A Garganta da Serpente

Martini-Capelli

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A Volúvel

(Martini-Capelli)

I

O relógio da repartição pública parecia se divertir às custas do desespero do pobre funcionário.

Sexta-feira, a perspectiva de um fim de semana ocioso e relaxante contrastava com a sala de serviço de maneira gritante, e Peixotinho figurava nos ponteiros as setas que lhe indicariam a saída. Ou melhor, o intervalo entre uma semana de trabalho e outra.

Mas, era melhor que nada, e ele tinha nada menos que cinco receitas novas para experimentar no sábado e no domingo.

Uma farofa com tremoças, que segundo o português da feira de Quarta era de babar, "um gosto bestial, gajo !", dissera ele. Um sofisticado ovo na manteiga, com queijo ralado, que ele havia copiado do suplemento de domingo passado no jornal da cidade. Um creme de banana caramelado e um suco de cascas de goiaba fechavam a lista, junto com um "tolêtes de toicinho com arroz". Esse ficaria por último, para o jantar de Domingo, e se ficasse bom, guarneceria a marmita da segunda-feira, além de ser exibido para o pessoal da repartição.

Tudo muito bom, o fim de semana ocupado pelo seu hobby favorito, restava apenas Alzira... a eterna, gorda e insatisfeita Alzira.

Ao lembrar da mulher, Peixotinho conteve um esgar de medo. E se ela não gostasse das novas receitas ? Decerto o espancaria novamente, e ele teria que inventar mais uma desculpa na repartição ... e os colegas, complacentes pois conhecedores do gênio da terrível Alzira, aceitariam a versão.

Enquanto divagava, desapercebeu-se do relógio, e assustou-se ao ver os colegar saindo apressados, numa desmonstração inédita de atividade.

Devagar e meticulosamente arrumou seus papéis, guardou os carimbos e as estampilhas, jogou fora o mata-borrão já azul e puído, e num gesto solene, correu as chaves de sua escrivaninha, saindo devagar e pensativo rumo ao cartão de ponto.


II

O Sábado amanheceu carregado, o que entristeceu Peixotinho. Ele gostava de cozinhar com o sol entrando pela janela, e espirrando reflexos nos trens areados. E Alzira acordara de mau humor. Queria café na cama, e rápido.

Enquanto repassava o leite para esfriar, ia mentalmente checando a dispensa, os condimentos, para saber se teria ou não que ir comprar alguma coisa.

Arrumou as torradas de forma simétrica, colocou um alvo guardanapo na bandeja, e dirigiu-se ao quarto da megera.

- Já não era sem tempo, seu verme ! Queres que eu morra de fome ? Ai... se eu soubesse desses mau-tratos não teria casado contigo ... como eu sofro nas mãos desse estúpido !

E a cama rangia ao peso dos seus 107 quilos. Não fosse o reforço dos tijolos que ele, diligentemente havia providenciado, de há muito a armação teria desabado.

Ela olhou para o marido, ali parado meio aparvalhado, sem saber se podia se retirar ou se ainda faltavam mais impropérios. Abriu a boca, e entre farelos de torradas, despachou-o a toque de caixa.


III

- Avia-te, homem ! Desapareça da minha frente ! E, em meio à chuva de farelos, ordenou : Veja se me prepara um quitute de gente, pois dessa comida de doente já estou de saco cheio !

Peixotinho saiu, o passo miúdo, torcendo as mãos num misto de raiva e humilhação, indo para a pia, onde a receita de tremoços com farofa já o esperava.

Enquanto mergulhava nos ditames da obra culinária, foi se acalmando, e relegou os xingos a um segundo plano.


IV

- TREMOÇAS !!! O QUE TENS NA CABEÇA, IDIOTA ??!! Pensas que por acaso sou uma dessas portuguesas estúpidas que passa a vida a costurar as camisetas do marido ?

E estalou tamanho bofete nas ventas do marido, que o pobre aproveitou o embalo e saiu para o quintal.

A velha mangueira mais uma vez ofereceu seu ombro para o choro triste e silencioso do coitado. Só que dessa vez a árvore julgou sentir um gosto de fel naquelas lágrimas ...

O sabado acabava nublado e chuvoso, solidário e feio.


V

O Domingo já ia a meio, e Peixotinho arrancava os cabelos, maluco pois o toucinho havia acabado, e os seus "tolêtes" eram reclamados aos berros e safanões :

- Já não bastava o desaforo das tremoças e ainda me torturas com essa desculpa estúpida de "acabou os toucinhos meu bem" ? Olha seu inseto, ou você arruma esse maldito toucinho, ou amanhã irei na repartição dizer a todos que nem para vestir um avental você serve !!! ENTENDEU ?!

A gôta d'água ! Humilhação na repartição ? Isso nunca !

O sofrido ego de Peixotinho sumiu no desespero, e ele começou a chorar de impotência.

As lágrimas já haviam se esgotado, quando ele se levantou da cadeira da cozinha. Secou os olhos com um pano de pratos, e olhou ao redor. Arrumou bem devagarinho todos os apetrechos que a outra havia jogado no chão, no meio de sua fúria.

Da porta do quarto o ressonar ritmado indicava que o sono havia acalmado temporariamente a besta-fera. Quando acordasse e sentisse fome, Deus sabe o que faria.

Aprumou-se, levantou o queixo e, pela primeira vez, firme e decidido rumou ao quarto.

No batente parou.

Na penumbra do quarto Alzira dormia, apenas vestida com uma pequena camisola, as gordas pernas entreabertas, volumosas. No ventre, as dobras subiam e desciam no ritmo da respiração. Por entre o decote, os seios da mulher transbordavam, grandes e há muito derrotados pela lei da gravidade.

Os olhos de Peixotinho brilhava enquanto ele enxugava as mãos suadas nas calças.


VI

Meio-dia de Segunda-feira.

No refeitório da repartição todos olhavam, água na boca e invejosos, a mesa do Peixotinho, onde, em meio de um fumegante delicioso, a marmita mostrava gostos e apetitosos toucinhos, decorando o arroz com farofa.

Entretidos pelo perfume dos torresmos, ninguém notou que, naquela segunda-feira, fato inusitado, Peixotinho não apresentava nenhuma escoriação. Parecia até mais moço, mais bem disposto.

Também, com aquele torresmo gordo na mesa, parecia um rei ...

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