A Garganta da Serpente
este autor está sendo procurado - saiba mais
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Vila Esperança

(Miguel do Rosário)

"De manhã - aurora bélica de junho - corri para os campos, burro, trombeteandoe brandindo minha dor, até que Sabinas de subúrbio se jogaram no meu peito".
Rimbaud.

"O deserto e a terra árida regozijar-se-ão.
A estepe vai alegrar-se e florir. Como o lírio, ela florirá,
exultará de júbilo e gritará de alegria".
Isaías, 35

Nem todas as louras são burras. Esta grande verdade filosófica, pelo que consta ainda não atribuída a nenhum pensador famoso, estava exposta no toalete feminino da Bunker`s. Cimere lia a frase pichada no espelho enquanto abria um papelote de cocaína e despejava o conteúdo no mármore negro. Fez a carreira, esfarelando as pedrinhas com ajuda de seu cartão de crédito internacional. Debruçou-se, seus cabelos tingidos de louro formaram uma tenda índia, e aspirou cerca de cem miligramas. Erguendo o rosto, viu o reflexo de uma mulher de trinta anos e olhos castanhos claros. O efeito da droga bateu-lhe no cérebro e notou que as pupilas se dilatavam. Fez um biquinho com a boca, mexeu nos cabelos e lançou um olhar sensual. Não era nenhuma Gisele Bunchen, mas era bonita. Reparou de novo na pichação e achou a frase engraçada. Dez minutos depois, Cimere aplicava um beijo cinematográfico num rapaz moreno do qual ela nem sabia o nome. A frase que veio à sua mente foi um complemento àquela lida no espelho. Nem todas as louras são burras... Mas todas são piranhas. Deu uma risada absurda. Interrompeu o beijo e deu um gole na caipirinha de limão que descansava sobre a mesinha. Cuspiu tudo no rosto do rapaz.

- Está sem açúcar!

- Você pediu sem açúcar!

- É, mas com adoçante!

Quem observasse Cimere dançando sozinha, enquanto o rapaz ia no bar adoçar a bebida, nunca desconfiaria que ela tinha passado o dia inteiro chorando a morte do irmão, o traficante Carlos Eduardo Néri de Conceição. Vulgo Macumba. À noite, ela decidiu lutar contra a depressão e chamou um táxi. Pegou quinhentos e quarenta reais no cofre da casa. E guardou uma pequena pistola, presente do irmão, numa bolsa Louis Vitton, sua marca preferida desde que soube que era a marca usada pelas grandes modelos. Comprou drogas na boca de fumo da Vila Esperança, a mesma que era gerenciada pelo irmão, e tomou o rumo da zona sul. Queria ficar muito doida, e dançar. Era sua forma de não ficar maluca. Macuma tinha sido o melhor irmão do mundo. Desde que o pai foi demitido e a renda da mãe não era mais suficiente para sustentar a casa, Macumba não perdeu tempo. Juntou-se ao bando de Paulo César Santos, o Linho. Trazia dinheiro pra casa todos os dias. Cimere também arrumou trabalho como cabeleireira num shopping em Copacabana. Foi a partir desta época que começou a frequentar a Bunker`s, uma danceteria underground próxima ao posto seis. A situação da família melhorou da água para o vinho. Ou melhor dizendo, da água suja para a champagne francesa. Sim, porque Linho foi preso no Bangu I e nomeou seu irmão como gerente-geral da boca-de-fumo da Vila Esperança, a terceira melhor boca de todo o Complexo da Maré. À frente dela, somente a boca dos Campos Elíseos e a do Rato Molhado, também controladas por homens de Linho. Mudaram-se para uma casa de alvenaria na entrada da favela. Macumba alugava ainda dois barracos dentro da comunidade, para fins de escritório e encontros amorosos. E deu um Corsa 2000 de presente à irmã. Suas amigas a invejavam. O único imposto cobrado por Macumba à sua linda irmãzinha de seios pontudos e bumbum empinado era o direito de ter ciúmes. E isso era fácil, pois Cimere gostava de aparecer. Vestia roupas justíssimas e decotadas e ia desfilar nos bailes de Bonsucesso. Macumba quase matou uma dúzia de galanteadores. Tentou evitar mais confusões, convencendo a irmã a sair somente na zona sul, onde não conhecia ninguém.

Macumba também era um rapaz bonito. Quando morreu tinha vinte e nove anos muito bem desfrutados com mais de duzentas amantes de todas as partes do Grande Rio, de Bonsucesso à Caxias, do Méier à Ipanema. Com um metro e oitenta de altura, magro sem ser magricela, um rosto moreno e reto de negro malê, Macumba magnetizava as moças com seus olhos castanhos, os mesmos olhos de sua irmã.

Antes que o rapaz voltasse com a bebida, Cimere fugiu. Saiu apressadamente da boate. Queria ir para um lugar diferente. Algum lugar com gente mais velha, estava cansada daqueles garotos mimados da zona sul que frequentavam a Bunker`s. Lembrou-se de um bar do qual suas colegas de trabalho sempre falavam. Frequentado por atrizes e homens de negócios. Méli Mélo era o nome. Explicou ao motorista do táxi:

- Acho que fica na Lagoa.

Pagou quarenta reais pelo ingresso e entrou. Por todo o lado, garotas lindas e sorridentes bebendo drinks coloridos. Sentou-se junto a um balcão de bar e pediu uísque. À garota linda e sorridente ao lado, perguntou se queria lhe acompanhar. Ela aceitou. Foram ao banheiro daí a cinco minutos, e cheiraram algumas carreiras. Beijaram-se. Cimere nunca tinha ficado com outra garota, mas hoje sentia-se tão louca...

Quando entraram no táxi, às quatro horas da manhã, Cimere decidiu mostrar seu bairro à nova amiga. Ela ficou com medo, mas Cimere magnetizou-a com seu belos olhos de cor castanho-claro. O motorista também ficou com medo. Mas nada que cento e cinquenta reais adiantados não resolvessem. Levavam latinhas de cerveja nas bolsas e cheiravam uma carreira de dez em dez minutos. Passaram incólumes por uma blitz na Avenida Brasil.

Quando o táxi entrou na ruazinha onde morava Cimere, a aurora dava seus primeiros sinais. Mas, em vez de galos cantando, doze tiros de escopeta anunciaram o novo dia. A favela estava de luto com a morte de Macumba. O comércio não iria funcionar. Na esquina, o botequim Viver é Gozar estava aberto. Cimere e sua amiga, chamada Ana, entraram e sentaram-se à mesa. Decidiram tomar a saideira antes de se deitarem. Estavam todos tristes no bar. Cimere gritou que pagava uma cerveja para todos. O astral melhorou um pouco entre os cerca de dez boêmios que ali dissipavam seu tempo. Ana olhava ao redor, divertida. Nunca tinha estado numa favela. Maravilhou-se com um raio de sol brilhando na descascada parede do bar. Cimere pagou outra rodada para todos e se levantou. Puxou da bolsa uma pequena pistola de cabo branco e apontou para a cabeça. O estampido fez tremer o copo de cerveja que Ana segurava. Antes de gritar, Ana reparou em duas crianças negras sentadas do outro lado da rua. Tinham os olhos assustados e brincavam com gravetos. Reparou como eram magras. Teriam passado a noite fora de casa? Passavam fome? A sirene da polícia rasgou o véu de paz, sol e lágrimas que cobria a favela.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br