O sonho sem realidade de nada vale, mas para aumentar o peso da vida é
preciso sonhar. (Autor desconhecido)
Não há partícula da vida que não carregue em
si alguma poesia. (Gustave Flaubert)
Por los ojos de la monja
galopan dos caballistas.
Un rumor último y sordo
la despega la camisa,
y al mirar nubes y montes
en las yertas lejanías,
se quiebra su corazón
de azúcar y hierba luisa.
(Federico Garcia Lorca)
I
Debruçou na janela e o vento havia amainado. Viu a rua deserta àquela
hora tardia e pensou em como sua vida estava amena naquele momento, após
tantos anos de dificuldades de vários tipos. Olhou para dentro de sua
casa e avistou a jarra de flores e os chocolates "Serenata de Amor"
numa pequena bombonière de cristal translúcido - um presente de
pessoa muito querida.
Vivera uma vida modesta até aqui: poucos recursos, solteira e sem filhos,
havia, entretanto, uma área dourada em sua existência, a qual ela
visitava sempre e constante, independente mesmo de sua vontade.
Acontecera-lhe um grande amor. Mais que isso: conhecera o amor. Creio que, independentemente
de ter-se realizado ou não o amor na vida - digamos útil - das
pessoas, o fato de ter-se vivenciado o sentimento do amor ilumina os dias e
lhes confere sentido. Exala-se do espírito um ânimo de expectação
- diferente da espera pura e simples - que não se volta para o objeto
amoroso, mas para um estado, o qual pode ser descrito como de suspensão
do tempo, onde se instala um sentimento de iminência. É um domínio
mágico, suprarreal ou de uma espécie transcendente de realidade,
em que o existir se agasalha e se desdobra, encantado. Quem já experimentou
o amor sabe disto. Pode ser toda a vida um suceder-se de desencantos, mas o
sentimento amoroso, se plantado na memória, presentifica-se a qualquer
momento que se o experiente pela rememoração e salva-nos do tédio
e do aniquilamento.
Prazeres era bonita. Belos cabelos negros, longos e lisos, rosto de maçãs
salientes, pele acaboclada, olhos enormes e margeados por cílios espessos,
sorriso largo, mostrando dentes largos e regulares, um pouco dentuça,
o que lhe ficava bem. Corpo equilibrado, um tanto frágil, Muito séria,
possuía pouco ou nada desenvolvido o senso de humor. Isso é de
grande desvantagem, tanto para a pessoa, como para quem com ela convive, pois
a grande saída da vida é o riso.
Não duvidem disso. Tenho presenciado situações em que
apenas o riso foi a única saída, e, quem o experimentou, conseguiu
e consegue safar-se de situações de extremo desprazer, desconforto,
privação, ou mesmo, dor súbita.
Mas Prazeres era assim: reta, simples, digna, devotada a tudo e a todos, incapaz
de uma deslealdade ou mau pensamento. O seu cotidiano repetia-se em regularidade
monocórdia, dadas, mesmo, às características e necessidades
de seu existir modesto.
Iniciava os dias com as orações mais gratas ao seu coração
magoado, olhando para o forro do teto e ali via cada detalhe dos lambris pintados
de branco, em camadas superpostas através dos anos. Levantava-se disposta,
mas num ritmo que lhe era peculiar, cadenciado e pausado, apesar de incisivo
e determinado. Fazia sua cama sacudindo antes os lençóis ao ar
livre, pela janela, "para tirar-lhes o sono", como dizia. Arrumava
a cama com esmero, alisando com sua pequena mão ativa toda dobra, todo
amassado. Escovava os dentes já em baixo de ducha fria, mesmo no inverno,
lavando-se profusa e rapidamente.
Vestia-se impecável, roupa bem lavada e bem passada, quase invariavelmente
uma saia de brim com blusas de algodão cru ou linho, padrão de
listras na sua maioria - gostava de roupas com listras, sobretudo as estreitas.
Mocassins feitos à mão, italianos, que duravam anos - tinha três
pares de mocassins mandados vir da Cordobán, em São Paulo, preto,
café e marinho. Era um dos seus poucos luxos, os sapatos de boa qualidade
e bem apresentados. Trazia sempre ao pescoço um crucifixo de esmeraldas
e pérolas alternadas, discreta - presente de seus irmãos quando
dos seus quinze anos, pendentes de uma corrente de ouro Cartier, fininha.
Cabelos presos em basto rabo-de-cavalo, pele louçã, Prazeres se
refrescava várias vezes ao dia com lavanda natural. Um desjejum rápido,
almoço no fogo enquanto tomava o café, para levar em marmita térmica
para o trabalho, que era no subúrbio.
Seu olhar passeava entre a janela aberta e duas reproduções de
pintura expressionista trazidas por seu irmão mais velho de uma de suas
viagens à Europa: A Dança da Vida, de Edvard Munch, e A
Tempestade ou a Noiva do Vento de Arthur Kokoschka. Pontualmente, às
seis e meia de cada novo dia, Prazeres chegava a ponto de ônibus na Rua
Carlos Gomes. Já era conhecida pelos motoristas, cobradores e a maioria
dos passageiros. Guardavam-lhe lugar na primeira fila de poltronas à
direita, à janela, como preferia. Sorridente, Prazeres se acomodava no
seu canto - em direção à Rodoviária - tirava seu
terço de um estojinho de couro lavrado, de Florença - presente
de uma amiga, e ia rezando até o ponto de chegada.
Na Rodoviária, tomava outro ônibus para o subúrbio onde
trabalhava como professora, numa escola de ensino fundamental, em São
João do Cabrito, Plataforma. No segundo ônibus, não rezava
mais o terço. Lia trechos da Bíblia ou da Imitação
de Cristo, presente de sua falecida avó - livrinho que prezava como
poucos dos resumidos pertences de seu mundo.
Maria dos Prazeres tinha dirigido sua vida até aqui com muita dignidade.
De família de recursos médios, interiorana, não lhe faltaram
princípios sólidos nem fartura, pois nascera em pequena fazenda
em Potiraguá, no Centro-Sul da Bahia, microrregião de Itapetinga.
Eram caboclos, seus ascendentes, e herdara o biótipo e a sabedoria dessa
gente que acumula experiência indígena ancestral. Mesmo miscigenada
às imprudências e veleidades dos brancos europeus, essa cultura
consegue romper os limites da civilização em favor da ciência
do viver. Uma das características desse tipo de mestiço brasileiro
é o gosto pelos provérbios, máximas e aforismos: um para
cada situação e sempre adequadamente.
Em parte, isso vem da cultura ibérica, principalmente de regiões
de usos e costumes sedimentados pela tradição. Amalgamada à
cultura nativa, essa tendência frutificou, desdobrando-se e aprofundando-se
num modo de verbalizar a vida de forma direta, pejada de experiência histórica.
Prazeres tinha o hábito de definir situações da vida com
tais provérbios e ditames, herdados principalmente de sua avó
materna, o que conferia a suas opiniões a confiabilidade: via trita
via tuta, no dizer de Hipócrates - o caminho batido é o mais
seguro.
A família se dispersara após a morte do pai, Sr. Agenor, um patriarca
verdadeiro, homem de modestas terras, que, entretanto, permitiram-lhe criar
seus filhos com dignidade e alegrias. Logo em seguida, morreu-lhe a mãe,
Dona Iracy, de tristeza, de saudade - sua vida fora construída em torno
do marido, o qual amava devotadamente. Amava os filhos com ternura e fora mãe
dedicada, mas, rompida a sociedade conjugal pelas mãos do destino, restou
sem forças para continuar. Faltava-lhe a capacidade de ser inteira como
pessoa - e, mulheres dessa cepa sucumbem, quando da morte do companheiro.
Havia a avó Donana, mulher sábia, cheia de fórmulas e
ditames para a vida. Severa, mas terna no mais fundo. Mais que a mãe,
o exemplo de mulher forte para a neta fora a avó, que sobreviveu à
filha ainda, mas faleceu logo depois, de derrame.
Prazeres, a mais nova, era adolescente de doze anos quando ficou completamente
órfã. Seus irmãos tocaram a vida para frente e dela cuidaram
enquanto puderam. Quando a menina atingiu a maioridade, eles dividiram a pouca
herança em partes rigorosamente iguais, e ela ficou com recursos minguados,
mas suficientes para viver com modéstia. Mudaram-se para a cidade da
Bahia, onde alugaram uma casinha aprazível no Rio Vermelho, na Rua do
Meio. Terminados seus estudos de graduação, os irmãos emigraram,
diplomados, para cidades mais atraentes em mercado de trabalho - eram cinco,
os filhos do casal, ela, a única filha.
Um dos rapazes se fixou no Rio e os demais em São Paulo, onde exerciam
suas profissões e constituíram famílias. Tentaram, um e
outros persuadi-la a se mudar para perto deles. Ela não se inclinou a
deixar seus alunos e sua cidade. Como não podia manter sozinha o aluguel
da casa, mudou-se para um cômodo de quarto, sala, banheiro e uma pequena
sacada nos fundos na Ladeira dos Aflitos. E o tempo se encarregou de esgarçar
os laços da convivência mais próxima, até que, após
mudanças sucessivas dos irmãos, perdera-se deles na vastidão
do país.
Prazeres não tivera a vocação para estudos avançados.
Depois do curso pedagógico, de segundo grau, passou a ensinar numa escola
particular de subúrbio, com dedicação extremada ao que
fazia. Esta era a sua única fonte de renda fixa, mas inventava uns biscates:
alguns consertos de roupa, sequilhos, alfazema e lavanda artesanais - para complementar
o minguado salário de professora primária.
Morava numa água-furtada de casarão em decadência, porém
muito bonito, construído no início do século XVIII, fachada
de azulejos portugueses. Embora modesta, sua morada tinha a vantagem de poder
dispor do quintal da casa, bem como do jardim. Do seu quarto de dormir, muito
bem arrumado em sua simplicidade, tinha o privilégio de contemplar o
mar da Baía de Todos os Santos.
Mais de metade de seu modesto salário custeava o aluguel, pontualmente
pago a cada dia 30 do mês durante seis anos sucessivos. O restante era
para alimentação, constante e leve, embora soubesse cozinhar muito
bem; uma roupa nova de quando em vez - vestia-se discretamente, com elegância
de detalhes; cinema ou teatro uma vez por mês; sorveteria todos os domingos,
após a reunião da casa paroquial que frequentava, nos Mares,
apesar de assistir à missa das sete horas na Igreja dos Aflitos -construída
no século XVII - a dois passos de sua casa.
Não desfrutava de maiores conhecimentos da religião católica,
sua família não tomara essas providências. Possuíam
a fé ingênua e simples dos habitantes de pequenas cidades do interior.
Mas eram assíduos à igrejinha, ponto de encontro para muitas das
providências no cotidiano do lugar - que ficava lado a lado com a casa
em que moravam. Assim, a moça habituara-se a frequentar diariamente
a missa e mantinha o costume da infância, que lhe alegrava o coração.
