de tenção absoluta, nervosos e revoltados como as chamas que destruíam papéis talvez importantes para o próximo livro do pai, sentiram o cheiro de queimado. Como já havia um bocado de tempo em que o patriarca estava lá dentro, ignoraram - a inspiração poderia ter voltado, ninguém ousaria interromper - até que uma fumaça negra vinda da saleta juntou-se ao odor, agora insuportável. No par ou ímpar de mãos trêmulas decidiram quem verificaria o que ocorria.

Em nada a filha poderia rebelar-se contra a decisão da sorte. Vagarosamente, controlando seu ímpeto de mulher do século XXI, foi abrindo a porta do escritório. Quase não viu seu pai entre as chamas que o circundavam. Sem desesperar-se - afinal, percebeu-o escrevendo inspiradoramente! - e sem pedir auxílio à mãe ou ao irmão - isso era trabalho para ela! - apagou fogo a fogo em quatro viagens à torneira do banheiro com a bacia que já servira para refrescar seus dias de criança em outros verões.

Entre cinzas de enredos rascunhados, reacesa a chama da inspiração. Talvez rabiscos importantes queimaram-se, mas os três agora, aquecidos tal qual o fogo que há pouco alastrava-se ali, dançavam ciranda em torno do patriarca, do computador e da inspiração, aos gritos de: abundância! E saía um novo R$ conto...

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