Às sextas-feiras, Maria Augusta, como a chamavam no trabalho, ficava
o dia todo olhando para o relógio, esperando o fim do expediente. A figura
dela era como um triste esqueleto de pessoa que odiava o falso sorriso de seus
colegas de trabalho, que no fundo sabiam que ela não era como eles. Fora
dali era Guta para os parentes e amigos, mas também não gostava
de ser Guta, nem a Maria Augusta cheia de obrigações, gostava
era de ser Barbarella.
Magra, com uma cintura tão fina que era difícil imaginar que suportasse
o peso do resto de seu corpo sem se partir, braços finíssimos,
onde mal se podia notar que havia algo entre a pele e os ossos, seu corpo todo
parecia mover-se como por um passe de mágica.
Bebia, já em casa, um copo de rum, esperando pela hora da transformação.
Duas coisas eram necessárias para que sua noite fosse um sucesso: que
não visse com nitidez o que se passasse, e que não fosse vista
com nitidez por todos os outros que habitavam aquele seu mundo secreto. Não
foi à toa que se tornou gótica, amava a escuridão e amargurava
uma tristeza profunda em não poder ser assim e viver neste mundo o tempo
todo.
Deixava os pesados óculos de grau em casa, vestia cuidadosamente a roupa
preta, os pesados coturnos e um sobretudo de couro. Terminava a metamorfose
com uma pesada maquiagem no rosto, lábios e olhos negros.
Antes de sair ouve o telefone tocando, a secretária eletrônica
atende: "Você ligou para Guta, ou Barbarella, não importa,
a gótica é a mesma, deixe o recado depois do sinal, ou não,
o problema é todo seu". Agora era Barbarella, e Barbarella odiava
telefones.
No metrô, olhos curiosos não paravam de olhar a estranha figura,
uns garotos começaram a assobiar a música do filme A Família
Adams. Momento incômodo. Desceu do metrô e ainda ouviu um deles
dizer: "E aí, Mortícia, não quer vir aqui chupar...
o meu pescoço?". Ignorou a piada e saiu andando pela rua, enquanto
andava sonhava com o que viria, com o que faria, conhecia o caminho como a palma
de sua mão, mas, sem óculos, e sem poder prever as mudanças
no terreno, uma corrente, antes inexistente, que impedia o acesso à rua.
Ela rodopiou por cima da corrente, e, sem tempo para se proteger, caiu de cara
no chão.
Ela levantou-se rápido, olhou em rápido, num reflexo de vergonha,
não parecia haver ninguém. Sentiu o gosto de sangue na boca, quebrara
um dente. Mas isto nem chegou a incomodar Barbarella, uma das mais antigas góticas
da noite de São Paulo. Chegou até a entrada de seu mundo, sangue
escorrendo pelo canto da boca, o que a tornava mais charmosa naquele lugar,
uma vampira recém alimentada. Mas ainda era muito cedo, pegou um copo
grande de Campari e foi beber sozinha em um canto. Bebeu até sentir-se
tonta.
Desceu para o porão, onde ficava a pista de dança. Lotada. Sorriu
com o dente quebrado, lambeu o sangue do canto da boca com luxúria, tantas
vítimas em potencial. Ela começou a dançar como louca,
adorava dançar, sentia que poderia dançar até o fim dos
tempos. Dançava e olhava os outros os outros, que apareciam em flashs,
congelados em posições estranhas. Ficava um tempo analisando,
depois se encostava a um, ou uma, não importava, se aproximava da vítima
e partia para o ataque: enlaçava sua vítima e a levava para um
canto, abusava dela de todas as formas, do corpo, da juventude, da paixão,
e depois a devolvia à pista de dança, e continuava como se nada
tivesse acontecido.
De repente, cansou de dançar, estava toda dolorida, talvez da queda sofrida,
mas não estava com vontade de ir embora. Chegou até o balcão
para mais uma dose de Campari, viu um garoto encostado, uns vinte anos, triste,
bebendo sozinho.
"Olá..."
"Oi..."
"Por que tanta tristeza?"
"Problemas..."
"Que tipo de problemas?"
"Problemas com minha namorada..."
"Ah, entendo..."
Ele olhou de volta para ela, ficou espantado com a figura estranha, mas, por
mais esquisito que parecesse, sentiu-se à vontade para falar de sua vida
com ela, sentiu que devia falar de sua vida com ela.
"Qual seu nome?"
"Barbarella..."
Ele sorriu e devolveu sua alcunha de jogador de RPG.
"Nômade..." hesitou um pouco, mas viu que ela não estranhou
o nome que ele lhe dera, "Sabe, o problema é que estamos namorando
faz um tempinho, ela tem a mesma idade que eu, só que ela é muito
mais experiente, sabe, na cama..."
"Hmm, sei..."
"E ela está louca para transar, mas não quero que ela saiba
que nunca fiz, não combina com a imagem que ela faz de mim..."
"Então vamos?!"
"Pra onde?"
"Minha casa, não é tão longe e já estava indo
mesmo, e preciso de companhia..."
E ela levou o rapaz para casa, e ela pode encarnar totalmente Barbarella, transaram
a noite toda, o amarrou, pingou velas por seu corpo, abusou dele, fez com que
ele implorasse, pedisse que parasse, que continuasse...
Às seis da manhã, o relógio despertou, ela levantou-se
e foi logo mandando que ele fosse embora. Era hora de ir para o trabalho, não
tinha tempo a perder. O cara ficou lá, olhando para ela com cara de bobo,
recolhendo as roupas. Ele tentou agradecer, ela não ouviu, abriu a porta
e o mandou sair. Agora era Maria Augusta, e agora, ficaria sonhando acordada,
todos os dias, com a próxima noite de Barbarella.
(07/06/2006)