Era em 1970 e Maria dos Prazeres tinha 25 anos. No Brasil, vivia-se o clima
angustiante dos efeitos do Ato Institucional no. 5. Meio sem entender as consequências
disso, Prazeres o tinha copiado a ver se o transmitia de algum modo aos seus
alunos. Colara-o no pequeno quadro de feltro verde que providenciara colocar
no seu cantinho de trabalho, acima de sua escrivaninha - que fora, aliás,
de sua avó, rústica, de madeira do sertão, putumuju. Lá
estava o trecho do AI-5, copiado com perfeição:
1.
I. cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II. suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições
sindicais;
III. proibição de atividades ou manifestação sobre
assunto de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de frequentar determinados lugares;
c) domicílio determinado.
§ 1º O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos
poderá fixar restrições ou proibições relativamente
ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.
§ 2º As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo
serão aplicadas pelo ministro de estado da Justiça, defesa a apreciação
de seu ato pelo Poder Judiciário.
A moça se levantava de madrugada, para surpreender o dia com o olhar
encantado. Ia à missa todos os dias, às seis horas, e trabalhava
até a noite, sem interrupção, quer na escola, quer em casa.
Depois que acabava seu jantar frugal, punha em ordem os pratos com perfeição,
fechava a porta, meticulosa e atenta, tomava um banho tépido e se enfiava
debaixo de sua roupa de cama limpíssima e perfumada de alfazema. Se pudéssemos
vê-la dormindo, neste momento, a contemplaríamos ressonando compassadamente,
um terço nas mãos infantis.
Era econômica, comia lentamente, recolhia os pratos, que não tinham
sobras, pois não cozinhava além do seu limite. Descansava uns
dez minutos sentada perto da janela da pequena sala que dava para a rua, olhando
um pouco o movimento de pedestres. Ia para a pia e lavava tudo com afinco, seus
utensílios brilhavam.
Sua figura era frágil e sua voz, suave. Com vinte e cinco anos, parecia
ter menos. O talhe ereto, gestos comedidos, assemelhava-se a uma fotografia
em preto e branco com alta definição, de uma normalista da segunda
metade do século XIX no Brasil. Nada parecida com a Maria do Carmo do
romance A normalista do escritor cearense Adolfo Caminha, já que
antes que lúbrica, era mística - portanto, era-lhe peculiar um
sentir erótico: a vida lhe vinha pelos sentidos, principalmente a visão,
e, daí, ao coração.
Numa tarde do mês de agosto, domingo, indo para a missa das seis da tarde,
absorta em seus pensamentos, esbarrou distraída numa pessoa que vinha
em direção oposta. Era um rapaz que mediava sua idade, bem apessoado.
Ficou embaraçada, desculpou-se. Ele, olhar envolvente, aceitou as desculpas
com uma brincadeira - "Pode usar e abusar!" - e ela ficou muito sem
jeito, sorriu, encabulada e ruborizada. Ele lhe perguntou, com gentileza, para
onde estava indo e se podia fazer-lhe companhia.
- Vou para a missa, respondeu Prazeres.
-Ótimo, também sou católico, católico brasileiro,
sorrriu, brincando, e seus belos dentes se mostraram... - Como você se
chama?
- Maria dos Prazeres Paranhos Ventura, prazer - estendeu-lhe a mãozinha
fria.
Riram e rompeu-se o constrangimento de Prazeres. Seus olhos brilharam. O rapaz
balançou a cabeça, enquanto apertava-lhe amavelmente a mão.
- Eu me chamo Teodoro. Teodoro Gomes. Mas como suas mãozinhas estão
frias!
Prazeres ficou sem jeito, mas gostou do modo como ele se referiu ao fato. Andavam
lado a lado. Vez por vez, seus corpos roçavam ao caminharem. Teodoro
forçava um pouco o acidental.
- É... Sou muito friorenta mesmo. Com esses ventos de agosto, então...
- Não gosta de vento?
- Ah, gosto, gosto muito, mas fico assim, as mãos, os pés e a
ponta do nariz gelados.
- Os ventos! Me identifico com essa estação aqui na Bahia e muito,
exatamente por causa desses ventos de chofre a essa época do ano. Você
sabia que há médicos que receitam banhos de vento para acalmar
os nervos? Eoloterapia, se chama, de eolus, vento, em grego. Aliás,
Éolo regia os ventos segundo a mitologia. Zeus, deus dos céus
e pai dos deuses, deu a superintendência dos ventos a ele, que vivia na
ilha flutuante de Eólia juntamente com Aurora, sua mulher, e seus seis
filhos e seis filhas casados entre si.
- Que interessante essa história. Só acho esquisito o detalhe
dos filhos, é um absurdo, isto! Onde já se viu irmão casado
com irmã?
Teodoro sorriu com sabedoria, fez um gesto largo, de anuência, acrescentando:
- Na mitologia grega não havia a noção de incesto, como
em nossa cultura nos seus inícios. Além do mais, na cultura judaico-cristã
não é diferente. Veja a história de Adão, Eva e
sua descendência, na Bíblia. É a mesma coisa.
Prazeres ficou silenciosa, pensativa: nunca havia pensado nisso antes. Nem
conseguia entender todo o alcance do que Teodoro lhe falava. Vivia num mundo
inocente e linear, cumpria sua existência com bonomia e ânimo positivo.
Sempre muito ocupada, seu dia era cheio de tarefas e estas não deixavam
tempo de sobra para muitos pensamentos, além dos relacionados ao seu
dia a dia simples e honesto.
Teodoro percebeu o embaraço de Prazeres, evitou detalhes, mas continuou
a falar. Gostava muito de discorrer sobre temas de sua área - era professor
de História em prestigiado colégio da rede particular, dizia;
e continuou sua elocução com entusiasmo.
- Quando Ulisses saiu na sua viagem, foi-lhe dado um odre que continha os
"os ventos uivantes". Podiam ser libertados consoante as necessidades.
O sopro de Zéfiro, um dos ventos, foi então enviado para ajudar
os barcos a afastarem-se e prosseguirem a sua odisseia. No entanto, a
curiosidade e a ganância dos seus homens fez com que estes abrissem o
odre, pensando conter riquezas, libertando assim todos os ventos e desencadeando
uma tempestade na qual se afundariam, salvando-se apenas Ulisses.
Prazeres ouvia, encantada com a cultura do rapaz. Tinha uma grande admiração
por pessoas cultas e por artistas. Isso lhe vinha da convivência, em criança,
com um amigo da família, poeta de Poções, estado da Bahia,
Affonso Manta. Vez por outra ele visitava a família de Maria - como a
chamava - e lia em voz alta seus poemas:
Fazer da brisa um traje sem medida
E do arco-íris fazer um tobogã.
Amar as mínimas coisas da vida.
E ter no olhar as luzes do amanhã.
Ele lhe levava livros de poesia e gravuras, e ela adorava ouvi-lo recitando.
Chegaram à Igreja, e Teodoro assistiu a missa com unção.
Encantara-se com aquela moça tão preservada das maldades do mundo.
Após a missa, perguntou a Prazeres se não gostaria de tomar um
suco ou um refrigerante ali mesmo por perto.
Os olhos da moça brilharam mais, e disse-lhe que, naquele dia, após
a missa, haveria festa dançante na paróquia. Teodoro mostrou-se
muito interessado, mas não queria se impor. Jeitosamente, perguntou a
Prazeres se a festa era aberta a outras pessoas que não pertencessem
à paróquia.
- Sim, sim, disse-lhe, com um pouco de precipitação que logo
imediato moderou. - Bem...se você quiser e tiver um tempinho, pode vir
comigo. As Irmãs do Bom Pastor enviam pãezinhos, doces e sequilhos
deliciosos. Uma paroquiana, que é doceira conhecida, sempre oferece um
bolo de laranja e uma torta de maçã. Fazemos sucos de frutas,
há um grupo de jovens que têm uma banda e tocam muito bem, dançamos...
É maravilhoso mesmo.
Foram andando para o anexo da Igreja de Nossa Senhora dos Mares, um prédio
amplo, pintado de branco com janelas verdes, com o nome "Casa Paroquial
Itaguaí", pintado, em verde também, na parede lateral
- provavelmente em homenagem a alguma localidade da Arquidiocese. Entraram no
salão, todo pronto para a festa. Era uma festa em benefício dos
órfãos. Havia uma quermesse com objetos de artesanato feitos pelas
paroquianas, e alguns doados pelos paroquianos comerciantes, de vária
espécie. A festa estava bonita e alegre.
Teodoro se encantou com tudo, entusiasmou-se com aquela mocinha simples e de
sentimentos puros e singelos, pelo que podia perceber, e ele era experiente
nos seus quase trinta anos. Quis fazer-lhe um mimo e comprou-lhe uma caixinha
de música com dois cisnes que nadavam no laguinho do espelho ao som do
Tema de Lara, do filme Doutor Jivago.
Prazeres estava enlevada com o rapaz, rosto afogueado, olhos ainda mais brilhantes.
Agradeceu emocionada:
- Não precisava tomar esse trabalho, tanta despesa!
- Qual despesa, menina, você merece muito mais.
Estendeu as duas mãos e segurou ambas as de Prazeres, beijando galante
sua mão direita, delicado. Ela ficou mais corada ainda, baixou os olhos.
Dançaram, e ele a envolvia com suavidade e cuidado, sem pegadilhos nem
avanços deselegantes ou audaciosos.
De volta para casa, conversaram. Ele lhe contou as circunstâncias históricas
do Doutor Jivago, a propósito da lembrancinha que dera à moça.
Ela ouvia com atenção devota, sorvendo suas palavras. Depois ele
lhe falou da vida dos cisnes e da proverbial fidelidade dessas aves. Disse-lhe
um pedaço do poema Os Cisnes, de Júlio Salusse:
Um dia um cisne morrerá, por certo.
Mas quando chegar este momento incerto,
em que, no lago, talvez, a água se tisne,
que o cisne vivo, cheio de saudade,
nunca mais cante, nem sozinho nade,
nem nunca nade ao lado de outro cisne.
E, logo em seguida, alguns fragmentos de Cisnes Brancos do Alphonsus de Guimaraens:
Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da Montanha onde mora a tarde.
...........................................................
Quando chegaste, os violoncelos
Que andam no ar cantaram no hinos.
Estrelaram-se todos os castelos,
E até nas nuvens repicaram sinos.
Ela estava muda de emoção. Quis dizer-lhe alguma coisa, mas nada
lhe vinha à cabeça que estivesse à altura daquele momento
sublime. Ensaiou pronunciar o nome do rapaz, mas hesitava, envergonhada, pelo
que achava ser demasiado íntimo. O nome ficou rolando em sua boca, num
misto de prazer e acanhamento, e afinal se decidiu:
- Teodoro... que coisa linda, meu Deus!
- Linda é você, menina, e aproximou seu corpo mais um pouco,
enlaçando-a com firmeza pela cintura.
Quando chegaram, Teodoro se entusiasmou com o olhar terno de Prazeres. Enlaçou-a
bruscamente e tentou beijá-la. Ela se assustou, gritou, entrou correndo
em casa, fechou a porta, o coração disparado. Ele ficou ali, sem
graça, aborrecido de sua temeridade e falta de jeito. Afastou-se com
passos rápidos.
