A Garganta da Serpente
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Os Neorevolucionários

(Mauricio Duarte)

O QG, como era chamado o fundo oculto do bar do Mestiço, estava lotado. Todos os revolucionários (em grau maior ou menor) espalhados pelo porão, em diferentes posições: sentados, agachados de cócoras, em pé. Um falatório, uma balbúrdia tremenda. Quando a porta rangeu aquele barulho irritante e o Líder apareceu, todos se calaram rapidamente. Tomou seu lugar na mesa e iniciou o pronunciamento:

- O dia capital está se aproximando. Nossa luta deve ganhar forma em breve. Precisamos apenas acertar alguns detalhes básicos que talvez vocês, por serem inexperientes no assunto, não tenham conhecimento. - Subitamente ficou quieto, com um ar misterioso que durou uns vinte segundos. Então disparou: - Quantos aí têm uma camiseta do Che Guevara?

Ninguém respondeu. O silêncio era tão sólido que as pessoas chegavam mesmo a sentir um peso sobre elas, esmagando-as.

- Não acredito que nenhum de vocês têm uma camiseta do Che Guevara! - continuou o Líder. - Como podemos fazer uma revolução sem um instrumento básico como esse? Por acaso alguém já viu uma revolta respeitável sem que pelo menos alguns dos manifestantes estivessem usando uma camiseta do Che Guevara? É claro que não! Não existe revolução sem camisetas do Che Guevara. Temos que nos basear nos grandes ícones, assim como esse respeitável revolucionário cubano...

- Perdão, mas ele não era argentino? - interrompeu uma voz tímida, hesitante, do meio da plateia.

- Ora, não me interrompam com tergiversações nem sofismas. - protestou o Líder. - Estão mudando de assunto. Espero que já tenhamos encerrado o episódio da camiseta. Lembrem-se da lição que acabaram de aprender.

- Ensine mais! - pediu o Mestiço, que era um grande entusiasta e companheiro do Líder.

- Tudo bem, mas tenham paciência. - atendeu o Líder. - Fatalmente, muitos de vocês serão entrevistados a todo momento por repórteres. Devem ter um cuidado todo especial com o que irão dizer. Sempre é bom citar nomes conhecidos. Marx é essencial. Insistam em dizer que acreditam nas doutrinas marxistas, ou até que possuem raízes trotskistas, e que este último interpretou de maneira definitiva as ideias concebidas pelo primeiro. Os mais radicais podem ficar à vontade para mencionar o anarquista Bakunin. Contudo, jamais esqueçam de completar dizendo que consideram as conjunturas sócio-política e econômica atuais para pôr em prática tais teorias. A simples alusão a personagens como esses dá credibilidade à revolução.

- O senhor conhece esse tal de Max aí? - questionou um homem que estava de pé, encostado na parede lateral do porão.

- Não é Max, e sim Marx. - corrigiu o Líder, com um leve tom de soberba na voz. - Olha, não interessa se eu conheço ou não. Não se trata disso. O que importa é que eu já ouvi muita gente famosa falar nele.

- Tem camiseta dele também? - perguntou, eufórico, o Mestiço.

- Eu nunca vi. - respondeu o Líder. - Mas vou procurar saber. Se tiver, com certeza teremos de usar.

O Líder parou de falar por um momento, e deu um grande gole no copo de água que estava em cima da mesa. Limpou a boca com as costas da mão e apoiou a cabeça nos nós dos dedos. Estava refletindo. Os ouvintes respeitosos aguardavam, suspensos em uma agonia imensa. Todos sabiam que deviam ficar quietos, pois obviamente ele pensava em algo de extrema importância e logo irromperia de sua garganta um discurso inflamado. Era sempre assim.

- Outra coisa fundamental é inspirar um certo medo nas pessoas. - começou o Líder, como se não houvesse feito pausa nenhuma. - É necessário ter um certo ar ameaçador, uma postura agressiva. Deixar todo mundo desconfiado e temeroso de nossa periculosidade é bastante conveniente.

- Quer dizer que vamos pegar nas armas? - perguntava novamente o Mestiço.

- É claro que não. - prosseguiu o Líder. - Arma é um troço muito perigoso. No entanto, deixem essa hipótese sempre subentendida em suas declarações. Mostrar que estão preparados, mesmo não estando, faz muito bem. Por exemplo: falem coisas do tipo " a classe operária não vai mais tolerar essa situação. Um dia a gente estoura, e aí não sei o que pode acontecer..." Viram só, que sutileza! É desse jeito que devem agir. Agora, finalmente acredito que vocês estão prontos. O pouco que falta, terão de aprender por si mesmos. Vamos entrar para a história, vamos mudar este país!

Uma torrente de aplausos e palavras de ordem tomou conta do ambiente. Todos gritavam, exultando o nome do Líder e a revolução.

- Vamos às ruas quando, Líder? Agora mesmo? - berravam dezenas de vozes impacientes ao mesmo tempo.

- Não, ainda não. - disse calmamente o Líder, com uma serenidade de dar inveja estampada no rosto. - Amanhã. Sim, isso mesmo, amanhã começamos. Só amanhã...

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