A mala precisava ser levada para a capital e meu marido, um marido estranho,
que eu parecia não reconhecer , queria que eu e as crianças fôssemos
com ele. Mostrava-se ansioso e essa necessidade de nos levar nessa viagem parecia
ser vital. Por mais que eu tentasse entender essa premência ele nada revelava,
nem mesmo o conteúdo da tal mala. Garantia, porém, nada ter a
ver com drogas ou assemelhados, mas precisava da segurança da família
para levar a efeito a tal entrega.
Decidi confiar e partimos. Acomodamo-nos em um hotel que de algum modo me parecia
familiar embora jamais tivesse ali estado. A bendita mala, a um canto do quarto,
olhava-me com cara de desafio. Por mais que eu perguntasse, o marido desviava
o assunto, falava coisas sem nexo e nada contava.
Na manhã seguinte, deixamos as crianças dormindo e saímos
para a misteriosa entrega da misteriosa mala cujo destino apenas ele conhecia.
Em meio a uma praça apareceu repentinamente um grande número de
policiais, com armas apontadas para o meu marido e exigindo brutalmente que
a maldita mala lhes fosse entregue e, ali mesmo, em meio ao povo que se juntava
curioso ela foi aberta. Fiquei boquiaberta ao ver o seu conteúdo. A mala
estava cheia, até às bordas, de notas... Dólares!
Então, pensei, era esse o mistério. Dinheiro, dinheiro sujo, tráfico,
lavagem de dinheiro. Em meio à confusão que, em torno ia-se formando,
fui me esgueirando, deixando o marido nas mãos dos policiais e um único
pensamento girava dentro de minha cabeça conturbada: as crianças.
Ia caminhando com passos trôpegos em meio de toda aquela gente, quando
sinto que alguém me ampara, oferecendo-me um braço, um apoio.
Olhei para a pessoa e pude ver uma mulher bastante forte, grandalhona mesmo,
loura, sorridente que, simpaticamente, perguntava se eu estava bem e se podia
ajudar-me. Fui-me deixando levar pela boa senhora, o tempo todo resmungando
que precisava chegar ao hotel onde estavam as crianças, porém
sentia-me completamente atordoada e não tinha a menor ideia de
qual caminho tomar para chegar ao hotel. A bondosa senhora, sempre me segurando
pelo braço, indicava-me a direção, falando palavras de
consolo e encorajamento.
De repente, fez-me parar diante de uma escadaria que descia para um prédio
e pediu-me que a acompanhasse, pois precisava dar um recado para um amigo. Ao
adentrar foi que percebi que aquilo era uma Delegacia e a "bondosa senhora"
empurrou-me para aqueles homens fardados, ao mesmo tempo em que me apontava
e me acusava de algo que eu não podia entender:
- É ela, dizia esbravejando, estava com este revólver e atirava
a esmo contra a multidão.
Tudo aquilo era tão absurdo que eu me vi sem voz, totalmente incapaz
de negar fosse o que fosse de tais injúrias. Parecia-me tudo uma alucinação,
uma grande loucura. Meu Deus, quem é essa mulher que eu nem conheço
e ia levar-me aos meus filhinhos? Pus-me a chorar sem poder dizer uma palavra
em minha defesa. Só falava das crianças, que sozinhas estavam,
naquele estranho hotel.
Um policial pegou a arma de sua mão e perguntou: "Quantos disparos
ela fez? Viu se alguém ficou ferido?"
A mulher que parecia fora de si respondeu: "Deve ter dado uns dez tiros
e havia dois ou três caídos e ensanguentados".
Eu ouvia aquelas palavras de olhos esbugalhados, pensando que eu é que
estava ficando louca. Mas quem é essa maluca e o que quer fazer comigo?
Eu só fazia chorar e reclamar que queria os meus filhos, que eles estavam
sozinhos, que, pelo amor de Deus me levassem àquele hotel.
Logo os homens disseram à mulher que ela já podia ir embora e
aquele que estava com a arma, aproximou-se da cadeira onde eu me encontrava
arriada e só então eu comecei a falar que aquela mulher era uma
louca, que nada daquilo que ela contara era verdade. Que, por Deus, acreditassem
em mim e não me prendessem, pois meus filhinhos... Cansados de ouvir
minha ladainha fizeram um gesto para que eu me calasse. O homem que tinha nas
mãos a arma dizia aos outros que a tal mulher era, com certeza, uma doida.
A arma estava fria, não havia o menor sinal de ter sido usada nos últimos
anos e finalmente, dez tiros de um trezoitão era impossível. Somente
seis balas caberiam no tambor. OH! Como me senti aliviada. Todos aqueles homens
me tratavam gentilmente e um deles, mais gentilmente que os outros, observava
meu corpo como se me desnudasse e propunha levar-me onde eu desejasse... Eu
gemia, mais apavorada ainda, que só queria ver meus filhinhos e implorava
que me levassem ao hotel, onde com certeza as crianças, já despertas
e sozinhas, se desesperavam, e podiam sair às ruas, à procura
da mãe e... Novamente pediram que me calasse e o tal da arma, que parecia
ser o Delegado, deu ordem a dois dos outros que me encaminhassem até
o carro.