Duas semanas depois, indo comprar legumes, ela avistou Teodoro que também
fazia compras na feira e o ficou observando de longe. Comprava frutas: uvas,
mangas e pitangas. Fez-se visível, e ele a viu. Veio andando lento, aproximou-se
com ar tranquilo, pediu-lhe perdão pelo gesto desairoso:
- Foi um impulso, um gesto impensado! Você estava tão bonita
que não resisti. Minhas sinceras desculpas, Prazeres, você é
uma menina rara e não quero deixar de encontrá-la e desfrutar,
ao menos, de sua amizade.
Ela ficou sem saber o que responder, teve vontade de abraçá-lo
e beijá-lo. Aceitou as desculpas e convidou-o para um cafezinho recém-coado.
Ele aceitou com entusiasmo.
Começaram a namorar. Encontravam-se uma vez por semana, conforme quis
Prazeres. Não queria precipitar as coisas nem impor sua presença.
Ele achava muito pouco; "Fico com saudades, menina bonita".
A moça se extasiava com o jovem e belo professor de História.
O professor de História se deleitava com a ingenuidade de Prazeres. Ele
lhe disse que tivera uma noiva, e esta o trocara por outro, um homem muito rico.
- Ah! disse ela. A amar e a rezar ninguém se pode obrigar, acrescentou,
desajeitadamente, pois o dito não se casava muito bem com a circunstância.
Ele não prestou muita atenção. Sorriu e disse ainda que
tencionava se estabelecer, já ia entrar nos trinta, queria constituir
uma família, amar e ser amado, ter seus filhos, plantar a árvore
que nunca plantara, construir sua própria casa e escrever um livro, não:
vários livros.
Ela abaixou a cabeça. Ele lhe perguntou se pensava em se casar. Ela
sorriu, e lhe disse que não tinha tido tempo para pensar nisso em sua
vida corrida.
- Ou você estava esperando a outra banda da maçã? Conhece
a teoria de Platão a respeito do amor?
Dificilmente ela conheceria. Teodoro explicou com detalhe a teoria das almas
gêmeas.
- É como o povo diz, acrescentou Prazeres, aonde vai a corda, vai a
caçamba.
Teodoro sorriu afirmativamente. Com o braço esquerdo, envolveu-lhe a
cintura. Andaram assim, lentamente, por algum tempo. Não ventava então,
caía a noite, e as estrelas brilhavam. Rompendo a quietude, passaram
quatro motos dirigidas por jovens afoitos, aos gritos e fazendo piruetas perigosas
com grande alarido. Prazeres estremeceu assustada, Teodoro segurou-a com firmeza,
protetor, estreitando seu corpo contra o dela. A moça se deixou por alguns
segundos, e logo se afastou, envergonhada.
Marcaram encontro para a semana seguinte.
Não cabe, neste momento, questionar as características da personalidade
de Teodoro. Não sei julgar se era ou não um canalha, se era aproveitador,
se era machista - há um certo tipo de homem, inclusive no Nordeste Brasileiro,
que gosta de ter uma corte de mulheres apaixonadas, que ele mantém por
toda a vida, se já as possuiu, inclusive ajudando-as financeiramente.
O certo é que possuía qualidades que encantam uma mulher: culto,
educado, dono de conversa fluente, compassada, entremeada de observações
inteligentes: uma verve mansa, contudo, aliada a um olhar que só os sedutores
possuem.
Esta é a marca definitiva da personalidade sedutora - o olhar - que
nada tem a ver com dotes físicos ou morais, embora possa incluí-los.
Há pessoas extremamente belas e que, após o primeiro impacto provocado
pela beleza, deixam de exercer um fascínio mais duradouro e não
chegam a ser alvo de grandes paixões. Iluminam o momento de modo fugaz,
e desvanecem-se.
Teodoro era naturalmente sedutor, não exercia a sedução
de modo estudado, em absoluto: sua presença se impunha, ia se insinuando
nos espaços do outro cada vez mais. Assim que começava a falar,
gesticulando pausadamente e com um ar entre displicente e distraído,
aquele clima de envolvimento se adensava. As pessoas ouviam-no com respeito
e admiração, até embevecimento, tamanha sua facilidade
e charme ao se expressar. Claro que Prazeres, por bonita que fosse, e amorosa,
não conseguia entrar no círculo mágico.
Ela estava apaixonada, mas a razão e os princípios de sua formação
interiorana a impediam de se entregar. Ele estava impaciente. Propôs-lhe
casamento. Ela custava a acreditar no que ouvia. Ele fez grandes e enlevantes
promessas. Ela acreditou, mas mantinha-se resistente a maiores intimidades.
Um dia, Teodoro chegou atrasado, suando muito, agitado: confidenciou a Prazeres
uma séria perda, uma catástrofe. A escola o tinha dispensado por
motivo de redução do quadro de professores, já que havia
os mais antigos, que foram poupados. O colégio estava passando por dificuldades,
muita inadimplência por parte dos pais de alunos. Desesperado, Teodoro
confessou que não sabia, diante desse baque, como ia levar adiante seus
planos para o futuro e seu casamento. Prazeres compreendeu tudo, confortou-o,
lembrou-o de que "quando Deus fecha uma porta, abre uma janela", desvelou-se
em cuidados, comidinhas e carinhos.
Ele estava esquisito, distante, faltava sem avisar os encontros marcados, chegava
atrasado, sempre com pressa: era uma crise profissional, dizia, passará
em breve. Prazeres acreditou nele, consolava-o como se faz a uma a uma criança,
com palavras ternas e sussurradas suavemente ao seu ouvido. Ele, esquisitão.
- A grandes males, grandes remédios, Teodoro. Alguma coisa muito boa
vai acontecer, tenha paciência: a lua não fica cheia em um dia.
Teodoro chorava no ombro de Prazeres. Ela o consolava com palavras e carinhos,
mas ele se mostrava desarvorado, soluçava:
- Todos os nossos planos, meu amor, tudo por água abaixo!
- Que é isso, Teodoro, antes perder a lã que a ovelha! Você
é inteligente, culto, instruído! Logo, logo arranja um emprego
ainda melhor! Contra a má sorte, coração forte!
Num gesto de desprendimento, Prazeres se entregou a Teodoro. Claro que o queria,
entretanto, princípios são princípios. Só se os
rompe, como no caso presente, numa emergência.
Foi um momento muito abaixo de sua expectativa romântica da moça.
Tudo muito rápido e, logo em seguida, ele, já estava vestido e
de pé, enquanto ela o olhava meio atordoada ainda. Ajoelhou-se ao lado
de Prazeres, beijou-lhe a mão muitas vezes, chamando-a de santa e de
"a mãezinha dos meus filhos". Explicou sua pressa - aquele
momento divino o enchera de ânimo, agora ele se sentia com forças
para ir à luta!
- Como você diz, minha querida, ferro se malha, quando ainda está
quente! Prazeres entendeu. Sozinha, recompôs a cena amorosa e os meses
anteriores. Havia alguma coisa que lhe escapava, mas não sabia exatamente
do que se tratava.
Teodoro telefonou-lhe no dia seguinte, marcando encontro numa sorveteria.
Ela estranhou, pois o ponto de encontro era sempre a sua casa, para depois decidirem
aonde ir. Mas não vacilou: não era do seu temperamento. Foi encontrar-se
com ele.
Chegando à sorveteria, avistou um amigo de Teodoro. Cumprimentou-o educadamente,
e sentou-se em uma das mesas, esperando o noivo.
O amigo de aproximou-se, pediu licença para sentar-se à mesa,
ela acedeu um pouco constrangida - e se Teodoro se aborrecesse? - mas sua educação
a fez consentir. O amigo, que se chamava Lúcio Mendes, um fotógrafo
conhecido na cidade, muito jeitoso no seu trato com as mulheres, começou
a conversar sobre generalidades. Ela respondia sem entusiasmo, olhando o relógio
de quando em vez. Lúcio percebeu a ansiedade dela. Fez uma pausa na sua
conversa, respirou fundo e disse-lhe:
- Prazeres, sinto muito, mas tenho algo importante, que não é
agradável, para lhe dizer.
- Dizer o que?
- É da parte de Teodoro.
- Meu Deus, aconteceu alguma coisa com ele?
Ela se agitou, quase às lágrimas, ofegava.
- Não, não, se acalme, não fique assim, por favor, está
tudo bem com a saúde de Teodoro, quanto a isso, pode ficar descansada.
- Mas, então, do que se trata, meu Deus, do que se trata?
- Prazeres, Teodoro não teve coragem de vir até aqui. Pediu-me
para fazer isso em seu lugar.
Prazeres o olhava com olhos imensos, pálida. Mil pensamentos vinham
em turbilhão à sua cabecinha, antes tão sossegada e aprumada.
- Prazeres, Teodoro não teve outro jeito, acredite, ele estava endividado
até a raiz dos cabelos, desesperado.
Ela chorava baixinho, incessante e surdamente, soluçava. Lúcio
teve pena da moça, afagou-lhe a mão, ela chorou ainda mais. Então
ele resolveu entrar em detalhes - o que não estava nos seus planos.
- Ele vive há alguns anos com uma senhora de idade, muito rica, que
já o vinha ajudando financeiramente. Teodoro foi amontoando dívida
em cima de dívida, fazendo o que não podia. Na verdade, ele sempre
teve uma tendência a gastar o que não podia: viagens, aparelhos
eletrônicos, livros, discos, roupas, perfumes, restaurantes caros... O
resultado foi uma encrenca total, com agiotas à sua porta e ameaças
de morte. Um horror, coitado. Então foi que a senhora descobriu que ele
estava tendo um romance com outra mulher... desculpe...
O choro de Prazeres atingia o paroxismo. Lúcio providenciou um copo
d'água e esperou ela se acalmar um pouco, confortando-a com suavidade.
Esperou ela se recompor um pouco mais e continuou:
- Ontem, ela os seguiu, com um táxi, até a porta de sua casa,
e ficou aguardando até ele sair. Aí foi aquele horror: ameaçou-o
de cortar qualquer auxílio financeiro, fez um escândalo. O pobre
Teodoro já está sem emprego há dois anos, e o que poderia
fazer, se não prometer à megera que se afastaria de você?
Prometeu, prometeu. Mas pediu-me para dizer-lhe que essa situação
não vai durar muito, ele vai procurar um emprego e reconstruir a vida
para ser digno de você - essa última afirmativa de Lúcio
foi por sua própria conta, para aliviar a dor da moça.
Prazeres se levantou, atordoada, correu em direção ao ponto de
táxi próximo, apesar das tentativas de Lúcio em detê-la.
Em casa, fechou porta e janelas, e entregou-se a uma dor desordenada. Jogou-se
ao chão, gritou, clamou a Deus, gemeu sozinha durante toda a noite até
o dia chegar. E o dia chegou com um sol radioso e uma brisa amena.
