Enfim, relaxar! Que alívio adentrar esse ônibus para uma repousante
viagem de três horas que me levará de volta ao lar. Caminhar quilômetros
pela 25 de Março, subir e descer a Ladeira Porto Geral foi extenuante.
Essas viagens para São Paulo, atrás de tecidos incertos para uma
incipiente confecção (ou seriam tecidos incipientes para uma incerta
confecção?) são esgotantes. Sentar, reclinar o encosto,
fechar os olhos, talvez dormir... obrigada, Deus!
Foi com enorme desagrado que percebi o homem sentar-se na poltrona ao lado.
Tive vontade de dizer: "o ônibus está vazio... porque se sentar
aqui?!" Ele já chegou falando. Era aquele o número que constava
em sua passagem. Fraca desculpa! Ninguém respeita isso, principalmente
quando a maior parte dos lugares estão vagos. Logo percebi que a sua
intenção era mesmo ter com quem falar. E falar era o que eu menos
queria. Muito menos ficar ouvindo prosa mole. Olhei o homem: uns 50 anos, talvez;
gordo, bigodudo, chapéu de boiadeiro. "Ai, eu mereço",
pensei, "que castigo!" O que eu não sabia, nem podia imaginar,
era o quanto essa viagem tornar-se-ia proveitosa. Iria encontrar naquela conversa
pouco desejada, o outro lado de algumas de minhas mais arraigadas convicções.
Isso era, para minha inteligência, sempre disposta a filosofar, analisar
fatos e pessoas, um delicioso desafio. Muito bom para mostrar-me o quão
pouco sabia eu, que pensava ter já todos os conceitos estruturados. É
mesmo certo que enquanto se vive se aprende. Pensei na velhinha agonizante cujo
filho, não tendo em casa uma vela para colocar nas mãos da moribunda,
amarrou palhas secas, de milho, ateou fogo e segurou entre suas mãos.
A velhinha, antes de exalar seu último suspiro, abriu os olhos, viu a
"vela" e exclamou: "Bem que dizem, morrendo e aprendendo..."
- Quando o tempo está assim, ameaçando chuva, sinto dores no corpo
inteiro. Uns anos atrás quebrei todos os ossos do corpo. _ falou o homem.
Educada e casualmente, perguntei:
- Sofreu um acidente de carro?
- É. Mais ou menos. Pra falar a verdade, foi uma coisa! Por isso eu sempre
digo: ninguém morre na véspera. Eu acredito no destino. A senhora
acredita?
- Bem, sim. Mas existe o livre arbítrio...
- Não, nada acontece se não tiver chegado a hora. A senhora vê:
tem gente que leva dez tiros e não morre. Tem gente que escorrega na
calçada, bate a cabeça e... Tchau. Olha, foi assim. A senhora
sabe, eu sou aposentado da polícia militar. Bombeiro. Naquela noite eu
'tava no cinema. Era minha folga. Assim, à toa, resolvi ir para o quartel,
dormir. O filme 'tava chato, sei lá. Quando cheguei, o colega que 'tava
servindo deu graças por eu ter voltado e me pediu pra dar o seu serviço,
pois sua mulher tinha vindo chamá-lo que o filho deles estava muito mal.
Eu tinha acabado de vestir a farda, a sirene tocou. Era um incêndio. Eu
era o motorista. Saí e alguns quarteirões adiante, um pneu estourou,
o carro capotou e eu me arrebentei inteiro. Fiquei um tempão no hospital.
Só escapei porque não era a minha hora. É assim que é.
- Você quer dizer... bem, se o filme fosse bom... ( isso explicava o porquê
de querer sentar na poltrona que lhe fora destinada pelo número em seu
bilhete.)
- Pois é, 'tá vendo?
- Mas tem coisas que a gente pode fazer acontecer ou evitar que aconteça...
- Isto também é certo. Sabe duma coisa? Eu entrei para a polícia
porque odiava ela. É verdade! - - - reiterou, ante o meu olhar incrédulo.-
- - _ Pois é. Eu tinha 17 anos e estava de passeio numa cidade perto
da minha. Aconteceu uma dessas brigas de bar e eu que 'tava só olhando
fui levado para a delegacia junto com os outros. Um investigador que não
foi com a minha cara, pegou no meu pé e queria que eu confessasse, sei
lá o quê. Daí apanhei, feito cachorro. Quando saí
da delegacia já estava resolvido que ia ser meganha. Nunca mais ia apanhar
de um "policia filho da p..." Eu ia fazer o serviço militar
no outro ano e decidi continuar na escola militar. Por dois anos só vivi
para aprender. Olha esses calos sobre as juntas dos dedos - murros, caratê,
tudo quanto é tipo de luta pra defesa pessoal. Aprendi também
a usar uma arma. Exercitei meus músculos. Fiquei forte como um touro.
