A Garganta da Serpente
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Garota de programa

(Marcos Ferreira)

A boca vermelha, sem expressão nenhuma, apenas um rasgo na face, duas carnes polpudas, sem riso, sem cinismo, estáticas. Os olhos fixos num ponto distante, os braços ao lado do corpo, a bolsa a tiracolo, um vestido colado , estava ali e não estava. Talvez sua cabeça estivesse em algum lugar só seu, que não era vendido, trocado ou doado, um lugar que lhe pertencia eternamente.

Girou a cabeça em direção aos faróis que se aproximavam, um carro grande, caro, luxuoso. A porta do carona se abriu e ela entrou, a mágica se fez, os lábios sorriram um sorriso esplêndido, sedutor. O homem ao volante lhe beijou o pescoço com avidez, ela gemeu doce, oferecida.

As casas, as luzes, os prédios, as árvores, as pessoas, passavam ligeiras, translúcidas, opacas, rápidas, era assim que era sua vida: uma janela de um veículo em movimento em que tudo passava, sem ser tocado, sem ser olhado, apenas visto.

A mão em sua coxa, o sorriso de volta, as carícias, os sussurros, ela e o homem, parados em um banco de carro mas pela lei da física, em movimento, a vida era assim, o que parece ser talvez não fosse, o que estava ali talvez não estivesse. Fulgás, etéreo, sem forma. As sombras no quarto de hotel em movimentos confusos, frenéticos, as mãos do homem, a boca dele em sua boca, seus seios, suas costas, gemidos certos em horas certas, gritinhos certos em horas incertas, palavras montadas, feitas, ensaiadas mas que pareciam reais. A água do chuveiro a espuma do sabonete, o cheiro vazio do sabonete de hotel. Flagrou-se no espelho, o olhar vazio, frio, a boca morta, tapou o espelho com a toalha, pronto, sem reflexo, sem forma.

Os dedos contavam o dinheiro, somava, debitava. Logo seria outro dia, outra hora, outro carro, outras imagens.

Desceu do ônibus na esquina de casa, os cabelos soltos, a boca sem batom, uma calça jeans comum, uma blusinha discreta. O corpo perfeito, os homens "babando" a sua passagem, ela sem olhar para os lados, subiu a rua séria, quieta. Abriu o portão e o cachorro latiu com carinho para ela, fez festa, balançou o rabo, ela o acariciou e entrou em casa. A mãe e o pai viam TV, olhou-os, a emoção de vê-los ali, serenos, doces. O pai lhe sorriu e a mãe apressou-se a ir ter com ela.

- Toma mãe, estendendo um envelope, taí, o meu patrão me pagou hoje, acho que dá para as compras, as contas eu vou pagar amanhã.

- Muito trabalho no escritório filha ? A mãe já de posse do envelope lhe perguntava séria.

- Um pouco mãe, um pouco...vou tomar banho...estou me sentindo imunda.

No banheiro, tirando as roupas lentamente deixou-se ficar pôr alguns segundos se olhando no espelho, duas pequenas lágrimas lhe caíram das faces, aquela era sua imagem, a real.

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