A Garganta da Serpente
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A saga de um homem manso

(Maristel Dias Santos)

I

José Roberto era filho de Dalva, que era empregada de Dona Lia, que era esposa do seu Caetano, que era dono da maior empresa de transportes da cidade.

Dalva sempre trabalhara para dona Lia e José Roberto foi praticamente criado naquela casa. Ficou moço e passou a fazer trabalhos de jardinagem para dona Lia e seus vizinhos ricos. Moço simples pouco frequentou a escola, mas o convívio com pessoas da elite ensinou-o a bem falar e bem viver. Era moço educado.

Conheceu Zenilda, filha de sitiantes e passou a namorá-la. Ia ao sítio da moça pelo menos um dia na semana, quase sempre aos sábados. Para chegar à casa da noiva passava por outro sítio que era apenas um pesqueiro, pois ficava na margem do rio e pertencia ao seu Caetano em sociedade com mais dois homens de bem: seu Marcos, dono da farmácia e Gilberto, um corretor de imóveis.

Um dia seu Caetano viu José Roberto passar defronte ao rancho e chamou-o para pedir que não contasse para dona Lia, fosse o que fosse que visse ou ouvisse a respeito dele e de seus amigos, por aquelas bandas. Logo Zé Roberto entendeu que aquela sociedade no pesqueiro tinha outras finalidades além da pesca. Era um bom disfarce para as badernas daqueles homens. Pescar era passatempo de homem, nunca as esposas iam lá, assim, podiam gozar de toda liberdade. Pecar era passatempo de homem, nunca as esposas iam lá, assim podiam gozar de toda libertinagem. Bem, era mais ou menos isto ou aquilo. Zé, que não tinha nada a ver com o peixe, não abriria a boca.

Acontece que um dia, ao passar por lá, viu uma bela jovem que estremeceu o seu coração. Passou uma vez, duas vezes, três vezes e sempre via a moça balouçando indolentemente na rede da varanda, quando os patrões não estavam ou servindo bebidas e lavando copos, quando lá eles iam.

Arranjou uma desculpa e num belo dia em que ela entregava-se aquele "dolce far niente", àquele repouso oscilante, dirigiu-lhe a palavra, que acabou sendo muitas palavras. Contou que a mãe trabalhava na casa da dona Lia e ficou sabendo que foi Gilberto que a trouxera de Minas, para ser a caseira do pesqueiro e também que, às vezes, vinham algumas primas dela passar ali o fim de semana.

Devia ser nesses sábados que o movimento tornava-se mais ruidoso e alegre. Tanto que do sítio de Zenilda podia-se ouvir o som de música e risadas. Mas ela não participava das festas, falou. Era só empregada naquele lugar.

Depois dessa conversa inicial, sempre que passava e via Josefina a balançar-se na rede, parava para dois dedos de prosa. Começou até a ir ver a noiva em dias da semana, quando os patrões não estavam por lá. Certa vez foi ficando, foi ficando e acabou não chegando a casa de Zenilda. Em breve não mais ultrapassaria os limites do pesqueiro. Parava por ali, mesmo. Apaixonou-se e assim fácil, fácil, pediu a moça em casamento. Ela respondeu que o consentimento devia ser dado pelo seu Caetano que era o patrão e pagava pelos seus serviços. Bom, se dependia só disso, já se sentia casado com a bela Josefina dos grandes olhos negros, dos seios pequenos e altivos, dos cabelos louros encaracolados, da pele cor de canela e das canelas finas e ancas largas, como bem convinha a uma potranca de raça. Queria essa mulher para si e fazia força de acreditar que só as primas é que vinham para a esbórnia. A sua eleita era moça direita. Não era ela que parecia um sabonete quando escorregava de suas mãos, de seus braços, se ele tentava um agrado mais ousado? E dizia - Só depois de casada. O Zé acreditava na moça e por ela punha a mão no fogo. Se, para tê-la devia casar-se, casar-se-ia!