O Zéfiro, pensou Prazeres, é o Zéfiro. Não chorou
mais. Levantou-se do chão que presenciara seu sofrimento intenso. Tomou
um banho meticuloso, aprontou-se com detalhe. Juntou seus pertences, arrumou
tudo muito bem numa pequena mala de couro preto. Fechou a casa toda e cuidadosamente
conferiu se tudo estava em ordem. Saiu com a mala na mão, bateu a porta,
trancou-a.
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Esta parte da história de Maria dos Prazeres foi aquela da qual tomei
conhecimento. Ninguém mais a viu. Procurei saber de notícias dela
através de Lúcio, com o qual, dos três, sempre tive mais
aproximação. Ele me informou que ninguém sabia do destino
da moça.
- E Teodoro?
- Ah, este continua na mesma vida de sempre. Nem mesmo procura emprego. Acomodou-se
na casa da Dona Equidina e lá vive, servindo-a e divertindo seus convidados
nos jantares e reuniões. Cultura ele tem, você sabe, e é
muito espirituoso, muito vivo.
Para onde teria ido essa pobre moça?
II
Não sei se era a mesma Maria dos Prazeres, mas me contaram que havia
uma empregada numa casa de família no bairro de Brotas, no Horto Florestal,
que parecia ser ela. Trabalhava ali como faz-tudo e era muito querida pela família
cujas rendas originavam-se do cacau. Quem me contou essa parte da história
foi o jardineiro da casa, que veio a trabalhar no edifício onde moro,
após a morte da antiga patroa, Dona Alba.
Lá, havia duas crianças, Paulo e Virgínia, uma de quatro,
um rapazinho, e a outra, a menininha, de três anos: pareciam-lhe plasmados
em matéria preciosa. Eles faziam dela gato e sapato. Brincava de cavalinho,
fazia teatrinho contando histórias com as mãos envoltas em meias
e lenços de cores variadas, até construiu um pequeno palco para
marionetes e mamulengos que passou a confeccionar com as crianças, e
a madame Alba, que no início achava tudo uma bobagem - era muita bagunça
no jardim de inverno, onde faziam os bonecos - começou a solicitar as
apresentações nos chás beneficentes que oferecia nos seus
jardins, uma vez por mês.
Foi um sucesso. Prazeres, como era de seu temperamento - pois tudo indicava
ser a mesma pessoa - fazia tudo com perfeição. As roupas dos bonecos
tinham detalhes incríveis, de restos de costuras cedidos por Dona Alba,
após ter visto a beleza do trabalho: botões raros, flores, miçangas,
rendas e entremeios, galões e ligas, sianinhas e semelhantes. Os bonecos
eram uma lindeza, confeccionados em papier maché ou adaptados
de brinquedos sem uso de Paulo e Virgínia.
Para instruir as crianças de modo agradável, ela escolheu alguns
personagens de culturas diversas, como antropófagos com as cabeças
adornadas de penas, beduínos no deserto, dinamarqueses pescando, um mandarim,
boxeadores, lutadores de sumô e representantes de várias artes
marciais. A dupla mais esmerada era a dos lutadores de jiu-jitsu: um deles era
imenso e assustador; o outro, seu contendor, frágil e belo, com rosto
feminino. Também treinava caligrafia com as crianças, em cadernos
que ela mesmo confeccionava de modo primoroso.
Prazeres, encantada com a beleza das crianças, róseas e douradas
com seus cabelos ao sol, brincando com elas de certa feita, levantou-as, jogando-as
para cima para diverti-las, beijou-as com efusão e carinho entre risos
e gritos de alegria. Dona Alba chegava ao jardim e viu a cena. Fechou a cara.
Chamou Prazeres e lhe disse para não beijar as crianças, pois
nem mesmo ela o fazia para evitar transmissão de doenças. Na boca
existe o maior número de bactérias de todo o corpo! Prazeres ficou
chocada. Humilde, baixou a cabeça e sua alegria se esvaiu. A boca! O
beijo, esse ato tão sublime! As crianças não entenderam,
mas seu entusiasmo arrefeceu ao perceberem a tristeza no rosto de Prazeres.
Foi uma tristeza. A palavras loucas, orelhas moucas, pensou Prazeres, acrescentando
para si mesma "coração que suspira, não tem o que
deseja", portanto, vou me calar; dos males, o menor. E levou as crianças
para tomarem banho e escovarem os dentes, conforme ordenara Dona Alba.
Prazeres não gostava da maioria dos convidados da casa. Eram soberbos
e falavam de trivialidades o tempo todo, pelo menos nos fiapos de conversa que
ouvia, ao ajudar no serviço dos chás servidos após os jogos
de cartas, e outras reuniões sociais, mas havia exceções.
De quem ela gostava era do Doutor Gustavo Bovary, com sua testa larga, seus
bigodes fartos e descendentes, seus olhos um pouco pesados, seus cabelos descobrindo
uma calvície, mas de um castanho meio ruivo, e meio longos na região
da nuca. Chamavam-no de Senhor Desembargador. Dona Alba contou que ele sofria
de epilepsia e que fora criado num hospital - o pai era médico. O modo
de dirigir-se às pessoas era de uma cortesia espontânea, sempre
uma palavra gentil, sem ser bajulador. Ao contrário, era alvo de bajulações
constantes, dado o respeito de que era alvo por toda a sociedade. Era conhecido
como "o advogado das causas perdidas", fora Juiz por muitos anos.
Defendia minorias e revelava os podres da sociedade. Em consequência
disso, fora alvo de perseguições no passado, desvanecidas por
seu sucesso profissional subsequente.
O Desembargador vestia quase sempre uma ampla casaca castanha e tinha uma maneira
de gesticular tão cativante, que Prazeres sentia uma perturbação
intensa ao vê-lo -aquela que em nós provoca a presença de
pessoas fora do comum. Além disso, ele a chamava de "a moça-felicidade",
em alusão à bonomia do temperamento de Prazeres. Amor e fé,
nas obras se vê, pensava a moça ao observar aquele homem que a
adotara espiritualmente: levava-lhe livros, gravuras, discos, sugeria jogos
para as crianças. Dera-lhes um belo globo terrestre, que podia ser ligado
à eletricidade ou alimentado por bateria, comprado em uma de suas viagens
à França, numa loja em Rouen. A pouca ilustração
de Prazeres é devida ao Doutor Gustavo.
À noite, ela ia para o seu quarto, no alto da casa de dois pavimentos,
uma espécie de jirau, de onde podia contemplar a cidade; e o mar, ao
longe, aparecia como uma nesga de metal azul, imóvel.
Já faria um ano exato desde o desaparecimento da Prazeres da Ladeira
dos Aflitos, após a vergonhosa retirada de Teodoro.
Era outono novamente, em início de noite. A lua, em seus primeiro quarto,
clareava uma parte do céu. A moça chamou as crianças para
um passeio nos jardins e lá se foram, dos jardins ao pomar, do pomar
à horta, conversando e cantando Se esta rua fosse minha, canção
amada por Prazeres e adorada pelas crianças. Ela possuía uma voz
excepcionalmente bonita. Modulava as canções de modo encantador,
e as crianças adoravam suas cantigas. A moça lhes dizia que iria
ladrilhar os caminhos de brilhantes para as crianças passarem, e que
o Bosque Solidão escondia os anjos que, em vez de roubar corações,
dava presentes às crianças boas. Sentaram-se em baixo de uma mangueira,
onde fora construído um banco que a rodeava. Dona Alba veio ao encontro
dos três e ali se sentou.
De repente, a luz da lua iluminou as folhas secas que estavam pelo chão,
e ergueu-se em bote armado uma serpente assustadora. Paulo foi o primeiro a
ver o réptil. Gritou assustado, apontando-a. Dona Alba ficou logo em
pé no banco, puxando ambas as crianças. Prazeres ficou à
frente dos três, de costas para eles, em baixo, braços abertos
inclinando-se para trás, a protegê-los. Numa fração
de segundos tomavam-se essas medidas. A cobra estava no auge do bote e ia atacar,
Prazeres era o alvo próximo. Esta olhou para os lados e avistou a pá
que o jardineiro tinha usado pela manhã, encostada no tronco da mangueira.
Inclinou o corpo lentamente nessa direção e decididamente pegou
a pá e alcançou em cheio a cabeça do bicho, que caiu por
terra, ondulando freneticamente.
Esse ato heróico foi comentado por todos, com muitos elogios à
coragem da criada. Dona Alba afeiçoou-se a ela, depois disto, baixou
um pouco sua arrogância fútil e arrefeceu os preconceitos.
Um dia, quando Prazeres foi às compras a pedido da patroa, ouviu vozes
discutindo no estacionamento no supermercado.
"- Seu gigolô safado!", foi o que ela ouviu. "- Mas eu
não fiz nada disso, é uma calúnia!", foi o que ela
viu. Prazeres reconheceu aquela voz, não havia como duvidar. Era a voz
de Teodoro. Escondeu-se atrás de uma pilastra e procurou localizar de
onde vinham as vozes.Viu a cena: Teodoro estava, naquele momento, sendo levantado
pela gola da camisa, "abotoado", como se diz, por um homem que dava
dois dele, espadaúdo. Prazer ficou olhando atônita. Como era boa,
teve o instinto natural de correr para ajudá-lo ou chamar alguém
que o fizesse. Conteve-se, esperou. O grandalhão gritava mais: "-
Seu corno de uma figa, você vai ter de me pagar agora!".
Prazeres, ao ouvir aquilo, reportou-se à vida na época de Teodoro,
na dor, no sentimento de desgraça, na humilhação, na mudança
radical de seus planos de vida - tudo à sua frente, doendo, doendo muito.
Reteve a respiração e fechou os olhos. Repetia as palavras da
oração de Santa Tereza de Ávila, que aprendera em espanhol
com Seu Baldomero, da padaria de sua cidade natal: Nada te turbe, / nada
te espante: / todo pasa - / Dios no se muda./ La paciência todo lo alcanza,
/ Quien a Dios nada le falta, / solo Dios basta. "A árvore se
conhece pelos frutos", pensou. Ocorreu logo em seguida a seu coração
generoso que o outro poderia estar errado, de Teodoro ser a vítima.
Em uma bela manhã de setembro, e Prazeres surpreendeu-se espantosamente
feliz. Não estava sofrendo, só espantada e até, solidária.
Ajudaria, se pudesse. Resolveu ajudar. Aproximou-se e bateu no ombro do grandalhão:
- Senhor, por gentileza...
Ele se virou irado, já pronto para dizer uma grosseria, quando se viu
frente a frente com a doçura de Prazeres. Desarmou-se, "desabotoou"
Teodoro, que ficou ali, estático, olhando para sua antiga namorada.
- A senhorita quer falar comigo, senhorita? Perguntou o grandalhão.
- Sim, meu senhor.
- E o que é?
- Conheço este senhor, apontando para Teodoro, é um homem de bem,
deve estar havendo algum engano.
O grandalhão desatou numa gargalhada portentosa.
- Isso aí, homem de bem? Moça, isso é um verme!
Teodoro, transido, abaixou os olhos, manteve-se imóvel.