Depois, já formado, voltei um dia àquela cidade. Tomei um quarto
no hotel, pus a roupa civil e saí, após de ter telefonado para
o infeliz. Eu sabia qual era a companhia dele. Pra falar a verdade durante todos
esses anos eu não perdi ele de vista. Acompanhava de longe tudo o que
acontecia com ele. Telefonei, marquei um encontro naquele mesmo bar, sem me
identificar. Alguma coisa ele desconfiou. Veio em trajes civis, mas acompanhado
de dois "anjos" que eram fortões, uns "guarda-roupa".
Enfrentei os três. Apanhei um pouco, mas deixei todos estendidos no chão.
Depois fui pro hotel, pus a farda e voltei lá. Eles 'tavam ainda no bar,
lambendo as feridas. O homem ficou de queixo caído. Aí eu me identifiquei
e fiz ele lembrar de mim.
- Não acredito! Fez tudo isso por uma vingança? Anos de sacrifício
e treino para vingar-se?
- É... Foi... Mas não só isso. Eu tinha resolvido que nunca
mais ia apanhar sem ter como me defender. É por isso que eu digo: quem
sofre alguma coisa faz por merecer. Aquele que mata um assassino é só
um instrumento de Deus.
- Então você acredita naqueles que falam: "eu só enfiei
a faca; foi Deus que matou..."
- Exatamente... E não é?
Eu não podia deixar de admitir uma certa razão. Parecia estar
vendo a outra face, a face oculta da lua. Então, será essa a base
filosófica que a policia tem para desculpar a si própria e poder
explicar os excessos que pratica? Interessante. O homem não parava de
falar. Mostrava agora um vidrinho com pílulas que havia adquirido na
farmácia militar, por poucos centavos. Mostrou a nota de compra. Tomava
esse remédio (algo "qualquer coisa" sódica) em substituição
ao Voltarem, muitíssimo mais caro e menos eficiente, falava ele.
- Mas, onde se acha isso?
- Não acha. Qué dizê, acha com outros nomes, nas farmácias
e muito, muito mais caro. Não tem nem comparação! A senhora
sabe, a indústria farmacêutica inventa nomes e embalagens bonitas
para valorizar remedinhos que custam quase nada.
"Claro que eu sei", pensei. "O homem é inteligente! E
não pára de falar..." Para reforçar a tese que quem
morre tem de morrer, coisas do destino, iniciava outra história.
- _Foi uma amiga que me chamou para ajudá-la a recuperar sua camioneta
que foi roubada. Pois é. Ela vendeu o carro para uns homens que ela não
conhecia e como eles iam pagar com cheque, ela, pra se prevenir, disse que preferia
fosse o pagamento feito em dinheiro. Eles disseram que moravam em uma outra
cidade e propuseram que o capataz da minha amiga fosse com eles, na própria
camioneta e voltaria de ônibus com o dinheiro. Por isso o empregado ia
levando os documentos e o recibo assinado. Na estrada, obrigaram o coitado a
entregar os papéis e saltar do carro. Deram-lhe uma surra daquelas e
fugiram com carro, documentos e tudo. Resultado. Era como se ela tivesse mesmo
vendido o veículo. Não adiantava nem dar queixa na polícia.
Ninguém ia fazer nada. Cheguei lá e fui direto à delegacia.
Confirmaram o que tinham dito pra minha amiga. Para mim disseram- Aquilo é
uma quadrilha. São perigosos e eu não vou arriscar a vida dos
meus homens. Por que não vai você buscar o carro da sua amiga?
- Bom- eu disse- vou mesmo e trago o bando todo, vivo ou morto. Ficaram rindo
de mim, mas eu fui. Os bandidos estavam tocaiados numa chácara perto
da cidade. Pus três armas carregadas na cinta e fui. Tive que jogar onze
corpos na carroceria, mas trouxe o carro.
- Matou todos?!!! (olhos arregalados) Não sentiu pena?
- Mas não foram eles que procuraram isso? Se não tivessem ido
lá, roubar a minha amiga 'tavam vivos até hoje...
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Pior. Tinha que concordar
com o argumento daquele rude homem sábio.
- Matou todos!...Não sentiu pena?
- Só do último. Ele implorou que eu não atirasse, mas eu
disse - Todos os seus amigos já se foram, o que você vai ficar
fazendo aqui sozinho e bum...