É verdade que Zenilda também não lhe permitia essas liberdades, mas nem muita certeza tinha disso porque, na verdade, ele nem tentara nunca. Mas Josefina deixava-o louco, tirava o moço do sério. Casar-se-ia! Achava lindo falar assim, como dona Lia costumava.

Foi então falar com seu Caetano. Como ficou surpreso o homem! Disse que precisava consultar os sócios, pois também eram patrões da moça. Depois falaria com Zé Roberto.

Contou para a mãe e a mãe contou para dona Lia que se mostrou preocupada, inconformada de que ele deixasse um bom partido como era a Zenilda, filha de rico sitiante para se engraçar com aquela coisinha à toa, desconhecida, simples empregada do marido. Dona Lia falou assim com Dalva, mas, embora o seu Caetano não soubesse, ela sabia de muito mais que apenas da existência da caseira no pesqueiro. Gostava do menino Zé e tentaria impedir o desastre, isto é, o casamento. Reunir-se-ia com Márcia, mulher do Marcos, dono da farmácia e com Sueli, mulher do Gilberto, corretor de imóveis. Tentariam salvar Zé Roberto daquela armadilha. O que elas não sabiam é que da missa nem a metade sabiam.

Por outro lado, seu Caetano se reunia com os sócios para discutir o assunto. Os três concordaram ser providencial esse casamento, pois iria tirá-los de sérios apuros. Estava ali a solução para o recente problema em que se transformaram aquelas brincadeiras de fim de semana no pesqueiro. Haviam pescado mais que peixes. Na verdade estavam com uma piranha grudada em seus fundilhos. Josefina declarara estar grávida e nenhum dos três sabia quem era o pai. Nem ela sabia! Esse casamento vinha a calhar. Evitaria um escândalo, pois a moça já ameaçava pôr a boca no mundo e para retornar à sua terra, carregando a incômoda e ameaçadora barriga, exigia soma absurda. Sem contar que a caipirinha estava-se saindo tão esperta que com certeza viria a ser uma ameaça para o resto da vida. Ia viver chantageando aqueles três distintos senhores da sociedade local.

Decidiram oferecer ótimo salário para o Zé ficar trabalhando no pesqueiro e estava resolvida a gravidade daquela gravidez. Sim, fariam o casamento e até padrinhos seriam do jovem casal.

Dona Lia sabia de outras coisas que não falaria para Dalva. Procurou dona Márcia, mulher do seu Marco da farmácia e a dona Sueli, mulher do Gilberto, o corretor e teve com elas uma reunião a portas fechadas. Decidiram que fariam o possível para impedir aquele casamento. Dona Lia gostava do Zé, menino criado em sua casa, mas outro motivo tinham as mulheres para impedir o casamento. Sabiam o quê essa tal moça era para os maridos. Sabiam que Gilberto a trouxera de seu estado natal para terem uma diversão extra e que os três transavam com a moça. Haviam chegado a essa conclusão quando passaram a falar sobre o assunto e começaram a somar dois mais dois. Se esse casamento acontecesse essa moça ficaria para sempre na cidade e isso elas queriam impedir. Nunca os maridos deveriam saber que elas sabiam. Na verdade eram três folgadas e tinham à disposição delas as burras, sempre cheias, dos respectivos maridos e desse privilégio não abririam mão, nunca!

Dona Lia ficara incumbida de tentar dissuadir o moço a levar em frente a decisão de casar-se. Enchia a cabeça da coitada da Dalva para que ela se tornasse uma aliada no propósito de evitar a asneira que o moço queria levar a efeito. Aquelas mulheres fecharam o cerco em torno do pobre do Zé que já estava quase ficando convencido da besteira que podia estar fazendo. Mas quando ia ver a Josefina caía de quatro. Queria e teria essa mulher. Nem ouviria mais a mãe ou a dona Lia. Seu Caetano até lhe oferecia um bom trabalho, pintaria a casa e como padrinhos, ele e os sócios dariam todos os móveis novos para a casa do pesqueiro, onde ficariam morando. Ele e a sua Josefina. Que mais podia querer? Não entendia aquela implicância da mãe e da patroa. Andava aborrecido com elas. Casar-se-ia! Nem que fosse só por birra.

