Em memória de meu tio Aurélio de Oliveira Santana,
o último dos vaqueiros encourados de minha terra,
tangendo seu gado em direção a Deus.
Eu tinha acabado de chegar do mato, suado, soltei o cavalo alazão, tirei
o jaleco, as perneiras, as esporas e fui ao oitão do rancho buscar água
pra me lavar. As corujas piavam pelos lajedos e a escuridão tomava conta
do mundo. Moro nessa chapada, esquecido de todos, tendo apenas os bichos do
grotão a me fazer companhia. Meu vizinho mais próximo fica a duas
horas, viajando-se num bom trote. Na casa tenho apenas o banco de taipoca servindo
de estrado, a cama de vara, o torno dos arreios, o fogão de lenha e o
ermo.
No princípio foi apenas o banco de taipoca arrastando-se sozinho por
dentro do rancho, sem direção. Minhas vistas foram ficando turvas,
o registro de São Sebastião crivado e flechas, sacudindo-se como
se houvesse um terremoto. Comecei a ouvir berros que cortavam o silêncio
daquelas horas angelicais. Alguém bateu à minha porta, desesperadamente.
Fui atender de pés no chão, sem guarda. Botei o fifó, a
surpresa estava estampada diante de mim.
As novilhas que ainda há pouco haviam apartado no curral estavam diante
da porta, soltas, achocalhando em círculo. Procurei o marruás
e ele, com as patas curvadas no terreiro da porta, mugia. Larguei aquelas lamúrias
e comecei a andar pela Malhada das Geremas, bifurcando pelos Caldeirões
de Enézio, triste. Caminhei me afundando na trilha. Novecentas braças
trilhei naquele breu de lua minguante.
Na Encruzilhada dos Amargosos, uma enorme égua branca se destampou diante
de meus olhos. Em sua rédea, estava Gedeão Cordeiro, montado com
um chapéu de baeta que tinha uma estrela de cinco pontas na aba. Ele
me inquiriu:
- Aonde vai a uma hora dessas sem sua montaria?
Procurei a minha voz. Estava embargada, embotada. Estava diante de um morto.
Gedeão Cordeiro já havia falecido há oito anos numa vaquejada
em Tocós. E ele continuou:
- Cadê a tua fala, cabra frouxo? Como se deixa o próprio rancho
e sai pelo mundo correndo de teus próprios bichos? Vem, mofino! Monta
na égua, que eu te dou uma garupa.
Alguns segundos, eu fiquei titubeando. Tenho apenas um metro e cinquenta
centímetros e o vazio da égua dava no meu queixo. Gedeão
Cordeiro me olhava de cima, com os olhos esbugalhados da morte. Suspendeu meu
braço, descalçou um dos pés do estribo e, com esforço,
acomodei-me na traseira do animal. Fomos cavalgando a noitezinha, Gedeão,
eu e a égua. Tentei abraça-lo para me certificar de que não
estava delirando e o seu vulto embaçou-se. Tomei a dianteira do animal
e mantive o mesmo trote. Contornei um pé de quixabeira e a égua
parecia ser boa de galope. Mas, ao firmar entre os dedos a rédea, a infeliz
desapareceu. Fiquei no ar, planando feito um passarinho debaixo daquele céu
estrelado. Percebi que voava quando fazia breves com minhas mãos. Fui
caindo dentro de uma brasa acesa de um cachimbo. Puxado pelo cangote, virei.
Fiquei naquela escuridão com dois olhos de fogo a me fitar. Notei que
estava em um quarto entrevado, e, quando percebi que algo se mexia dentro do
escuro, gritei:
- Quem é o senhor, homem de Deus?
Surgiu uma figura de dentes corroídos pelo fumo de corda, que sorria
desbragadamente. Por alguns segundos, aquele semblante se mostrou familiar.
- Eu me chamo Zenóbio do Amor Divino. E lido com os encantados do grotão.
Chamei você aqui para lhe dar ciência do rumo.
Enquanto aquela estranha figura falava, de dentro da manga de brim de seu casaco,
um falco peregrinus saiu e voou em direção à porta. Inexplicavelmente
fui voltando à minha estatura normal. Zenóbio então disse:
- Cada um carrega dentro de si os encantados. e com eles poderá transpor
o portal
do desconhecido. Quem encanta vive os dois polos. Meu encantado é
a ovelha Orê.
Enquanto Zenóbio falava, seu queixo e seu nariz iam tomando a forma do
estranho animal. Divisei, na parede, um bocapiu e, no canto do vão, um
monte de folhas secas espalhadas. Enquanto ele balançava a cabeça,
pude notar, ainda, resquícios de sua dentadura falhada. Poderia dar cabo
de tudo aquilo, mas não saberia encontrar o caminho de volta para casa.
Estava verdadeiramente atabafado. Zenóbio a berrar diante de cada facho
de meu pensamento.