- Senhorita, eu lhe digo, havia um caboclo na minha terra que dizia: "Doutor,
tem dois tipos de serviço que eu não faço: é subir
em coqueiro e descer em cacimba", e acho que ele tá certo. Mas para
me livrar desse sujeito aí, eu subo num coqueiro e desço numa
cacimba quantas vezes for preciso. Não sei como uma pessoa decente como
a senhorita se dá com gente dessa laia!
- Desculpe, meu senhor, é que ele é de minha família e...
- Moça, eu não queria estar na sua pele! Parente como esse é
desgraça.
- Eu posso ajudar de que modo, meu senhor? indagou Prazeres.
-Esse sujeito me deve, tem um ano, uma quantia que emprestei em confiança,
com pena dele, que estava sem dinheiro pra comer. Agora estou com filho doente
em casa, precisando comprar remédio, e esse... esse caloteiro fica enrolando.
- O senhor me diga quanto é, que eu vou ver se posso pagar. Ele me
paga depois, ele sempre pagou, retrucou ela, sem olhar em nenhum momento para
Teodoro.
Não há emoções indescritíveis, nem são
incontáveis as tristezas, o tempo é que não é propício.
Se os momentos são incertos, e as palavras vêm tardias, depois
dos heroísmos e ações imaginadas, a verdade, é que
Teodoro ficou sem agir e parecia não pensar, nada falou.
Tudo foi feito muito rápido, a vida correndo e os instantes passando
antes de virem a ser:
Prazeres fez um cheque e o entregou ao grandalhão, que agradeceu e disse,
de saída:
- Cuidado com esse sujeito, senhorita! Pode ser seu sangue, mas não
presta, me desculpe, mas ele não vale o chão que pisa.
Nem tudo são metáforas. Entretanto tudo, na riqueza de seu acontecer,
nos deixa um risco, um traço de inacabado, uma cicatriz a ser curada.
Muitos poderão nos descrever tal fenômeno, mas nem poucos conseguirão
explicar no exato frescor de sua verdadeira atualidade, por exemplo, o gosto
rascante da cajuada ou a súbita alegria trazida por telefonema de amor
ansiosamente esperado. São tarefas para grandes conhecedores da alma
humana.
Pois bem, a fisionomia de Teodoro foi além de tudo o que eu já
ensaiei relatar: horror, vexame, pânico, desamparo, medo, vergonha, atordoamento
- isso e muito mais que escapa às minhas limitadas possibilidades descritivas.
Afinal, o que é que a linguagem pode nos oferecer, diante da riqueza
da experiência humana? Apenas realizamos uma leve incisão no tecido
pujante da vida, quando a descrevemos. Se a vida exsudar desse corte, aí
teremos uma possibilidade (ainda possibilidade, vejam bem) de atingir uma realização
artística, pois profundamente humana, humanizada e humanizante, embora
sempre passível de mais se humanizar: humanizável, digamos, em
estado de contínua mudança que, se tivermos sorte, ou graça,
será para chegar mais perto do núcleo da emoção
e da paixão, do desejar e do querer, do expressar com palavras aquilo
que pertence a outra ordem de existência. A linguagem é como um
corpo estranho dentro do coração da vida. Só aos poetas
é dado torná-la familiar ao ser humano, mas poetas são
seres raros e poucos na história das letras e da humanidade. Tivesse
eu nascido com esse dom! Quem sabe, assim, poderia entender melhor a alma humana,
e, consequentemente, entender-me mais?
E agora, como encontrar um rumo para esse relato?
Quedo-me a cismar se Teodoro é apenas o homem que entrevimos até
aqui. Vez por outra paramos no mesmo lugar, por falta de orientação.
Algo dentro de mim percebe nenhum de nós muito diferente do outro. Mostramos
a face luminosa para o mundo e ocultamos a sombria. Percebemo-nos, no decorrer
da vida de modo parcial e falto: não conseguimos ver o Outro em sua inteira
existência. Dependendo da perspectiva em que nos situamos ou do momento
que vivemos divisamos aspectos diferentes de um mesmo indivíduo. O fato
é que pouco sabemos uns dos outros. E não sabemos das verdadeiras
razões que levaram Teodoro àquele momento de derrota e vergonha.
Não, não me agradam os paradoxos. Desgosto deles, embora consiga,
às vezes, entendê-los. A vida já é complicada algumas
não poucas vezes e deveria ser tornada clara, fácil, gibi antigo,
em que conhecemos a máquina das ações, pulamos por cima
delas e vamos direto às alegrias - diálogos curtos, vitória
do herói. Isto, na teoria; e "a teoria, na prática, é
outra", ao pensar de Mao Tse Tung.
O que fez Teodoro, e qual será o significado íntimo desse gesto?
Ajoelhou-se aos pés de Prazeres, beijou-lhe os pés aos prantos.
Não teve a audácia e o destemor de proferir palavra.
Prazeres virou as costas lentamente e andou em direção ao interior
do mercado com absoluta serenidade e, garanto-lhes, leitores, sem esperar que
ele a seguisse: ela tinha feito a sua parte, pois ela era assim mesmo, um fio
de prumo.
Teodoro levantou-se atordoado. Não teve a audácia de ir atrás
da moça. Enfiou um passo rápido em direção à
rua e perdeu-se na multidão. Ninguém de meu conhecimento nunca
mais ouviu falar dele.
Prazeres fez suas compras e voltou para casa. Pálida, arrumou-as, tomou
um banho, entupiu-se de lavanda como nunca antes, deitou-se olhando para o teto
de seu quarto. "Pelos frutos, conhece-se a semente", murmurou. E até
o último dia de sua vida limpa rezou pela salvação da alma
de Teodoro e deu graças a Deus por ter podido ajudá-lo naquele
momento difícil. O amor que sentiu por ele transformou-se em amor
em Deus, como o viu Santo Agostinho: amar para redimir o pecado do outro.
III
O tempo escoava, as crianças cresciam.
Dona Alba recebeu uma pequena herança de uma tia por parte de pai, que
falecera. Comprou uma casinha de veraneio, muito aprazível, no município
de Camaçari, em Arembepe, a poucos metros da praia. Passaram dias felizes
naquele sítio.
Prazeres adorava ir à feira para fazer as compras da casa. Gostava, principalmente,
de comprar frutos do mar fresquinhos, pechinchando sorridente com os vendedores.
Numa dessas feitas, ficou a observar os barcos chegando à praia, as mulheres
dos pescadores recebendo os maridos com alegria, aquele alarido alegre mesclado
ao arrastar-se das marolas à beira da praia e ao cheiro de maresia e
pescado.
De repente, Prazeres ouviu alguém dizer: " - Mas não á
a filha de Seu Agenor, de Potiraguá?" Ela se voltou v
amente para
ver de quem era aquela voz: era uma senhora de seus setenta anos, carregando
uma criança de colo. Reconheceu a fisionomia de uma vizinha de sua infância,
Anastácia. Suas famílias moravam em ruas contíguas e seu
pai, Seu Totônio, possuía um armazém que a fascinava - repleto
de itens variados, inclusive brinquedos de armar, feitos de madeira pintada
em cores vibrantes e - isto ela adorava - uns copinhos que, tangidos com um
pequeno bastão de madeira, emitiam sons encantadores e diferentes uns
dos outros. Aproximou-se:
- Maria dos Prazeres, de Seu Nô? É você, não é?
Abraçaram-se. Prazeres encantou-se com o bebezinho. Dona Taza - Anastácia
- contou que era seu neto e ficara órfão do pai. Sua filha se
casara com um rapaz de Ibicaraí, pescador, morto em dia de tempestade,
e, logo em seguida faltou-lhe a mãe, sua filha, Lívia: Prazeres
se lembrava dela?, que estava grávida na ocasião da viuvez; a
pressão subiu muito, teve eclampsia, mas a criancinha nasceu com saúde.
Ela, a avó, a criava, mas as dificuldades financeiras eram terríveis.
Prazeres se compadeceu e levou Dona Taza e o bebê para Dona Alba conhecer.
Conversa vai, conversa vem, Dona Taza, aos prantos, contou que tinha ido à
praia naquele dia na esperança de encontrar algum conhecido e pedir-lhe
para ficar com a criancinha, até adota-la, se fosse o caso: não
tinha mais onde morar, estava de favor na casa de uma ex-patroa.
Prazeres ouviu o relato, a emoção atada, o choro à beira
de correr, de compaixão do bebê e da avó. Pediu à
patroa para acolhê-los por algum tempo, a casa era grande. Ela mesma se
encarregaria das despesas, afinal onde comem dois, comem três, dona Alba!
A patroa consentiu, meio aborrecida, mas consentiu. Arguiu que não
eram apenas dois os que ali comiam, mais seis, contando com o caseiro e a cozinheira.
E as despesas com a educação dos filhos! E depois, se ficassem,
quem iria arcar com o ônus da educação e da saúde
da criança?
Prazeres disse que Dona Taza poderia cozinhar, se a cozinheira arranjasse outro
emprego, ou tomar conta da casa, se o caseiro não continuasse, pois,
pelo que parecia, não iria continuar mesmo, e...
- Está bem, atalhou Dona Alba. Mas veja bem que não seja por
muito tempo. Só até a avó conseguir melhorar sua situação!
Prazeres nunca se mostrou tão disposta para o trabalho. Esfalfava-se
para fazer tudo à perfeição, cuidava de toda a roupa da
casa - que antes era lavada fora, fazia todos os consertos e reformas
O menino ainda era pagão. Prazeres como madrinha, batizaram-no com o
nome de Rômulo na Igreja de São Francisco, em Arembepe mesmo. Foi
uma cerimônia simples, mas, depois, o Zé Gringo, dono do bar mais
conhecido de Arembepe, ofereceu o café da manhã, lá ao
modo dele, resmungando sempre. Alguns hippies apareceram, vindos da Aldeia.
Zé Gringo ficou zangado com isso - não gostava do pessoal da Aldeia.
Na Vila, aliás, todos estranhavam seus modos que achavam promíscuos,
sua maneira de se vestir. Além disso, fumavam maconha, não tinham
respeito, os casais, todo mundo transava com todo mundo!
Com o tempo, Dona Alba achou que Dona Anastácia explorava Prazeres.
Não sei se explorava, sei que ela assumiu integralmente o "sobrinho",
que acabou sendo adorado por Paulo e Virgínia. Dona Alba olhava com restrições
essas intimidades, mas deixava passar para não aborrecer seus filhos.
Acabou contratando Dona Taza como caseira e, de volta à cidade, Prazeres
suplicou-lhe para levarem o bebê para a cidade. Após alguma relutância,
concordou.
Era o filho que não tivera - já estava agora beirando os quarenta
anos, em 1983, e nunca mais pensara em casar-se, após o episódio
de Teodoro. Voltaram à cidade por algum tempo.
Ali, Dona Alba teve a notícia de que suas finanças iam de mal
a pior: o cacau já vinha apresentando problemas com a praga da vassoura-de-bruxa
há algum tempo. A situação era grave e foi se agravando
mais e mais. Em pouco, Dona Alba estava pobre: resolveu vender a mansão
do Horto e se mudar para a casa de veraneio.