Depois de tanto diz-que-me-diz, o encantamento de José Roberto ia arrefecendo e às vésperas do casamento já começava a arrepender-se. Os padrinhos interferiam e tratavam de reacender os ardores e a ambição do moço, com promessas práticas e virtuais. Pacato por natureza ia-se deixando convencer. Foi, porém, no dia do casamento que esteve a pique de abandonar o altar e desistir de tudo. Aconteceu que, quando todos já estavam na igreja, seu Marcos e seu Caetano foram buscar a noiva no pesqueiro e hora e meia depois ainda não haviam voltado. O plácido e cordato Zé Roberto sentiu-se muito ofendido e humilhado perante os parentes e convidados. Só esperava a moça chegar para dizer-lhe que não haveria mais casamento nenhum. Quando começou a falar, os três padrinhos apavorados, interferiram e conseguiram fazê-lo ir a cabo nesse evento. Todas as esposas estavam presentes e sorriam disfarçadamente, torcendo por ver explodir o escândalo que assustava tanto aos maridos. Elas nem imaginavam que a coisa seria bem pior do que podiam imaginar. Que tiveram é sorte de ter ido a cerimônia até o final. Haveria uma festa no pesqueiro. As primas estavam lá para ajudar e Zé Roberto entendia o motivo do atraso da noiva. As esposas, o padre e outros convidados também lá foram. Durante toda a festa Zé Roberto ficou arredio e só queria que acabasse logo aquela palhaçada.

Por fim, todos se foram para deixar o casal a sós. Grande coisa! Zé Roberto sabia que nada ia rolar. Mas foi Josefina que veio se desculpar dizendo que por causa do nervoso tinha ficado menstruada, estava indisposta e queria ficar sozinha no quarto nupcial. Zé Roberto achou ótimo e foi acomodar-se em um dos beliches, que ficava em outro quarto.

No dia seguinte levantou cedo e foi cuidar do pomar de laranjas. Nem viu a esposa que estava trancada no quarto e pelo jeito ia dormir a manhã inteira.

Na hora do almoço voltou e até ficou surpreendido por ver comida feita, quentinha no fogão. Mas a cara da noiva não viu. Os dias seguintes seguiram a mesma toada. Mas, assim, sem mais nem menos, ela foi-se chegando e acabou por convidá-lo a ir dormir na cama do casal. Zé Roberto achou por bem ir, era melhor que fizessem as pazes. Afinal estavam casados e agora nada mais podia fazer. O casamento consumou-se como que por obrigação. O desejo, da parte do Zé, esfriara e parece que da parte de Josefina nunca existira. Foram tocando aquela vidinha morna, do jeito que o diabo gosta. Parece que não conseguiam nem se entenderem mais.

Algum tempo depois a mulher veio contar que pensava estar grávida. Não se mostrava nem um pouco entusiasmada, porém Zé Roberto ficou eufórico. A coisa que mais ele desejava da vida era ser pai, um dia. Passou a ser mais carinhoso e a cuidar com dedicação de Josefina. Ela se acomodava e deixava que o Zé fizesse tudo, até as tarefas domésticas e quase nem saía da cama. Comia, dormia e engordava. Zé Roberto estava cuidando, não da mulher, mas sim do filho que tanto desejava.

