A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Revelações do grotão

(Miguel Carneiro)

Em memória de meu tio Aurélio de Oliveira Santana,
o último dos vaqueiros encourados de minha terra,
tangendo seu gado em direção a Deus.

Eu tinha acabado de chegar do mato, suado, soltei o cavalo alazão, tirei o jaleco, as perneiras, as esporas e fui ao oitão do rancho buscar água pra me lavar. As corujas piavam pelos lajedos e a escuridão tomava conta do mundo. Moro nessa chapada, esquecido de todos, tendo apenas os bichos do grotão a me fazer companhia. Meu vizinho mais próximo fica a duas horas, viajando-se num bom trote. Na casa tenho apenas o banco de taipoca servindo de estrado, a cama de vara, o torno dos arreios, o fogão de lenha e o ermo.

No princípio foi apenas o banco de taipoca arrastando-se sozinho por dentro do rancho, sem direção. Minhas vistas foram ficando turvas, o registro de São Sebastião crivado e flechas, sacudindo-se como se houvesse um terremoto. Comecei a ouvir berros que cortavam o silêncio daquelas horas angelicais. Alguém bateu à minha porta, desesperadamente. Fui atender de pés no chão, sem guarda. Botei o fifó, a surpresa estava estampada diante de mim.

As novilhas que ainda há pouco haviam apartado no curral estavam diante da porta, soltas, achocalhando em círculo. Procurei o marruás e ele, com as patas curvadas no terreiro da porta, mugia. Larguei aquelas lamúrias e comecei a andar pela Malhada das Geremas, bifurcando pelos Caldeirões de Enézio, triste. Caminhei me afundando na trilha. Novecentas braças trilhei naquele breu de lua minguante.

Na Encruzilhada dos Amargosos, uma enorme égua branca se destampou diante de meus olhos. Em sua rédea, estava Gedeão Cordeiro, montado com um chapéu de baeta que tinha uma estrela de cinco pontas na aba. Ele me inquiriu:

- Aonde vai a uma hora dessas sem sua montaria?

Procurei a minha voz. Estava embargada, embotada. Estava diante de um morto. Gedeão Cordeiro já havia falecido há oito anos numa vaquejada em Tocós. E ele continuou:

- Cadê a tua fala, cabra frouxo? Como se deixa o próprio rancho e sai pelo mundo correndo de teus próprios bichos? Vem, mofino! Monta na égua, que eu te dou uma garupa.

Alguns segundos, eu fiquei titubeando. Tenho apenas um metro e cinquenta centímetros e o vazio da égua dava no meu queixo. Gedeão Cordeiro me olhava de cima, com os olhos esbugalhados da morte. Suspendeu meu braço, descalçou um dos pés do estribo e, com esforço, acomodei-me na traseira do animal. Fomos cavalgando a noitezinha, Gedeão, eu e a égua. Tentei abraça-lo para me certificar de que não estava delirando e o seu vulto embaçou-se. Tomei a dianteira do animal e mantive o mesmo trote. Contornei um pé de quixabeira e a égua parecia ser boa de galope. Mas, ao firmar entre os dedos a rédea, a infeliz desapareceu. Fiquei no ar, planando feito um passarinho debaixo daquele céu estrelado. Percebi que voava quando fazia breves com minhas mãos. Fui caindo dentro de uma brasa acesa de um cachimbo. Puxado pelo cangote, virei. Fiquei naquela escuridão com dois olhos de fogo a me fitar. Notei que estava em um quarto entrevado, e, quando percebi que algo se mexia dentro do escuro, gritei:

- Quem é o senhor, homem de Deus?

Surgiu uma figura de dentes corroídos pelo fumo de corda, que sorria desbragadamente. Por alguns segundos, aquele semblante se mostrou familiar.

- Eu me chamo Zenóbio do Amor Divino. E lido com os encantados do grotão. Chamei você aqui para lhe dar ciência do rumo.

Enquanto aquela estranha figura falava, de dentro da manga de brim de seu casaco, um falco peregrinus saiu e voou em direção à porta. Inexplicavelmente fui voltando à minha estatura normal. Zenóbio então disse:

- Cada um carrega dentro de si os encantados. e com eles poderá transpor o portal

do desconhecido. Quem encanta vive os dois polos. Meu encantado é a ovelha Orê.

Enquanto Zenóbio falava, seu queixo e seu nariz iam tomando a forma do estranho animal. Divisei, na parede, um bocapiu e, no canto do vão, um monte de folhas secas espalhadas. Enquanto ele balançava a cabeça, pude notar, ainda, resquícios de sua dentadura falhada. Poderia dar cabo de tudo aquilo, mas não saberia encontrar o caminho de volta para casa. Estava verdadeiramente atabafado. Zenóbio a berrar diante de cada facho de meu pensamento.