Os meninos já estavam crescidos, podiam se movimentar com facilidade.
E o futuro deles estava assegurado, pois o pai assim providenciara antes de
morrer. Não tardou muito e ambos quiseram estudar fora, em São
Paulo. Como havia recursos poupados para os estudos dos dois, isto foi concretizado.
Num dia de muita chuva partiram juntos para São Paulo, para fazerem seus
estudos de graduação. Iriam morar na casa de uma tia do lado paterno.
De certo modo aqui se conclui uma parte importante da vida de Prazeres, pois
os meninos foram por anos o centro de sua vida. Sentia saudades, muitas saudades.
Mas havia Rômulo.
O "filho" de Prazeres desabrochava bonito e saudável. Tornou-se
a alegria da casa: a própria Dona Alba apegara-se a ele, em momento tão
difícil de sua vida, com sua mudança de padrão de vida
e a ausência de seus filhos.
IV
- Está no tempo de Rômulo fazer a Primeira Eucaristia, disse Dona
Alba a Prazeres, enquanto sentadas à varanda da frente da casa cerzindo
roupas e fazendo outros pequenos consertos. A moça gostava muito de consertos,
tinha prazer em verificar as roupas que antes pareciam imprestáveis e
depois ficavam como novas.
Prazeres anuiu entusiasmada:
- Na Igreja de São Francisco, Dona Alba?
- Oh, não, vamos fazer na cidade. Vou, falar com os padres do Colégio
Antonio Vieira. Fazemos lá na capela. É uma cerimônia muito
bonita, comunitária, no mês de outubro sempre. Mesmo o menino estudando
em escola pública, pode participar da cerimônia, os jesuítas
facilitam.
Começaram os preparativos para a Eucaristia de Rômulo, que crescia
em inteligência, graça e beleza, para alegria de sua madrinha.
Ele passou a frequentar o curso de preparação para o sacramento,
e foram às compras para providenciar a roupa da Eucaristia. Compraram
o linho branco, no Shopping Itaigara, os objetos litúrgicos nas Paulinas.
Em casa, Prazeres se apressou em tirar o excesso de goma da roupa, a fim de
cortar um lindo terno para seu afilhado. Na área de lavagens da casa,
foi enchendo uma grande bacia de zinco com um caneco de flandre, que ficava
na prateleira acima da pia da lavanderia. A água, à luz do dia
claro, brilhava em pequenos sóis dentro da bacia. Prazeres olhou aquele
pequeno encanto com alegria, pensou que era um prenúncio de dias muito
claros para seu querido menino.
Todos os dias levava Rômulo ao Antonio Vieira, para a preparação
da Eucaristia.Tomavam o ônibus até a Rodoviária, logo após
o almoço, e daí seguiam para o Garcia, bairro onde fica o colégio.
Ali permaneciam até as 18:00h e retornavam à Rodoviária
para tomar o ônibus de volta a Arembepe. No intervalo, comprava na cantina
do colégio, um sonho e um suco para o afilhado. Como o dinheiro era reduzido,
não comia nem bebia nada, a não ser um golinho do suco de Rômulo,
quando sobrava, pensando sem amargura: "até a morte, pé forte".
Ajoelhava-se para fazer suas orações na Igreja, enquanto esperava
o menino cumprir suas duas horas de instrução religiosa.
Um desses dias, fitando a imagem da Virgem, de joelhos, diante do Menino Jesus
e, atrás do Tabernáculo, fixou o olhar num quadro, que representava
S. Jorge trespassando o dragão."Como um santo pode usar uma lança
dessas, meu Deus, e matar um animal?" Lembrou-se, depois, que dragões
não existiam, mas ficou impressionada com aquele quadro agressivo.
Nos dias seguintes, o sacerdote reuniu os familiares para prepará-los
também. O sacerdote fazia um resumo da História Sagrada. Prazeres
supunha ver o Paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades
em chamas, pessoas que morriam, ídolos destruídos e guardou deste
deslumbramento o respeito ao Altíssimo e o temor da Sua cólera.
Depois chorou, ouvindo a Paixão. Porque crucificaram Aquele que amava
as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e tinha
querido, por bondade, nascer no meio dos pobres, num estábulo?
Os peixes trazidos à beira da praia, os caminhos de chão batido
orlados pelo coqueiral, o mar, ah, o mar! Este principalmente invadia a sua
vida desde a primeira vez que, vinda do interior, fitou-o. Se não acreditasse
em Deus até ali, teria passado a acreditar. Ali era onde Ele lhe falava
mais forte
Fim de tarde, olhando o voo das gaivotas e outros pássaros marinhos,
pensava no Espírito Santo. Tinha dificuldade em imaginar o Espírito
Santo porque não era somente ave, conforme explicara o padre: podia apresentar-se
como fogo ou soprar luz nas mentes. Será sua luz que volteja, à
noite, em volta da lua, o seu hálito que empurra as nuvens, a sua voz
que dá harmonia ao som das ondas? E ela se mantinha em adoração,
sentada na areia da praia, encantada com a cor das coisas que via, com os sons
do oceano e das vozes quando em vez, com o cheiro da maresia que a fazia estremecer
de prazer, com o gosto salgado que lhe entranhava a pele já acostumada
ao sol e aos ventos de agosto em Arembepe.
Na instrução para a Eucaristia de Rômulo, não conseguia
compreender os dogmas nem tentava. O padre discorria, as crianças respondiam
e ela acabava por adormecer. Acordava, bruscamente, quando ouvia tocar o sino
das seis da tarde, hora em que acabava o curso. Foi assim, à custa de
ouvir, que aprendeu alguma coisa básica do Catolicismo, pois, na sua
infância, a educação religiosa se limitava às práticas
litúrgicas habituais. Seus pais eram católicos, sim, mas de Batismo
apenas: também batizaram todos os filhos, como se faz no Brasil de modo
geral.
A religiosidade popular, em seu núcleo, é um acervo de valores
que responde com sabedoria cristã às grandes interrogações
da existência.A sabedoria popular católica tem a capacidade de
uma síntese vital; assim, conleva criadoramente o divino e o humano;
Cristo e Maria, espírito e corpo; comunhão e instituição;
pessoa e comunidade; fé e pátria, inteligência e emoção.
Essa sabedoria é um humanismo cristão que afirma a dignidade de
toda pessoa como filho de Deus, estabelece uma fraternidade fundamental, ensina
a encontrar a natureza e a compreender o trabalho e proporciona as razões
para a alegria e o bom humor, mesmo em meio de uma vida muito dura. Prazeres
tinha absorvido essa religiosidade de sua família e de sua cidade natal.
A Primeira Comunhão do afilhado ocupou-a intensamente. "não
se fazem omeletes, sem quebrar os ovos", pensava. E Prazeres era doutora
em ovos e omeletes. Preocupou-se com os sapatos, o chapéu, o livro, as
luvas - e com que emoção ajudou o menino a se vestir!
Chegou, enfim, o grande momento. Quando foi tomar o seu lugar, o coração
palpitava-lhe "nas fontes", como ouvia dizer, ou seja, em suas têmporas,
o sangue corria forte. Contemplava aquela nuvem branca das crianças indo
e voltando durante a liturgia. E ela reconhecia, de longe, o seu querido menino,
os olhos baixos, contrito. O Ofertório a fez chorar incontidamente. Era
Rômulo quem levava a âmbula contendo as hóstias, cobertas
com o linho branquíssimo do corporal! E as outras crianças, que
lindo, o pão, a água e o vinho nas galhetas, todas as oferendas
para as crianças carentes, e aquela criança lourinha e baixinha
carregando o Livro, a Bíblia Sagrada!
As cabeças curvaram-se. Fez-se silêncio. Era a hora da Comunhão.
O sacristão tocou a campainha. Prazeres ouviu, ali, o mesmo som dos copinhos
da venda de Seu Totônio, que coisa mais bonita. Seu rosto estava vermelho
da emoção, seus olhos inchados de lágrimas.
Dona Alba cutucou-a, não é enterro não, Maria dos Prazeres,
que coisa! Dá até má sorte, essa choradeira! Prazeres balançou
a cabeça, concordando e recompunha-se com dificuldade, mas tentava com
empenho segurar as lágrimas e os soluços.
Ao som do órgão, o grupo coral e a multidão entoaram o
"Agnus Dei". Começou então o desfile dos rapazes, e,
depois deles, as meninas levantaram-se e foram juntar-se aos rapazes. Passo
a passo, de mãos juntas, caminharam para o altar, completamente iluminado,
ajoelharam-se no primeiro degrau, sucessivamente iam recebendo a hóstia
e, pela mesma ordem, voltaram aos genuflexórios. Quando chegou a vez
de seu menino, Prazeres inclinou-se para vê-lo. E com a imaginação
que dão as verdadeiras ternuras pensava que era, ela própria,
aquela criança: a figura do menino tornava-se sua, e a menina a seu lado,
com o delicado vestido branco, vestia-o ela também, e igualmente o seu
coração era o que lhe batia agora no peito. No momento em que
o menino abriu a boca, cerrando as pálpebras, Prazeres sentiu-se desfalecer.
Quando foi ela receber a hóstia, tomou seu lugar na fila, toda orgulhosa
de estar ali, do orgulho dos simples, que, antes de ser orgulho, é alegria
pura e inteira.
O tempo passava e o afilhado embelezava a olhos vistos. Divertia-a, contando-lhe
histórias que ia aprendendo no grupo escolar que frequentava. Ela
o ouvia embevecida, amando-o sempre mais e devotadamente.
Mas chegou o momento de decidir seu futuro. Dona Alba achou por bem dirigi-lo
à carreira militar, ao Exército, pois teria sustento assegurado
e formaria seu caráter. E assim foi feito. O enxoval de Rômulo
foi preparado com dedicação por Prazeres, de suas próprias
economias, e em breve ele embarcaria para Fortaleza. Após alguns anos,
para o Estado do Rio, Academia Militar de Agulhas Negras.
Ela se preocupava, o menino iria lidar com armas! E se houvesse um acidente,
se a arma disparasse contra ele, ou se, nos treinos, um colega o atingisse sem
querer? Escutando o vento, que bramia e levantava as telhas, via-o atingido
por uma tempestade, na parte mais alta de uma torre de vigia, todo o corpo para
frente, sob uma toalha de chuva; ou então - recordação
da geografia em estampas - era comido pelos selvagens, engolido por uma baleia,
morrendo numa praia deserta, vencido em luta corporal por um gigantesco jiu-jitsu.
E nunca falava das suas inquietações. Mas, um dia, quando Dona
Alba reclamava da falta de notícias de Paulo e Virgínia, ela suspirou
com doçura:
- E eu, minha senhora, que há seis meses não as tenho.
- Mas de quem?
A criada replicou docemente:
-... do meu afilhado!
- Ah! o teu afilhado! E erguendo os ombros Dona Alba retomou o seu passeio.
Prazeres, se bem que mansa, ficou indignada contra a senhora; depois esqueceu.