De repente, toda a sensação de pavor ia-se transformando em sensações
eróticas, não menos perigosas. Estava agora no banco de trás
de um carro e os homens voltaram para dentro do prédio, deixando-me a
sós. Foi quando percebi a aproximação de um garoto magricela
e sem camisa de uns doze anos de idade que me olhava de um modo que revelava
nojentas intenções. Ele abriu a porta do carro e entrou sorrindo,
um sorriso sádico, maldoso e foi encostando-se a mim. Num ímpeto
de ódio empurrei-o com todas as minhas forças e o vi cair sobre
a calçada. Fechei a porta do carro, pulei para o banco do motorista,
pois já havia notado que as chaves estavam no contato e saí. Ia
dirigindo como louca sem o menor sentido de direção.
Assim, como por efeito de um milagre, ou após um período de total
amnésia, causada pelos sucessivos choques, me encontro entre amigos e
familiares, o marido e as crianças. Todo mundo a me consolar e tentar
explicar o inexplicável caso da mala. Outros amigos iam chegando e entre
eles meu pai, que eu imaginava morto há muitos anos. Eu estava feliz,
mas exausta e quis um quarto, uma cama, para repousar. E para lá eu fui
estender-me, aliviada, numa grande cama de casal, completamente estranha para
mim. Minha cabeça era só confusão.
Entrou no quarto um senhor bonito e simpático que, com palavras suaves
tentava me acalmar e dizia que ali estava para impedir que quem quer que fosse,
tentasse fazer-me algum mal. Ah! Aconcheguei-me fazendo-me pequenina, contra
seu corpo forte, debruçado sobre mim, acariciando meus cabelos, meus
braços e quase sem intenção nos abraçávamos
como se nos amássemos. Quanto conforto e segurança naquele abraço,
e aos poucos, quanto desejo esse abraço ia despertando em nós
dois.
Porém, pessoas não paravam de passar por esse quarto indo para...
Sabe-se lá, aonde. Ele ergueu-se um pouco irritado, também desapareceu
por algum tempo e voltou trazendo um vestido que disse ter feito para mim. Comentei
alegremente que o decote era muito profundo e chegaria no meu umbigo. Também
sorrindo convenceu-me a prová-lo e dirigi-me então, para trás
de um biombo. Enquanto estava nua ele se aproximou e deslizou por meu corpo
o seu olhar libidinoso. Mandei-o embora enquanto me vestia e, quando saí
de trás do biombo, eu o vi aos abraços e carícias com minha
cunhada, exatamente como fazia comigo. Olhei muito zangada para ela que sem
uma palavra, levantou-se e saiu. Voltei para seus braços sem questionar
seu comportamento como se nele tudo tivesse uma razão de ser perfeitamente
explicável.
Agora eram crianças que saíam e entravam do quarto num silencioso
e incomodativo silêncio. Novamente levantou-se irritado, recompondo suas
vestes, seus cabelos e apanhando seus objetos sobre uma cômoda. Levantei-me
também e envolvendo-o por de trás, com meus braços, sugeri
que fôssemos para um motel já que ali não teríamos
um minuto de sossego. Ele negou com um movimento de cabeça dizendo que
estava sem dinheiro. Estranhei e perguntei como um homem como ele saía
de casa sem levar dinheiro consigo? Explicou-me, sem muito empenho, que não
havia passado na Empresa e iria até à fazenda para buscá-lo.
Achei estranho sua empresa ser uma fazenda e perguntei onde ficava. Respondeu-me,
mui naturalmente: "Em Minas Gerais".
Mostrei-me aborrecida... E ele: "Não tens do que reclamar. Já
dei ordem ao João que lhe entregue todos os dias 80 litros de leite.
Fica tranquila" Abraçou-me, beijou-me e perguntou: "Queres
ir comigo?"
Oh! Era tudo que eu desejava embora não soubesse nem o nome desse homem.
Saímos abraçados por uma estrada e ele dizia. "Basta caminharmos
até chegarmos àquele belo e vermelho crepúsculo".
E ia sussurrando aos meus ouvidos lindas palavras: "o fim do crepúsculo
está sempre cheio de sons que passam apressados, como se a alma das coisas
estivesse igualmente ansiosa pelo silêncio amigo do grande repouso".
Algo me dizia que em algum lugar eu já havia lido essas palavras, mas
onde?
Nesse momento exato ou sei lá quanto tempo depois, despertei cansada,
exausta, após essa noite de sonhos (ou pesadelos) tão estranhos.
Passei todo o dia sob a influência das lembranças terríveis
e maravilhosas de um sonho tão concreto que me fazia confundir a realidade
do dia com os acontecimentos oníricos da noite. Estava entardecendo e
eu saí caminhando na direção oeste, num querer descobrir
o elo entre a vida real e a dos sonhos. Tinha que haver algo mais...
O sol, por de trás das nuvens espessas e acinzentadas não era
mais que uma sombra luminosa. Ai! Solucei... Se todos os crepúsculos
fossem vermelhos!...