Um copo de café ao lado do computador, um cigarro aceso caindo dos lábios
e um conto a ser escrito.... Um conto que insiste em permanecer incontável;
a vontade do escritor fronte à barreira de concreto abstrata montada
pelo que ele acredita responder por "escassez de inspiração".
A mulher pergunta o porquê da expressão emburrada. Ele diz-se assaltado
pela tal "escassez..." Bruscamente, aumentando o tom da voz, ela completa
a frase: "de inspiração!?". O pânico se instaura
no lar. Os filhos vêm correndo à saleta, dividem agora espaço
com a fumaça, indagações sobre a saúde intelectual
do pai. Tudo isso porque ele é o patriarca da família, seu mantenedor,
o único responsável pelas contas.
E os dois filhos e a mulher sabem bem que da mesma forma que eles dependem do
pai para cumprir com seus vencimentos, o pai depende da tal inspiração
para exercer essa admirável - e por vezes complicada - função,
sob a forma de responsabilidade, de bancá-los.
Têm certa razão os dependentes em suas preocupações.
Na última vez em que ele não conseguiu, subitamente, escrever
seus textos - e esse período obscuro estendeu-se por sete semanas -,
eles tiveram que trabalhar para não precisar emprestar dinheiro.
O filho homem, mais velho, já tinha dezenove anos, idade boa para pegar
no batente, apesar dos temores de que o humilde emprego de vendedor na loja
de calçados do amigo da mãe lhe atrapalhasse a faculdade de educação
física. Já a filha, dezessete, repetido de série duas vezes
já havia - a verdade é que ela pouco se importava com os estudos;
pelo contrário, viu no emprego a oportunidade ideal para alcançar
a "liberdade incondicional de mulher moderna", qual era seu discurso
- quis arranjar seu emprego por conta própria.
A menina sempre foi "rebeldizinha", como o pai adjetivava a sua fúria
de mulher do século vinte e um. Mulher!? Não passava de uma adolescente
desmiolada, como muitas da sua idade e todas da roda de amigas. Desmiolada e
despreparada para exercer a função de secretária. Não
sabia que certos patrões cantam tais funcionárias, se as julgarem
bonitas, naturalmente - e que ela era bonita, todos: patrões, empregados
e desocupados concordavam.
Rejeitou o mesmo emprego do irmão, que o amigo da mãe lhe oferecera
também, para consolidar sua independência junto aos pais e, de
fato, conseguiu algo rapidamente: numa loja de automóveis usados. Pensou,
na sua ingenuidade etária, que conseguira "convencer os proprietários
da agência, na entrevista, de que era a mais bem preparada das garotas
que passaram por ali".
Tão rapidamente quanto conseguiu o emprego, foi alvo de piadinhas indecentes
dos patrões, mas enquanto eram piadas nada contou aos pais. Até
o dia em que, num fim de expediente, uma cantada recebeu, bem direta: "Sai
comigo hoje?", do sócio mais jovem da empresa, cinquenta e
dois anos. Disse que não, instantaneamente. Durou mais duas semanas no
cargo.
O filho permaneceu vendendo calçados até o dia em que ouviu um
grito estridente, nitidamente submerso numa alegria incontida, vindo da saleta:
"abundância..." E a voz da mãe bruscamente arrematando:
"de inspiração!". Sete semanas ele trabalhou na vida.
Há quase oito anos a felicidade e a paz reinavam no lar do escritor Gerônimo
Francisco Neto.
Procedeu ao grito dos inconformados com a volta da escassez a orientação
paterna: deviam recolher tudo em que havia o número sete. Gerônimo
era supersticioso. Tinha um baú onde depositava o que entendia que lhe
dava azar - e o sete encabeçava essa lista. Justificava a aversão
ao numeral num tripé que chamava de "tríplice coincidência
azarenta": a primeira decepção amorosa aconteceu quando tinha
dezessete anos, seu pai morrera num dia sete de setembro e sua primeira crise
de escassez durou sete semanas.
Seguiram, trabalhando pela felicidade geral do lar, a orientação
do pai. Nada, desde os jogos de sete erros do suplemento de passar o tempo do
jornal do dia à carteira profissional do filho, permaneceu fora do baú.
Mas só isso não bastava: o segundo passo seria mudar a saleta
de trabalho de lugar. Mas antes de qualquer atitude drástica, o escritor
faria a última tentativa...
Sentou-se à frente da tela com a disposição de quem pretende
vencer o inimigo oculto. Tomou o restante do café num gole só,
sem nem notar que a xícara dispunha-se quase cheia. Também não
viu o cigarro aceso deslizar da boca direto ao chão, onde encontrou com
a desorganização: dezenas de folhas avulsas; quase álcool,
tão fácil pegaram fogo. Mas nem o fogo armado em volta atraiu
a atenção de Gerônimo.
A mulher e os filhos, em clima de tenção absoluta, nervosos e
revoltados como as chamas que destruíam papéis talvez importantes
para o próximo livro do pai, sentiram o cheiro de queimado. Como já
havia um bocado de tempo em que o patriarca estava lá dentro, ignoraram
- a inspiração poderia ter voltado, ninguém ousaria interromper
- até que uma fumaça negra vinda da saleta juntou-se ao odor,
agora insuportável. No par ou ímpar de mãos trêmulas
decidiram quem verificaria o que ocorria.
Em nada a filha poderia rebelar-se contra a decisão da sorte. Vagarosamente,
controlando seu ímpeto de mulher do século XXI, foi abrindo a
porta do escritório. Quase não viu seu pai entre as chamas que
o circundavam. Sem desesperar-se - afinal, percebeu-o escrevendo inspiradoramente!
- e sem pedir auxílio à mãe ou ao irmão - isso era
trabalho para ela! - apagou fogo a fogo em quatro viagens à torneira
do banheiro com a bacia que já servira para refrescar seus dias de criança
em outros verões.
Entre cinzas de enredos rascunhados, reacesa a chama da inspiração.
Talvez rabiscos importantes queimaram-se, mas os três agora, aquecidos
tal qual o fogo que há pouco alastrava-se ali, dançavam ciranda
em torno do patriarca, do computador e da inspiração, aos gritos
de: abundância! E saía um novo R$ conto...