Os patrões apareciam de vez em quando, mas não ficavam mais que o necessário para trazer ou levar alguma coisa para o pomar ou simplesmente dar alguma ordem ou trazer o ordenado do casal. Bom que assim fosse. Zé não ia gostar se a farra continuasse como antigamente. Assim os dias iam passando e quando mal fazia sete meses daquela gestação, Josefina entrou em trabalho de parto. Zé Roberto ficou meio louco imaginando se o filho ia sofrer consequências desse parto prematuro. Teve que correr atrás de uma carona que levasse a mulher para o hospital. Avisou aos patrões, pois que não estaria no pesqueiro naqueles dias e os três homens acabaram aparecendo no hospital para saber se o Zé estava precisando de alguma coisa e pediram que tudo fosse feito da melhor maneira, não levando despesas em conta. Zé Roberto pensava que, afinal, eram bons esses homens. Ficou muito agradecido. Falou da sua preocupação por estar antes do tempo e os três trataram de fazê-lo compreender que com sete meses a criança está prontinha para nascer e que depois dos sete meses só engorda na barriga da mãe. Ficasse tranquilo, o bebê estava muito bem. Já tinham conversado com os médicos.

Zé Roberto sentiu-se muito aliviado. Ficaram todos eles fazendo companhia ao moço que cada vez mais admirava a bondade dos patrões. Só pela manhã vieram chamar o pai para ver a parturiente e o bebê. Estavam ambos muito bem. Os patrões regozijaram-se com Zé Roberto, mandaram que fosse logo ver o filho, que eles estavam indo embora. Zé Roberto pediu que avisassem a mãe e também a dona Lia. Ficasse sossegado, fariam isso. E saíram ainda um tantinho preocupados. Teriam conseguido convencer o moço? Bem, nada mais podiam fazer. Era torcer para dar certo.

Horas depois chegava a Dalva com a dona Lia. Dalva abraçou o filho, foi ver o menino, mas chorava sem parar. Não ficasse preocupado. Era só de emoção que ela chorava, falava dona Lia com cara de quem sentia muita pena do pobre do Zé. A verdade é que desde que soubera da gravidez da moça, Dalva já vinha chorando e para dona Lia contava que o filho era estéril. Tinha tido grave cachumba quando era menino. A cachumba descera e o médico dissera que ele nunca iria ter filhos. Mas, como contar isso ao coitado do Zé?! Bem que tentaram alertar o moço! Bem que tentaram impedir essa desgraça. Não, se dependesse dela e da dona Lia jamais ele saberia das desconfianças da mãe e da patroa. As duas mulheres guardavam a sete chaves esse segredo, cada qual por motivos diferentes. Melhor que as coisas ficassem assim. Melhor para todo mundo.

Dona Lia ficava-se questionando qual daqueles três homens seria o pai dessa criança. Provavelmente nunca saberia. A não ser que Deus o tivesse carimbado com a cara do pai ou trouxesse alguma marca de família. O futuro diria...

Mas... como era grande e forte o seu filho! Zé Roberto babava diante da parede de vidro que o separava do berçário. Tantos bebês ali, será que não o haviam trocado? Não, não. Parecia-se um pouco com a mãe e, incrível, tinha o nariz igualzinho ao seu! Estava radiante! Quanto ia amar essa criança! Havia de dar a ele tudo que desejasse. Mais que nunca ia dedicar-se ao seu trabalho e àqueles santos de patrões que ele tinha. Zé Roberto estava muito feliz. Josefina é que andava estranha. Não parecia alegrar-se ao pegar o filho nos braços. Examinava-o com muita atenção e detalhadamente, mas tinha preocupação e não alegria na face. José Roberto não compreendia, mas também, há muito deixara de tentar entender a mulher. Era sempre tão esquisita!

O menino ia crescendo lindo, cercado de carinho, principalmente da parte do pai que, simplesmente, o adorava. Quanto a Josefina, cumpria seus deveres sem muita convicção. Parecia sempre aborrecida e a vida conjugal, em seu sentido bíblico, não existia. Nunca mais, depois do nascimento de Lucas, tiveram sequer um gesto de amor, de carinho. Mal se falavam e Zé Roberto dormia no quarto dos beliches. Agora, que o menino estava sendo desmamado, também ele foi para o outro quarto. Zé Roberto achava ótimo pois muitas noites ouvira a mãe, impaciente gritar com o garoto. Isso ele não admitia e muitas vezes teve de interferir energicamente. Daqui pra frente ficaria com ele, no quarto dos beliches. Levou para lá o berço e, à noite, era o pai que levantava para niná-lo se acordasse chorando ou para fazer a mamadeira. A preferência da criança pelo pai era natural e evidente. Em poucos dias completaria um aninho e já ensaiava os primeiros passos.