- Meu Deus! E aí?
- Levei os onze corpos pra delegacia e larguei lá.
- E não sofreu nenhuma consequência?
- Fiquei preso uns dias, fui julgado pela Militar e absolvido. Afinal eu fiquei
com oito balas no corpo. Foi legítima defesa.
Falava essas coisas com naturalidade e rindo, como se tudo não passasse
de uma grande piada.
Eu pensava: é um bandido ou um herói esse homem sentado ao meu
lado? Devo sentir-me protegida ou ameaçada? Ele, como se estivesse lendo
seus pensamentos, argumentou.
- Se você não faz mal a ninguém não tem que temer
nada. Ninguém vai procurar você pra matar, não é
mesmo?
- Não sei, não sei... E os inocentes que morrem apenas porque
estão por perto?
- Era hora de morrer...
- Era a hora dos onze?
- Ah!... Não sei...Mas eles pediram isso. Devia ser.
Em toda a minha vida, cercada de proteção, conhecendo apenas um
dos lados da legalidade, eu nunca imaginara estar, um dia, lado a lado, com
um homem desses. Estava abismada. Ele se considerava um instrumento nas mãos
de Deus e falava tanto Nele! De certo modo era convincente. Que estranha perturbação...
Queria que chegássemos logo ao destino do homem, uma cidade antes da
minha. Precisava ficar a sós com meus pensamentos. Colocar ordem no tumulto
que ia em minha mente. Ele continuava:
- Eu também... Adoro os animais e não permito que maltratem eles.
Um dia eu estava com a mulher, uma delas. Explicou que tinha três. A primeira
e única de verdade da qual estava legalmente separado, a ex., que era
advogada. A segunda, uma fazendeira rica que o tratava a pão-de-ló
e a terceira, aquela que estava com ele na margem do rio e era a sua companheira
nas viagens e colônias de férias. Disse que se dava bem com todas
igualmente e elas se davam bem entre si.- "Uma só não dá
conta de mim, sabe, dona? Então elas me dividem numa boa e eu não
aborreço nenhuma delas".
- E não tem medo que elas paguem na mesma moeda? Quero dizer, ser traído...
- Ponho minha mão no fogo! Nenhuma delas faria isso. E se fizessem, falariam.
Olhe, o segredo de se viver bem é sempre abrir o jogo. Mentir é
o pior negócio que existe.
- É mesmo?
- Mas então, voltando ao assunto, eu vi que uns garotos jogavam um gatinho
no rio. O pobre voltava nadando para a margem e eles jogavam outra vez. O coitado
já não conseguia mais nadar. Peguei o infeliz, embrulhei nuns
panos e pus dentro do carro. Os meninos vieram bravos, pois eu tinha estragado
a diversão deles. Eu não quis arranjar encrenca com os moleques.
Disse que queria o gatinho para mim e pedi que me dessem o bichano. Eles concordaram
e foram embora. A mulher criou o gato que virou um gatão. Era muito mansinho
e brincava com os cachorros lá de casa. Um dia o infeliz resolveu dar
umas voltas no quintal do vizinho e o cachorrão dele quase matou o coitado.
Tratamos dos seus ferimentos e a mulher falava: - "que ódio desse
cachorro. Dá vontade de dar veneno".- "Precisa não,
ele não dura muito", eu disse. Não demorou duas semanas e
o cachorro morreu. Foi envenenado.
- Você...
- Eu não! Nem ela! Mas eu sabia que ele ia morrer. Eu sou assim. Parece
que eu adivinho as coisas, às vezes. Foi o mesmo quando eu estava preso.
Meu colega 'tava louco para sair do quartel. A mulher dele tinha acabado de
dar à luz. Eu falei: - Você vai sair hoje. Ele riu e respondeu
que me daria todo o seu soldo, que tinha acabado de receber, se eu estivesse
certo. Não demorou meia hora vieram chamá-lo. Estava solto. O
cara nem conseguia acreditar. Falou: - "Você sabia!"!
- "Como eu ia saber? Estou aqui preso com você..."
Aí eu quis saber: - "Então, porque disse aquilo?"?
- Sei lá. Eu só pensei... Senti e falei.
- E ele, deu-lhe o ordenado? _ eu perguntava, tentando descobrir as falhas daquele
caráter.
- Propôs me dar a metade. Eu não quis nada. Imagine!
Como eu estava confusa! Que espécie de homem era aquele? Sentia um misto
de temor e admiração.
Afinal, chegavam. O homem estendeu a mão para despedir-se:
- É isso aí, dona. Nem tudo é o que parece ser. Fica com
Deus.