Criei-me nesse descampado, ouvindo jaguaracambés berrarem, comerem minhas
criações. Criei minhas reses soltas na caatinga. Nenhum compadre
deixou de encontrar o caminho de volta para casa. Nessa brenha emaranhada em
que me meti, jamais ouvi falar de Zenóbio, apesar de seu semblante me
ser familiar. Nunca imaginava estar nesse quarto abafado, vendo estrelas pelas
gretas das telhas e esse fogo grueguês a me queimar.
Quando me dá vontade de cruzar com uma fêmea, pego meu Veadinho,
viajo oito léguas de galope sem parar para descansar. Procuro Maria Prudência,
uma linda cabocla que me serve sem quizila, me cobre de carinhos, fico completo.
Depois quando dá a vontade de novo, selo Veadinho e se às vezes
estou na labuta dos bichos e não posso sair, tanjo Veadinho para ele
bater na casa de Maria. Ela volta montada nele, desapeia e me enche de amor.
Assim tenho vivido nesse mundéu. Debaixo dos olhos de Deus, não
há ninguém, só a lei, Zenóbio, agora, e os meus
bichos do grotão, lambrecando, bufando, espojando, e eu correndo nas
Campinas em cima de meu cavalo, espanando água nos córregos, soltando
fogo nos lajedos e o casco afundando no areal. Veadinho era cria de uma égua
de Orlando da Casa Nova, que foi prefeito de Ichu. Chegou potrinho, amansei,
tratei com jeito e não judio dele. Se está manco, boto de quarentena,
não o maltrato, nem monto.
Zenóbio transmutou-se. Ficou uma banda de minuto com o olhar teso, fitando-me.
Depois disse:
- Encantados existem para ajudar o homem, nunca para apoquenta-lo. Edvaldo Galo
Teso tinha como encantado o pavão. E saio de seu rancho, pela rodovia,
a passear. Ele sabia que jamais poderia estar atrelado ao progresso. Mas tudo
foi em vão. Galo Teso queria conhecer a cidade grande, ver a cara da
carestia. Passou a viver encarfurnado numa jaula de um empório veterinário,
nas Sete Portas. Tinha sido capturado. Certa manhã, Galo Teso transmutou-se
dentro da jaula. E quem estava em volta não entendeu nada ao ver aquele
homenzarrão preso. Daqui que Edvaldo se explicasse, era conversa que
nem jornal publicava. Quem se alia aos encantados deve tomar precaução.
Zenóbio do Amor Divino falava e seu semblante tornava-se sereno. Fiquei
a observar aquele velho malhado, cheio de treita, querendo me confundir com
seu estranho poder. Chamo-me Saturnino e durante trinta e três anos fui
vaqueiro de um fazendeiro de Santa Bárbara. Após sua morte, a
família dele esparramou tudo. Vendeu a fazenda e me deixou no tempo,
sem uma capa de sela para eu poder montar em meu cavalo. Meus pais morreram
na seca de 1960. Em meu próprio rancho, enterrei-os dentro do leito do
Riacho Sacraiú. Botei umas lajes grandes e meu povo continua lá,
nas areias profundas daquele córrego.
Zenóbio me observava com o olhar de carneiro. Eu indaguei:
- Porque tanto me olha, homem de Deus? Se eu não pedi para estar aqui.
O caboclo então falou com um dos semicerrando e vesgo:
- É medo.
Eu então rebati:
- Engraçado, quem deveria estar com medo era eu, e não você.
Olhe o estado em que me encontro...
Mostrei minhas vestes. Eu estava apenas com uma calça de gabardine e
nu da cintura para cima.
Com seu olhar absorto, inquiriu-me e eu tornei a lhe indagar:
- Seu Zenóbio, de onde vosmecê veio?
Ele então saiu do seu transe, bateu os olhos, desfez a careta e falou:
- Meu povo eu não ceguei a conhecer. Fui criado por uma preta velha de
nome Brilhantina Glostora de Oliveira, que me achou abandonado nos caminhos
do Caldeirão dos Negros. Eu tinha apenas seis meses de vida. Fiquei em
sua companhia até ficar molecote. Depois ela me levou para Tocós
e lá passei a morar com Dr. Gildásio Oliveira Souza (Gigante),
que tem uma banca de advogado e é o mais querido dos bacharéis
em todo Vale do Jacuípe. Um dia, o doutor me chamou, me deu um dinheiro
e eu comprei este naco de terra que vosmecê está pisando. Não
trabalho de responso nem sou mandingueiro. Vivo de meu suor e do que planto.
Tenho apenas uma vaca parida e um mamote, e um galo para me acordar, como se
riqueza valesse alguma coisa nesse mundo de meu Deus.
Zenóbio levantou-se, foi até a sala e voltou com um rádio
de pilha.
- Ligue o rádio.
Fechei os olhos e dei por mim. Estava sentado dentro de meu ranço, em
minha cama de vara. Isso se passou naquela tardezinha de segunda-feira, nos
meados de abril, dia vinte e nove, aniversário de Nete e Vãinha.