A Garganta da Serpente
este autor está sendo procurado - saiba mais
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O evangelho segundo um vendedor

(Miguel do Rosário)

A imagem daquelas pernas estava gravada em mim como pôster ou foto de calendário. Sem poder dormir, fui dar uma volta na rua. O gerente do Love's Hotel era gordo e pachorrento e parecia não se preocupar com nada neste mundo, salvo o pagamento das diárias. Passava os dias cochilando na recepção e as noites jogando cartas com hóspedes e amigos. Eram duas horas da manhã. Os bares estavam cheios na Joaquim Silva. Quase em frente ao hotel, perto da escadaria de azulejos coloridos, ficava o bar dos sambistas. Mais adiante, a turma do reagae se divertia no bar do rastafari. Em seguida, ainda na mesma rua, um grupo escutava hip hop e, por fim, perto do cruzamento com os arcos, a galera do rock havia improvisado um palco na calçada, feito de barbante e teto de lona. Eu havia conhecido a garota das inesquecíveis pernas na semana anterior, numa quarta-feira, num dos bares próximos ao ponto do rock. Era cedo, dez horas da noite, pouca gente na rua, a banda ainda não havia começado a tocar. Ela estava sentada na mesa ao lado, conversando com um rapaz que tinha a maior pinta de homossexual. Tinha as pernas cruzadas para o meu lado, de maneira que eu tinha visão cinematográfica de toda aquela magnífica obra de arte contemporânea. Eu estava sozinho, bebendo cerveja e anotando alguns planos de negócios. Não é o momento de contar em que eu trabalhava na época, mas posso adiantar que se tratava de um negócio meio espiritualista. O amigo dela se retirou, provavelmente para ir ao toalete, e eu senti que o silêncio entre nós se tornou denso. Uma aura comunicativa foi se formando de maneira estranhamente espontânea, criando em mim, e suponho que também nela, uma espécie de angústia, como quando ocorre um silêncio constrangedor numa roda de amigos. Tem fogo? Ela havia me olhado com olhos penetrantes, depois de cruzar e descruzar as pernas. Pensei que tranquilamente venderia a alma ao dito cujo só para ter um maldito isqueiro naquele momento, mas não tive outra opção senão abanar a cabeça. Amigo! gritei para o garçom, por gentileza, traz um isqueiro para acender o cigarro da moça. Fiz a primeira abordagem: Você é do nordeste? Eu havia reparado que ela tinha um forte sotaque. Ela aceitou o desafio alegremente: Sou de Recife, mas estou morando aqui... já faz quase um ano... na casa de uma amiga.

Nossa conversa não durou muito, mas o suficiente para me envenenar de romantismo. O amigo dela voltou do toalete com uma expressão diferente, nervoso. Deu uma cafungada, héin, seu malandro, pensei com meus botões. Eles pagaram a conta e se levantaram. Na mesma noite, ainda a vi outras vezes, mas tinha gente demais, uma barulheira danada, e eu não estava suficientemente inspirado (não tinha mais um vintém) para ousar abordá-la novamente.