Criei-me nesse descampado, ouvindo jaguaracambés berrarem, comerem minhas criações. Criei minhas reses soltas na caatinga. Nenhum compadre deixou de encontrar o caminho de volta para casa. Nessa brenha emaranhada em que me meti, jamais ouvi falar de Zenóbio, apesar de seu semblante me ser familiar. Nunca imaginava estar nesse quarto abafado, vendo estrelas pelas gretas das telhas e esse fogo grueguês a me queimar.

Quando me dá vontade de cruzar com uma fêmea, pego meu Veadinho, viajo oito léguas de galope sem parar para descansar. Procuro Maria Prudência, uma linda cabocla que me serve sem quizila, me cobre de carinhos, fico completo. Depois quando dá a vontade de novo, selo Veadinho e se às vezes estou na labuta dos bichos e não posso sair, tanjo Veadinho para ele bater na casa de Maria. Ela volta montada nele, desapeia e me enche de amor. Assim tenho vivido nesse mundéu. Debaixo dos olhos de Deus, não há ninguém, só a lei, Zenóbio, agora, e os meus bichos do grotão, lambrecando, bufando, espojando, e eu correndo nas Campinas em cima de meu cavalo, espanando água nos córregos, soltando fogo nos lajedos e o casco afundando no areal. Veadinho era cria de uma égua de Orlando da Casa Nova, que foi prefeito de Ichu. Chegou potrinho, amansei, tratei com jeito e não judio dele. Se está manco, boto de quarentena, não o maltrato, nem monto.

Zenóbio transmutou-se. Ficou uma banda de minuto com o olhar teso, fitando-me. Depois disse:

- Encantados existem para ajudar o homem, nunca para apoquenta-lo. Edvaldo Galo Teso tinha como encantado o pavão. E saio de seu rancho, pela rodovia, a passear. Ele sabia que jamais poderia estar atrelado ao progresso. Mas tudo foi em vão. Galo Teso queria conhecer a cidade grande, ver a cara da carestia. Passou a viver encarfurnado numa jaula de um empório veterinário, nas Sete Portas. Tinha sido capturado. Certa manhã, Galo Teso transmutou-se dentro da jaula. E quem estava em volta não entendeu nada ao ver aquele homenzarrão preso. Daqui que Edvaldo se explicasse, era conversa que nem jornal publicava. Quem se alia aos encantados deve tomar precaução.

Zenóbio do Amor Divino falava e seu semblante tornava-se sereno. Fiquei a observar aquele velho malhado, cheio de treita, querendo me confundir com seu estranho poder. Chamo-me Saturnino e durante trinta e três anos fui vaqueiro de um fazendeiro de Santa Bárbara. Após sua morte, a família dele esparramou tudo. Vendeu a fazenda e me deixou no tempo, sem uma capa de sela para eu poder montar em meu cavalo. Meus pais morreram na seca de 1960. Em meu próprio rancho, enterrei-os dentro do leito do Riacho Sacraiú. Botei umas lajes grandes e meu povo continua lá, nas areias profundas daquele córrego.

Zenóbio me observava com o olhar de carneiro. Eu indaguei:

- Porque tanto me olha, homem de Deus? Se eu não pedi para estar aqui.

O caboclo então falou com um dos semicerrando e vesgo:

- É medo.

Eu então rebati:

- Engraçado, quem deveria estar com medo era eu, e não você. Olhe o estado em que me encontro...

Mostrei minhas vestes. Eu estava apenas com uma calça de gabardine e nu da cintura para cima.

Com seu olhar absorto, inquiriu-me e eu tornei a lhe indagar:

- Seu Zenóbio, de onde vosmecê veio?

Ele então saiu do seu transe, bateu os olhos, desfez a careta e falou:

- Meu povo eu não ceguei a conhecer. Fui criado por uma preta velha de nome Brilhantina Glostora de Oliveira, que me achou abandonado nos caminhos do Caldeirão dos Negros. Eu tinha apenas seis meses de vida. Fiquei em sua companhia até ficar molecote. Depois ela me levou para Tocós e lá passei a morar com Dr. Gildásio Oliveira Souza (Gigante), que tem uma banca de advogado e é o mais querido dos bacharéis em todo Vale do Jacuípe. Um dia, o doutor me chamou, me deu um dinheiro e eu comprei este naco de terra que vosmecê está pisando. Não trabalho de responso nem sou mandingueiro. Vivo de meu suor e do que planto. Tenho apenas uma vaca parida e um mamote, e um galo para me acordar, como se riqueza valesse alguma coisa nesse mundo de meu Deus.

Zenóbio levantou-se, foi até a sala e voltou com um rádio de pilha.

- Ligue o rádio.

Fechei os olhos e dei por mim. Estava sentado dentro de meu ranço, em minha cama de vara. Isso se passou naquela tardezinha de segunda-feira, nos meados de abril, dia vinte e nove, aniversário de Nete e Vãinha.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br