Josefina sentia-se mais livre após desmamar o menino e como o pai cuidava de todas as suas necessidades, começou a sair de casa e ia constantemente para a cidade onde passava muitas tardes em casa de amigos ou simplesmente batendo pernas. Se Zé Roberto já estivesse livre de suas obrigações no pomar, ficava com Lucas e nem lhe incomodava esses passeios da mulher. Falar a verdade, ela, para ele, não era mais que uma das utilidades da casa. Sentimento recíproco, pois Josefina olhava para ele como se estivesse encarando uma vassoura velha. Só a criança fazia essa união sob o mesmo teto ir prosseguindo. E também o caráter pouco ardente de Zé Roberto. Mulher não lhe fazia falta. Mas com Josefina a coisa era diferente. Temperamento fogoso, vivia sobre brasas. Continuava ainda ali porque tinha um pouco de medo daquele homem devido ao amor excessivo que ele demonstrava pela criança. Tinha às vezes vontade de rir na cara dele, quando falava, daquele jeito orgulhoso: o meu filho... Tinha ganas de falar: que seu filho o quê... Se nem eu sei filho de quem é esse infeliz... Mas calava-se, chegaria a hora. Sabia que não continuaria muito tempo naquela vidinha miserável. Sonhava com voos mais altos. Era só o menino ter um pouco mais de idade.

Lucas ia completar quatro anos. Já conversava sobre tudo e até acompanhava o pai nos trabalhos da roça. A essa altura Josefina voltava a ser a mesma que era em solteira. Vivia mais na rua que em casa. Chegava sempre toda chique, unhas coloridas, batom e cabelos pintados. O menino gostava muito dessa mãe perfumada e bonita, mas era para o pai que corria sempre que queria alguma coisa. Josefina parecia uma visita em sua própria casa. Zé Roberto imaginava as coisas que ela andava fazendo. Quantos amantes devia ter! De outro modo não teria dinheiro para aqueles luxos. Pouco se lhe dava.

Dona Lia e Dalva tentaram falar-lhe a respeito, mas ele cortou a conversa, sem querer ouvir nada. Fez com que elas compreendessem que para ele só o filho importava. Ela que fizesse o que bem entendesse desde que longe dos dois.

Uma noite, quando Lucas já estava dormindo, Josefina procurou o marido, dizendo precisar ter com ele uma conversa séria.

Zé Roberto sentiu gelar o seu coração. Sabia, sempre soube que esse momento chegaria, mas temia essa chegada, pois não tinha ideia das intenções da mulher. Ela que não tentasse separá-lo do menino. Se quisesse ir embora de vez, que fosse. Ele até dava graças a Deus. Mas, se... Não, não ficaria sem o filho. Que ela nem tentasse...

Josefina contou-lhe que já estava praticamente vivendo com outro homem. Que estavam apaixonados e queria separar-se do marido. Zé Roberto concordou de pronto. Perguntou o que seria de Lucas e ela disse, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que o menino iria com ela. Foi aí que as coisas esquentaram. De jeito nenhum! Ela podia ir com quem e para onde quisesse, mas Lucas ficaria com ele. Josefina ainda tentou ser persuasiva, calmamente dizendo que numa separação sempre os filhos ficam com as mães... Zé Roberto estava a ponto de perder a cabeça. Isso é que não. Qual mãe! Qual nada! Então ela não sabia muito bem que quem criara o menino fora sempre ele? Que direito uma mãe assim pensa que pode ter? Era seu filho... seu filho...