Nesta noite, porém, eu tinha dinheiro. Tinha repassado o produto com sucesso e estava tranquilo. E ao mesmo tempo ansioso por aproveitar o lazer e a orgia das noites da lapa. Andava à esmo pela joaquim silva, indo do ponto do rock até o samba, parando às vezes no hip hop. Ah, esqueci de dizer que também havia, um pouco antes do ponto do rap, um salão de forró. Comprei uma latinha de cerveja num dos ambulantes, e me pus a andar descontraidamente em direção à roda de samba. O pessoal estava animado. Os músicos tocavam por prazer, reunidos em volta de uma mesa na calçada. Todos chamavam aquele bar de Bar do Seu Cláudio, em homenagem ao falecido dono, um sujeito extraordinário, ex-fotógrafo, ex-sambista, que gravava em fita e fotografava todos os encontros musicais no seu bar. Descobriu-se depois que juntava dinheiro para fazer um tratamento contra câncer, e que o proprietário do bar era na verdade sua mulher. Fui até o balcão em busca de um pastel e de outra cerveja. Ela estava lá, encostada no balcão, escutando o samba com olhar sonhador. Olá! Oiiiii. Que sorriso! De início, lamentei profundamente que ela estivesse de jeans, o que me vedava o acesso à visão idílica e infernal, mas depois achei bom, porque queria suas pernas só para mim. Como é seu nome? Juliano. E o seu? Antônia. Porra, uma mulher tão bonita, com um nome tão feio e... masculino! Que me desculpem as Antônias, mas não acho um nome decente para uma moça. Antônia! Você trabalha em quê? Eu trabalho com vendas, respondi, desconcertado com aquela pergunta, pois esperava adiar ainda um pouco mais aquela informação. Vendas de que? Eu vendo bíblias. Ela me olhou incrédula. Pois é, leitores, vocês também não devem estar acreditando, mas a verdade era que eu vendia bíblias, de todos os tamanhos, pequenas, médias e grandes, populares e de luxo. Meu tio tinha uma gráfica em belo horizonte, e eu era responsável por arrumar clientes em outras cidades. Por fim, ela achou engraçado e excêntrico. Não é toda noite que se conhece um vendedor de bíblias. Legal, então você deve ter lido todo o evangelho. É verdade, tive que ler, meu tio me obrigou, ele acha que todos têm de conhecer a bíblia de cor e salteado. E, no meu caso, é importante ter algumas passagens na ponta da língua para convencer os clientes. Os pastores são particularmente sensíveis a isto. Quer tomar uma cerveja comigo?, ela me perguntou. Tive que me controlar para não me tornar eu mesmo uma cerveja e escorrer pelo chão do bar. Deixa que eu pago, por favor, fiz uma boa venda hoje. Antônia era destas mestiças misteriosas, com traços finos e harmônicos, com cabelos negros bem curtos. Tinha um piercing na sobrancelha esquerda que lhe dava um ar pós-moderno. Eu gosto muito da bíblia, sabe, apesar de nem ser batizada. Gosto como literatura, como filosofia. Aliás, eu estudo filosofia, disse com certa timidez, como se revelasse um hobby exótico. Desta vez não eram as pernas que me chamavam a atenção, mas os seios, dois melões filosóficos aninhados sob a camiseta branca cortada acima do umbigo, conforme a moda. Na camiseta, lia-se um verso de um poeta francês, que guardei de memória. Estendi cordas de campanário a campanário, guirlandas de estrela a estrela. E danço. Era mais ou menos assim. Gosta de poesia?, me perguntou ao ver que eu olhava para sua camisa. Prefiro os seios, quase respondi. Mas a verdade é que eu adorava poesia, apesar de não conhecer muita coisa. Ataquei: tuas faces são graciosas entre os brincos, e o teu pescoço entre os colares de pérolas. Arrisquei-me com os cânticos dos cânticos. Ela ficou surpresa, gostou. Continuei. Sejam-me os teus seios como cachos da vinha e o perfume de tua boca como o odor das maçãs. Ela sorriu. Pensei comigo que o atacante estava bem perto de fazer o gol. Será que o gerente iria implicar se eu a levasse para o quarto? De repente, o contra-ataque: escuta Juliano, gostei de conhecer você, mas eu preciso lhe dizer uma coisa. O meu namorado está ali, tocando cavaquinho.

Se eu tivesse recebido a notícia de que os Estados Unidos tinham declarado guerra ao Brasil não teria ficado mais atordoado. Ela deve ter notado. Fez uma cara de pena, maternal, como as mulheres costumam fazer nestas situações. Não ficava bem dizer a ela, assim de supetão, que estava apaixonado. Seria insensato, anacrônico e deselegante, em plena era da internet, ficar assim apaixonado de maneira tão arrebatadora. De todos os cantos do deserto, surgem os devastadores. A espada do Senhor dizima a terra inteira, e para ninguém haverá salvação. Murmurei baixinho os versos de Jeremias. Ela não escutou, olhava a roda de samba, acenando para o namorado. Onde enfiar a cara? Do bar, dava pra ver a entrada do Love's Hotel. O gerente devia estar jogando sueca com os amigos. As palavras do evangelho já não me consolavam. Pedi um copo cheio de cachaça, coisa que nunca faço, e tomei um trago forte. A bebida deslizou pelo esôfago, incendiando com o fogo de dionísio todas as partes do meu corpo. Escutei: Oi! Você não é daqui, não é? Olhei para o lado, com os olhos ainda injetados de decepção e aguardente e me deparei com ela. Cabelos longos até a cintura e olhos rasgados, meio orientais. Sorria alegremente, balançando o corpo, como a me chamar para a dança. Fechei os olhos, agradeci a Deus. Eis que o inverno passou, cessaram e desapareceram as chuvas. Voltaram-me as alegrias da bíblia. Apareceram as flores na nossa terra, voltou o tempo das canções. Em nossas terras já se ouve a voz do rouxinol. A figueira já começa a dar os seus figos, e a vinha em flor exala seu perfume. Alguém gritou, Jasmine, chega aqui! E ela foi dançar na rua. Jasmine... Flor de carne, dona da beleza, musa do samba... Teus olhos são como pombas, teus cabelos são como um rebanho de ovelhas descendo impetuosas pela montanha de Galaad.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br