Achava muito natural que se perdesse a cabeça tratando-se de preocupações
com filhos. As duas crianças tinham uma importância igual no seu
coração, também estava preocupada, e por que Dona Alba,
depois de tantos anos de convivência, fazia-se de esquecida de Rômulo?
Seria algum tipo de pirraça?
Então uma fraqueza a dominou: as tristezas da solidão, a dispersão
de sua família, a decepção com o único homem de
sua vida, as suas roupas modestas, as suas mãos maltratadas pelo trabalho
de toda uma vida, as varizes de suas pernas - antes tão bonitinhas, a
falta de um cantinho no mundo que fosse só seu. Essas coisas, como maré
refluindo, voltavam, e, subindo-lhe à garganta, abafavam-na.
A partir dessa época, a moça começou a apresentar problemas
com a pressão arterial. Tinha picos de pressão. Ficava arroxeada,
vomitava, tremia muito, dores fortíssimas de cabeça. Era, então,
levada pela patroa ao Posto Médico às pressas. Começou
a tomar medicação permanente para controlar o problema.
V
Então, Prazeres ganhou um presente inesperado: veio-lhe pelo correio
uma encomenda. Uma encomenda! Para ela! Do correio de São Paulo!
Dona Alba olhou curiosa:
- Um namorado oculto, hein, Prazeres?
A moça ficou sem jeito:
- Que namorado, Dona Alba, na minha idade e troncha como estou ultimamente,
com essa ciática?
Dona Alba não sabia da ciática de Prazeres.
O pacote foi colocado em cima da mesa da cozinha, onde se encontravam, num cantinho.
Prazeres foi abrindo o pacote, respiração presa, lentamente, pausadamente,
parando de vez em quando para dizer uma ou outra coisa à cozinheira -
que olhava, curiosa e com uma ponta de inveja - e a Dona Alba, que a apressava,
vamos, vamos com isso, Prazeres, vamos ver se a coisa é bonita mesmo!
E acrescentava, piscando o olho para a cozinheira:
- Vai ver que é uma joia!
Prazeres ria sem malícia, mas percebeu a ironia da patroa - ela não
era nenhuma bronca, afinal - mas ignorou, para não estragar a alegria
que acariciava seu coração.
Era uma linda ave, corpo de branco níveo, asas e rabo azul celeste,
com um tom de verde bem claro acima e abaixo das asas. Parecia com um papagaio,
pelo bico, mas só pelo bico, pois o resto era como uma visão do
paraíso. A bela ave batia as asas com aflição dentro da
gaiola dourada.
Prazeres ficou vexada:
- Meu Deus, coitadinha, assim presa e sozinha!
Uma aflição a dominava, uma grande e incomensurável aflição:
nada semelhante lhe ocorrera antes ao coração singelo.
Em frente da janela da cozinha, aberta para o jardim, a moça olhou e
viu o lugar ideal para deixar a ave, um galho do sapotizeiro, bem grosso e retorcido,
que, acima, formava um poleiro natural, bem agasalhado. Prazeres correu para
lá, com a gaiola. Pressurosamente cuidou daquele tesouro de plumas. Mudou
a água, limpou o recipiente dos grãos, deu um gole de água
- como vira seu pai fazer durante toda a sua infância - e prendeu-o dentro
da boca, soprando-o, a seguir, para banhar a ave peregrina contida naquela prisão.
Era da parte de Teodoro, a remessa. Ela ficou ali olhando o belo animal, transida,
atordoada. Não lhe agradava o ver aves aprisionadas.
Dona Alba e a cozinheira desataram em exclamações:
- Que pássaro maravilhoso, exclamava Dona Alba, nunca vi um assim,
antes, parece uma pintura!
- É coisa fina, afirmava a cozinheira. Eu nunca vi um assim.
E aproximaram-se, observando, enquanto o pássaro, primeiro muito assustado,
acalmou-se e ficou quietinho, as pálpebras descidas, cansado.
- Olhe, tem um envelope aqui, Prazeres, e Dona Alba foi pegando o envelope.
É da loja onde foi comprado, acho eu. Posso abrir?
Prazeres olhou-a, os olhos esgazeados, não conseguia falar. Dona Alba
abriu o envelope: começou a ler um impresso que desdobrara, em excelente
qualidade de papel couchê.
Família: Psittacidae
Espécie: Cyanopsitta spixii
Ameaçada de extinção
Comprimento: 57 cm. Encontrada exclusivamente no Brasil. Originalmente a espécie
ocorria no extremo norte da Bahia, ao sul do Rio São Francisco, na região
de Juazeiro. Atualmente, porém, resta um único exemplar conhecido
na natureza (um macho) e cerca de 20 em cativeiro. Desde o início da
década de 90 há um projeto para a localização de
outros indivíduos e a recuperação da espécie pela
reintrodução na natureza daqueles atualmente em cativeiro. Entretanto,
a tentativa de acasalamento do macho em liberdade com uma fêmea nascida
em cativeiro, feita recentemente, não obteve sucesso. Também não
foram localizados novos indivíduos. Assim, a espécie está
praticamente extinta na natureza, situação provocada pelo comércio
ilegal de aves raras, sobretudo para o exterior. O hábitat natural da
ararinha-azul é a caatinga seca e as florestas ciliares abertas de pequenos
afluentes temporários do Rio São Francisco. Alimenta-se de frutos
e sementes, gostando de empoleirar-se sobre as pontas dos galhos secos. Realiza
migrações locais, quando frequenta também buritizais.
A espécie fazia ninhos em grandes buracos nos troncos de árvores,
principalmente em caraibeiras.
A emoção de Prazeres foi tão intensa, que cambaleou. Parecia
estar com uma de suas crises de pico de pressão, o rosto arroxeado, tremendo.
Ficaram, a cozinheira e Dona Alba, preocupadas. Cuidaram de Prazeres, e ela
foi voltando. Sorriu, reconhecida e, preocupada com o pássaro na gaiola,
quis levantar-se. As mulheres a impediram, ela precisava descansar mais um pouco.
- Mas o bichinho...
- Cuidaremos dele, ele está bem, não está vendo? Quem
não está bem é você.
Prazeres ficou deitada, quieta, os olhos semicerrados, exausta. Dormiu. Quando
acordou, a patroa lhe disse que tinha mais uma coisinha na encomenda. O que
seria, pensou Prazeres apreensiva com o excesso de alegria. É um poema
de um autor francês, mas está na língua francesa.
O que significava aquilo, pensava Prazeres, e seu coraçãozinho
se apertava de ansiedade. Seria algum código secreto, não iria
fazê-la sofrer? Afinal, gato escaldado tem medo de água fria.
O poema era este:
APPARITION
Victor Hugo
Je vis un ange blanc qui passait sur ma tête;
Son vol éblouissant apaisait la tempête,
Et faisait taire au loin la mer pleine de bruit.
- Qu'est-ce que tu viens faire, ange, dans cette nuit?
Lui dis-je. - Il répondit: - Je viens prendre ton âme -
Et j'eus peur, car je vis que c'était une femme;
Et je lui dis, tremblant et lui tendant les bras:
- Que me restera-t-il? car tu t'envoleras. -
Il ne répondit pas; le ciel que l'ombre assiège
S'éteignait... - Si tu prends mon âme, m'écriai-je,
l'emporteras-tu? montre-moi dans quel lieu -
Il se taisait toujours. - O passant du ciel bleu,
Es-tu la mort? lui dis-je, ou bien ès-tu la vie? -
Et la nuit augmentait sur mon âme ravie,
Et l'ange devint noir, et dit: - Je suis l'amour.
Mais son front sombre était plus charmant que le jour,
Et je voyais, dans l'ombre où brillaient ses prunelles,
Les astres à travers les plumes de ses ailes.
Esse poema estava num outro envelope, com a assinatura trêmula de Teodoro.
Prazeres não lia o francês e pediu a Dona Alba para dizer o que
era que estava ali escrito, sabia, apenas, que era um poema e era de Victor
Hugo, do qual já tinha ouvido falar. Pensou no saudoso Dr. Gustavo Bovary,
em como seria bom tê-lo ali naquele momento. Dona Alba foi fazendo uma
tradução meio estropiada, inventando as palavras que não
sabia ao certo:
Eu vi um anjo branco a voar sobre minha cabeça.
Seu voo dardejante acalmava a tempestade
e fazia calar o fragor do mar distante.
- O que vens fazer, anjo, a esta hora noite? Perguntei-lhe.
Ele respondeu:
- Eu vim buscar tua alma.
Tive medo. O anjo era mulher,
e eu lhe disse, tremendo e lhe estendendo os braços:
- O que será de mim depois? pois já irás te retirar.
Ele não respondeu. O céu, que a sombra sitiava, se extinguiu...
- Se vais levar minha alma, eu bradei, tu a levarás, é certo.
Mas me mostre-me para onde.
Ele se mantinha mudo.
- Ó peregrino do céu azul, tu és a morte?
perguntei-lhe de novo.- Ou és a vida?
E a noite crescia em minha alma deslumbrada.
E o anjo obscureceu, e disse:
- Eu sou o amor.
Seu semblante de sombra era mais encantador do que o sol,
e eu vi, na escuridão onde brilhavam suas pupilas,
os astros despontando das plumas de suas asas.
Prazeres nunca ouvira nada tão belo. Era como uma oração.
Batizou a ave de Suspiro, pois sua cabecinha terminava num topetinho parecido
mesmo como o doce conhecido por esse nome. Afeiçoou-se ao bichinho por
demais, e ele a ela. Logo ao acordar, ia passear na praia com Suspiro no ombro,
e ele bicava a ponta de sua orelha e encostava a cabecinha no seu rosto, pressionando-a.
Uma belezinha.
Não lhe ocorria que Teodoro a tinha enviado. Para Prazeres, Teodoro
era aquele que dançara com ela na Casa Paroquial, o que lhe dissera poemas
e contara histórias da Grécia. O outro não existia. Assim,
também, Suspiro era dela e nada tinha a ver com o homem do engodo, da
gigolotagem e do estacionamento do supermercado.
Esse tipo de memória seletiva, como era a de Prazeres, parece ser um
dom de Deus para alguns privilegiados, os puros de espírito de que a
Bíblia fala. Não sei das injunções bioquímicas
ou psicológicas do fato, nem me interessa saber para falar com franqueza.
Prefiro pensar que é assim como eu dizia, dom de Deus para os que têm
merecimento.
O idílio de Prazeres com Suspiro foi interrompido bruscamente. A ave,
inexplicavelmente, desapareceu de seu cantinho no sapotizeiro. É improvável
que tenha fugido. Deve ter sido roubada. Nenhuma pessoa viu ou ouviu nada a
respeito.
A moça chorou e chorou mansamente a perda do seu querido animalzinho.
Mas com a perspectiva da chegada de Rômulo reagiu: "é preciso
fazer das fraquezas, forças" , como dizia sua sábia avó,
que sublinhava: "é preciso ter têmpera de aço".
Assim ela procedeu, doce na dor, suave no sofrimento, com sua bonomia natural
a apaziguar suas próprias dores.