Era só o que Josefina estava esperando ouvir para jogar na cara do pobre homem toda a verdade. Ele não tinha filho nenhum. Na verdade, nem podia ter filhos. Perguntasse à mãe. Se esquecera da caxumba que tivera quando pequeno? Ele era estéril e dessa criança ela já estava grávida quando se casaram. O idiota acreditou que uma criança de sete meses podia ser do tamanho do Lucas? Acreditou porque quis. Sempre foi mesmo um corno. Devia gostar de ser corno. Se nem ela sabia quem era o pai!

Zé Roberto estava paralisado. Esperava tudo... Tudo... Menos isso. Lucas não era seu filho? Porque não caía morto, nesta hora, varado por um raio piedosamente enviado por Deus? Pra que continuar vivendo? Para quem? Lucas não era seu filho... E ele não sabia, ao menos, quem era o seu pai. Pensava naqueles três homens, seus patrões e não encontrava semelhança do menino com nenhum deles. Talvez do Gilberto. Tinham a mesma cor de cabelo. Mas, os olhos, aqueles olhos esverdeados podiam ser do seu Marcos. Não, seu Marcos é homem de pouca estatura e o menino prometia ter grande altura. Seria, então do seu Caetano? Pode ser. A forma física...

Agarrou a cabeça entre as mãos e saiu gritando porta a fora. Correu emitindo berros com toda a força de seus pulmões, ia por entre os pés de laranja, espinhando-se, trombando com galhos, tropeçando em raízes, até que caiu, o rosto enterrado naquela terra que tantas vezes ele afagara. Zé Roberto chorava, chorava em altos brados.

Horas depois retornou à casa, coberto de terra, a roupa esfarrapada, olhos inchados que mal conseguia abrir. Josefina já tinha ido e levado o Lucas. Melhor assim. Não sabia como encará-lo e manter-se calado Pela primeira vez ele se via ali sozinho, sem o seu menino. O menino que não era dele. Dolorosamente lavou-se, trocou de roupa, pegou suas coisas que enfiou em um grande saco e saiu, sem fechar porta ou porteira. Parecia um zumbi. Muito teve de caminhar até chegar à casa da mãe.

Dalva abriu para ele a porta e os braços. Não fez uma única pergunta. Ela sabia que esta cena um dia aconteceria. Para ela as coisas estavam claras. Pobre filho! Durante todos aqueles anos manteve o seu quarto intacto, sua cama, suas coisas, tudo esperando por ele.

Como se nada tivesse acontecido, no dia seguinte, o homem levantou-se e foi cuidar de suas ferramentas. Ia voltar a trabalhar nos jardins para ganhar o pão de cada dia e fazer companhia àquela mãe fiel. Era o que tinha de fazer. Ninguém tocava no assunto. Pra quê? Não se mexe em ferida aberta. Cobre-se e deixa estar, até que se forme uma casca sobre ela. Felizmente tinha uma mãe sábia, aliás, como são quase todas as mães.

Tempos depois recebeu a visita de um oficial de justiça. A mulher tinha pedido o divórcio, queria pensão para o filho e marcaria um dia para Zé Roberto ir vê-lo. Amargamente o homem sorriu. Andava morrendo de saudade do Lucas e estava disposto a pagar esse preço para poder vê-lo de vez em quando. A criança não tinha culpa de nada e o Zé não ia deixar de amar aquela criança que, por tantos anos, fora a razão de sua vida. Precisava também levar em conta que tanto o agradara e, agora, quanto o menino devia estar sentindo falta do pai! Para Lucas esse era o único pai que existia, entre tantos que podiam ter sido! Não podia, jamais, privá-lo do amor de um pai. Ele era o único homem, sobre a face da terra, que tinha esse amor crescido e expandido em seu coração. Tinha e podia dar.

Por amor, Zé Roberto viveu o resto dos seus dias trabalhando arduamente, pagando a pensão devida e guardando um pouco, para gastar quando saísse a passeio com o filho, naqueles dias de visita. Assim, mansamente, Zé Roberto viveu para aquele seu único filho, que outro jamais poderia ter.

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