"De manhã - aurora bélica de junho - corri
para os campos, burro, trombeteandoe brandindo minha dor, até que Sabinas
de subúrbio se jogaram no meu peito".
Rimbaud.
"O deserto e a terra árida regozijar-se-ão.
A estepe vai alegrar-se e florir. Como o lírio, ela florirá,
exultará de júbilo e gritará de alegria".
Isaías, 35
Nem todas as louras são burras. Esta grande verdade filosófica,
pelo que consta ainda não atribuída a nenhum pensador famoso,
estava exposta no toalete feminino da Bunker`s. Cimere lia a frase pichada no
espelho enquanto abria um papelote de cocaína e despejava o conteúdo
no mármore negro. Fez a carreira, esfarelando as pedrinhas com ajuda
de seu cartão de crédito internacional. Debruçou-se, seus
cabelos tingidos de louro formaram uma tenda índia, e aspirou cerca de
cem miligramas. Erguendo o rosto, viu o reflexo de uma mulher de trinta anos
e olhos castanhos claros. O efeito da droga bateu-lhe no cérebro e notou
que as pupilas se dilatavam. Fez um biquinho com a boca, mexeu nos cabelos e
lançou um olhar sensual. Não era nenhuma Gisele Bunchen, mas era
bonita. Reparou de novo na pichação e achou a frase engraçada.
Dez minutos depois, Cimere aplicava um beijo cinematográfico num rapaz
moreno do qual ela nem sabia o nome. A frase que veio à sua mente foi
um complemento àquela lida no espelho. Nem todas as louras são
burras... Mas todas são piranhas. Deu uma risada absurda. Interrompeu
o beijo e deu um gole na caipirinha de limão que descansava sobre a mesinha.
Cuspiu tudo no rosto do rapaz.
- Está sem açúcar!
- Você pediu sem açúcar!
- É, mas com adoçante!
Quem observasse Cimere dançando sozinha, enquanto o rapaz ia no bar adoçar
a bebida, nunca desconfiaria que ela tinha passado o dia inteiro chorando a
morte do irmão, o traficante Carlos Eduardo Néri de Conceição.
Vulgo Macumba. À noite, ela decidiu lutar contra a depressão e
chamou um táxi. Pegou quinhentos e quarenta reais no cofre da casa. E
guardou uma pequena pistola, presente do irmão, numa bolsa Louis Vitton,
sua marca preferida desde que soube que era a marca usada pelas grandes modelos.
Comprou drogas na boca de fumo da Vila Esperança, a mesma que era gerenciada
pelo irmão, e tomou o rumo da zona sul. Queria ficar muito doida, e dançar.
Era sua forma de não ficar maluca. Macuma tinha sido o melhor irmão
do mundo. Desde que o pai foi demitido e a renda da mãe não era
mais suficiente para sustentar a casa, Macumba não perdeu tempo. Juntou-se
ao bando de Paulo César Santos, o Linho. Trazia dinheiro pra casa todos
os dias. Cimere também arrumou trabalho como cabeleireira num shopping
em Copacabana. Foi a partir desta época que começou a frequentar
a Bunker`s, uma danceteria underground próxima ao posto seis. A situação
da família melhorou da água para o vinho. Ou melhor dizendo, da
água suja para a champagne francesa. Sim, porque Linho foi preso no Bangu
I e nomeou seu irmão como gerente-geral da boca-de-fumo da Vila Esperança,
a terceira melhor boca de todo o Complexo da Maré. À frente dela,
somente a boca dos Campos Elíseos e a do Rato Molhado, também
controladas por homens de Linho. Mudaram-se para uma casa de alvenaria na entrada
da favela. Macumba alugava ainda dois barracos dentro da comunidade, para fins
de escritório e encontros amorosos. E deu um Corsa 2000 de presente à
irmã. Suas amigas a invejavam. O único imposto cobrado por Macumba
à sua linda irmãzinha de seios pontudos e bumbum empinado era
o direito de ter ciúmes. E isso era fácil, pois Cimere gostava
de aparecer. Vestia roupas justíssimas e decotadas e ia desfilar nos
bailes de Bonsucesso. Macumba quase matou uma dúzia de galanteadores.
Tentou evitar mais confusões, convencendo a irmã a sair somente
na zona sul, onde não conhecia ninguém.
Macumba também era um rapaz bonito. Quando morreu tinha vinte e nove
anos muito bem desfrutados com mais de duzentas amantes de todas as partes do
Grande Rio, de Bonsucesso à Caxias, do Méier à Ipanema.
Com um metro e oitenta de altura, magro sem ser magricela, um rosto moreno e
reto de negro malê, Macumba magnetizava as moças com seus olhos
castanhos, os mesmos olhos de sua irmã.
Antes que o rapaz voltasse com a bebida, Cimere fugiu. Saiu apressadamente da
boate. Queria ir para um lugar diferente. Algum lugar com gente mais velha,
estava cansada daqueles garotos mimados da zona sul que frequentavam a
Bunker`s. Lembrou-se de um bar do qual suas colegas de trabalho sempre falavam.
Frequentado por atrizes e homens de negócios. Méli Mélo
era o nome. Explicou ao motorista do táxi:
- Acho que fica na Lagoa.
Pagou quarenta reais pelo ingresso e entrou. Por todo o lado, garotas lindas
e sorridentes bebendo drinks coloridos. Sentou-se junto a um balcão de
bar e pediu uísque. À garota linda e sorridente ao lado, perguntou
se queria lhe acompanhar. Ela aceitou. Foram ao banheiro daí a cinco
minutos, e cheiraram algumas carreiras. Beijaram-se. Cimere nunca tinha ficado
com outra garota, mas hoje sentia-se tão louca...
Quando entraram no táxi, às quatro horas da manhã, Cimere
decidiu mostrar seu bairro à nova amiga. Ela ficou com medo, mas Cimere
magnetizou-a com seu belos olhos de cor castanho-claro. O motorista também
ficou com medo. Mas nada que cento e cinquenta reais adiantados não
resolvessem. Levavam latinhas de cerveja nas bolsas e cheiravam uma carreira
de dez em dez minutos. Passaram incólumes por uma blitz na Avenida Brasil.
Quando o táxi entrou na ruazinha onde morava Cimere, a aurora dava seus
primeiros sinais. Mas, em vez de galos cantando, doze tiros de escopeta anunciaram
o novo dia. A favela estava de luto com a morte de Macumba. O comércio
não iria funcionar. Na esquina, o botequim Viver é Gozar estava
aberto. Cimere e sua amiga, chamada Ana, entraram e sentaram-se à mesa.
Decidiram tomar a saideira antes de se deitarem. Estavam todos tristes no bar.
Cimere gritou que pagava uma cerveja para todos. O astral melhorou um pouco
entre os cerca de dez boêmios que ali dissipavam seu tempo. Ana olhava
ao redor, divertida. Nunca tinha estado numa favela. Maravilhou-se com um raio
de sol brilhando na descascada parede do bar. Cimere pagou outra rodada para
todos e se levantou. Puxou da bolsa uma pequena pistola de cabo branco e apontou
para a cabeça. O estampido fez tremer o copo de cerveja que Ana segurava.
Antes de gritar, Ana reparou em duas crianças negras sentadas do outro
lado da rua. Tinham os olhos assustados e brincavam com gravetos. Reparou como
eram magras. Teriam passado a noite fora de casa? Passavam fome? A sirene da
polícia rasgou o véu de paz, sol e lágrimas que cobria
a favela.