VI
As notícias de Rômulo demoraram. Prazeres resolvera viajar para
saber o que estava acontecendo. Mas estava adoentada e mal disposta para tomar
qualquer iniciativa. Lembrou-se de Doutor Gustavo Bovary: como seria bom poder
contar com ele em momento tão difícil! Já se passavam anos,
desde a última vez que o vira na mansão do Horto Florestal, na
Capital. Comentou com Dona Alba, que retrucou:
- Mas você tem mesmo um anjo da guarda forte. Doutor Gustavo virá
passar uns poucos dias aqui, para descansar.
Prazeres se encheu de felicidade. Felicidade era um nome para ela naquele momento,
sem dúvida alguma.
Veio o Doutor. O encontro foi emocionante para ambos, Prazeres chorava de alegria.
Ele a abraçou:
- Vamos cuidar de tudo, filha, tudo na vida tem um jeito.
Tomaram-se então as providências para localizar Rômulo.
Prazeres foi com o Doutor dar uma voltinha na praia, para relaxar e conversarem.
No mar, prateado pela lua, havia um barco sozinho e pequeno trespassando as
águas iluminadas.
Ele conversava suavemente com ela. Dizia-lhe:
- Minha filha, a coragem diante das perdas você demonstrou ter, mas essa
é a coragem de um momento. Muitas vezes ela é aplaudida pelas
pessoas e até mitificada. Mas o que é mais raro e mais necessário
é a coragem de cada dia - dia após dia - sem testemunhos, sem
elogios, enfrentando as adversidades da vida com resignação e
paciência. Há um autor francês, no seu livro Paul et Virginie,
que ela apoiar-se não sobre a opinião de outrem ou no impulso
de nossas paixões, mas na vontade de Deus. A paciência, diz ele,
é a coragem da virtude: "La patience est le courage de la vertu".É
o Bernardin de Saint-Pierre - que, aliás, inspirou Doutor Crescêncio
e Dona Alba a escolherem o nome de seus filhos, com meu apoio e louvor.
Continuaram passeio até a Igreja da Matriz, onde Rômulo se batizara
há tantos anos atrás, pensou a moça. Entraram. Doutor Gustavo
era agnóstico, mas, livre pensador que era, não tinha preconceitos:
ajoelhou-se solidário ao lado de sua protegida. Ela orou com fervor e
recomendava a Jesus aquele que mais amava e rezou durante muito tempo, de pé,
em seguida, o rosto banhado em lágrimas, os olhos erguidos para o céu.
A cidade dormia, os policiais fazia a ronda, e a água caía, continuamente,
pelos buracos da comporta, com um ruído de torrente. Soaram as horas.
Já era tarde.
Foi quinze dias depois que chegou uma carta de Doutor Gustavo, dirigida a Dona
Alba. A senhora, que bordava, pousou o bastidor perto, abriu a carta, leu-a
e, em voz baixa, com profundo olhar. Prazeres ajeitava-lhe o penteado.
- É uma desgraça - o que te anunciam. O seu sobrinho...
Morreu. Não era preciso dizer mais. Prazeres tombou sobre uma cadeira,
apoiando a cabeça no espaldar e fechou as pálpebras que se avermelharam
imediatamente. Depois, cabeça baixa, mãos pendentes, olhar fixo,
repetia a intervalos:
- Pobre menino! Pobre menino!
Dona Alba tremia um pouco. Fez-se silêncio.
O verdureiro entrou com as compras. Chegaram os cocos secos encomendados para
fazer doces para a chegada de Paulo e Virgínia, em férias de verão.
Prazeres se levantou, pegou o saco de aniagem pesado, mesmo sob o protesto
da patroa. Foi ao quintal. Arregaçou as mangas, pegou no batedor e as
pancadas fortes que dava ouviam-se nos outros jardins, ao lado. As ruas estavam
vazias, o vento agitava as palmeiras; ao fundo, as mais altas inclinavam-se
como cabeleiras de cadáveres, flutuando na água.
Reprimiu a sua dor até à noite; foi muito corajosa, mas no quarto
abandonou-se à sua dor, deitada de barriga para baixo, a cara no travesseiro
e os dois punhos apertando as têmporas.
Muito mais tarde, conheceu as circunstâncias do seu fim.
Tinha contraído hepatite B, quando em serviço no interior da
Bahia, em Itapetinga. Levaram-nos para o hospital militar mais próximo
para tratamento. Havia vários casos dessa doença, que é
muito contagiosa - através dos humores corporais. Tudo indicava que Rômulo
tinha contraído a doença por contato sexual. A madrinha não
soube dos detalhes: dona Alba resolveu poupá-la. Ela andava sentido dores
fortes na cabeça, a pressão arterial instável.
Virgínia e Paulo na casa, Prazeres se distraía mais de sua profunda
dor, cuidava dos meninos - agora adultos e diplomados.
As forças de Prazeres reapareceram. Era necessário cuidar de
seus lindos meninos, alegrá-los, fazer-lhes as vontades.
O verão desapareceu invadido por um outono feroz, como o é na
Bahia.
Virgínia teve uma gripe forte e ficou acamada. Começou a ter
dispneias frequentes, num processo alérgico incontrolável.
Veio o médico, examinou-a e receitou-lhe um antialérgico e vitaminas.
Advertiu quanto à remota possibilidade de um edema de glote, que observassem
suas reações a cada substância ingerida.
Prazeres se desvelava. A mocinha vomitava tudo o que comia. A criada ministrou
o antiemético prescrito pelo médico, e, conforme instruções
dele, ficava lhe dando água de coco ou outro líquido de colherinha
de café, de 10 em 10 minutos. Foi buscar um mingauzinho de arararuta
para alimentá-la. Quando voltou, Virgínia estava com a cabeça
arreada para fora da cama, o rosto azul arroxeado, boca aberta, olhos dilatados,
entre paredes silenciosas e cortinas imóveis.
A menina morrera ao romper de um dia de sol abrasador.
Dona Alba, após desespero sem limites, foi sedada pelo médico,
dormia.
Prazeres lavou a menina morta, vestiu-a, perfumou-a, deitou-a no caixão
sem a ajuda de ninguém, pois não a queria dormia, colocou-lhe
uma coroa de flores e prendeu-lhe os cabelos. Estes, loiríssimos e extraordinariamente
compridos para a idade. Prazeres cortou uma grossa madeixa, tendo escondido
metade no seu peito, disposta a jamais se separar dela.
Depois do enterro, Paulo caiu em profunda depressão e Dona Alba envelheceu
rapidamente. A princípio revoltou-se contra Deus, achando injusto ter-lhe
levado sua filha, que nunca tinha feito mal a ninguém e cuja consciência
era tão pura! Acusava-se, queria tê-la outra vez para si, gritava
angustiosamente no meio dos sonhos. Durante vários meses permaneceu no
quarto, inerte.
Prazeres animava-a, advertindo-a com doçura; era preciso poupar-se por
causa do seu filho e por causa também da outra, em memória dela.
- Dela? - replicava a dona Alba, como que despertando de um sonho.
- Ah! sim! sim! Ela continua perto de nós, só seu corpo foi
embora.
A depressão de Paulo tomava proporções alarmantes. Os olhos
vítreos, o corpo atlético lançado no divã do quarto
olhando a televisão sem ver nada, deixou de comer e quase não
dormia. Em poucas semanas estava reduzido à metade do seu peso.
Um mês depois da morte de Virgínia, a casa parecia um sepulcro.
Prazeres dedicava-se de corpo e alma aos cuidados de Paulo e de Dona Alba. Não
cuidava mais de si mesma, muito menos de sua saúde, que estava fragilizada
devido aos surtos de pressão alta, súbitos e intensos. Mas não
dizia nada a ninguém, para não acrescentar mais preocupações
à situação precária daquela família dizimada
pela dor.
Era um domingo e o dia estava belo como soem ser os dias de verão na
orla marítima do estado da Bahia.
Arembepe, particularmente, continuava a ser um paraíso, a despeito dos
farofeiros e visitantes mal educados do Pólo Petroquímico, barulhentos
e beberrões em sua maioria, o som dos carros numa altura inacreditável
já quando entravam na cidade.
Prazeres foi levar o café da manhã de Paulo no quarto, e já
se preparava para cantar para ele com sua voz bonita, pois era uma das pouquíssimas
coisas que faziam Paulo sorrir. Entrou e o viu dormindo profundamente.
Paulo tinha se matado com uma caixa quase inteira de Dormonid, cerca
de 17 comprimidos, vinte e cinco comprimidos de Lexotan 6mg, 13 de Tegretol
75mg e 18 de Anafranil 75 SR.
Olhos abertos, braços enrodilhados no próprio corpo, saía
de sua boca uma espuma esverdeada. A janela estava aberta e um vento de fim
de tarde agitava seus cabelos louros, revelando a juventude de sua figura, como
se ainda houvesse vida no seu corpo.
Horror. Prazeres, dessa vez, foi para a cama. Não se conformava em pensar
em seu menino como alma penada - pois assim aprendeu que acontecia com os suicidas.
Dona Alba não se levantou mais. Poucos dias depois morria, de derrame
cerebral.
A família de Dona Alba, do lado materno, não tardou a aparecer
reinvindicando a casa para si. Disseram a Prazeres que ele podia continuar ali.
Prazeres decidiu sair do lugar se tantas recordações - as melhores
e as piores. Para onde ir?
Juntou suas economias de todos os anos de trabalho com poucas despesas desde
que seu afilhado morrera. Há muito não comprava mais nada para
si. Comprou uma casinha de pescador em Arembepe mesmo, com um cômodo e
uma espécie de varandinha, de madeira feita em tapumes, nos fundos. Ali
estava o mar.
Um dia, sentiu uma forte pancada no coração, sozinha, de madrugada.
O céu já começava a clarear, pois era verão. Depois
a dor passou e ela se aproximou da varandinha, puxou um banquinho e sentou olhando
o mar, o sol nascendo.
Maria dos Prazeres ouvia o som dos copinhos de vidro de sua infância,
do armazém de Seu Totônio. Sorria, embevecida, pálpebras
cerradas em êxtase místico. Aquele som e o de uma voz - não
sabe se masculina ou feminina - dizendo o poema Apparition, de Victor
Hugo, em francês, e parecia-lhe entender tudo e via os astros despontando
das plumas das asas do anjo, enquanto, bem suave, sua caixinha de música
com os cisnes no laguinho, tocava o Tema de Lara. Os movimentos do coração
enfraqueciam, cada vez mais suaves, como uma fonte se esgota, como um eco vai
se extinguindo. Enquanto seu coração puro ia ralentando, viu-se
dançando com Teodoro na Casa Paroquial, vestida de noiva, Paulo, Virgínia
e Rômulo dançando em volta numa ciranda, enquanto cantavam Se esta
rua fosse minha. As figuras do álbum de artes marciais desfilava à
sua frente, e ela contemplava uma sensacional demonstração de
Jiu-jitsu e era ela, era ela quem levava o monstruoso competidor para o tatame,
todo acolchoado das penas e plumas do seu pássaro.