A Garganta da Serpente
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A poetisa de Bagdá

(Miguel do Rosário)

Estou com medo pai. Que barulhos são esses lá fora? Três horas da tarde, estamos de estômago vazio e não há comida em casa, mas eu que não vou lá fora me arriscar. Nem você, que não deixo. Que será de nós neste país devastado? Quem virá nos ajudar? Estou triste e apreensiva. E aquela criança no quarto? Não quero nem pensar! Deus me perdoe, mas agora seria muito melhor que ela simplesmente nem existisse. E quando nosso dinheiro acabar? Porquê eles fizeram isso com a gente, meu Deus? Tudo bem, havia um ditador, mas era problema nosso! Que espécie de democracia é essa que eles querem nos impor à força de bombas e carnificina? Por quantas décadas iremos sofrer as consequências desta guerra? Pai, vem cá. Me abraça. Deixe-me dar um beijo em sua testa. De certa forma, tens sorte de estar assim, surdo e mudo. Se fosses lá fora e visses o que eu vi ontem, quando fui comprar um pouco de comida, gostarias de também estar cego. Eles destruíram nosso país, meu pai. Destruíram as pontes, as estradas, o sistema de abastecimento de água, de energia elétrica. Bombardearam os hospitais, as escolas, as mesquistas. É pavoroso. Contenho minhas lágrimas para continuar viva, pois sinto que dentro de mim se expande um oceano de desespero e é preciso criar comportas para evitar uma inundação mortal. Não tenho vontade de me matar, contudo. Teria que matar meu filhinho e também você meu pai. Estaríamos mais felizes no paraíso? Com a morte tão próxima, que graça teria em cortar os pulsos? Mais vale esperar que um míssil faça o serviço, ou então perecer sob a lâmina de um destes bandidos que agora circulam livremente pelas ruas, misturando-se aos guerrilheiros. É, meu pai, estamos perdidos. Em breve seremos números a figurar em estatísticas, divulgadas pela imprensa mundo afora. E tenho dúvidas se o mundo irá se comover quando souber que o número de vítimas fatais em nosso país passou de vinte e dois mil quatrocentos e cinquenta e sete para vinte e dois mil quatrocentos e sessenta. Pai, papaizinho, deixa eu te dar outro beijo. Você sempre foi tão bom com todos! Não merecia ter sido ferido por uma bomba. Você que gostava tanto de conversar, de cantar, de contar as lendas de nossos antepassados. Ah, pai, não suporto mais. Deixe-me chorar. Por favor. Estou com medo, muito medo pai. Eu que queria ser escritora... quem serão meus leitores agora? Esses jovens com metralhadoras? As editoras também foram destruídas. Talvez daqui a alguns anos, uma editora alemã publique algum de nossos autores, e o transforme artificialmente no artista-símbolo de nossa desgraça. Vão falar que os anos de guerra criaram uma literatura angustiada, e vão pescar entre nós os mais oportunistas, os mais espertos. Mas não são eles. Não. Não são eles os nossos autênticos artistas. Os nossos artistas mais autênticos morrem diariamente nas batalhas, de armas na mão. Não lhes é dada a chance de ir a um sarau, participar de concursos. Não ganharam bolsas, nem foram publicados, nem viajaram a Londres ou Paris. Ficaram aqui, rastejando nas ruas enlameadas de sangue, empunhando um fuzil soviético.

E eles, os invasores, ainda tem o desplante de afirmar que lutam pela liberdade! Ah! É pra rir, se não houvessem tantos mortos, tantos feridos e mutilados, tantos doentes, tanta gente passando fome. Ah! E a mídia? E a mídia, meu Deus? Lembro-me do tempo em que ainda funcionava o cibercafé da esquina. Passava as tardes lendo jornais e revistas de todo o mundo, e quase fiquei doente em verificar como os fatos eram sistematicamente distorcidos. Mas o pior mesmo eram as opiniões! Meus Deus, como podes ter deixado um povo tão arrogante se tornar tão poderoso? Eles discutem o melhor futuro para o nosso país! O nosso, o nosso, o nosso país! Que melhor futuro? E as pesquisas de opinião? Ah, estas são a piada mais grotesca já imaginada pela mente mais sórdida e desonesta que jamais existiu. Diziam que nós estávamos satisfeitos com a queda do ditador e agradecidos a eles, aos invasores!, por nos ter livrado de um tirano! Satisfeitos? Satisfeitos? Com o quê, meu pai? Satisfeitos com as crianças mortas e mutiladas? Você está satisfeito por ter ficado surdo e mudo por causa de uma bomba? Eu estou satisfeita por ter esta cicatriz horrível no rosto? Quem irá me amar quando terminar a guerra? Meu marido foi morto em combate e disso tenho orgulho, que ele tenha lutado, e às vezes acho até bom que ele tenha morrido, porque eu não suportaria a humilhação de vê-lo fazer uma careta de asco diante da cicatriz maldita que vai do meu olho esquerdo até o queixo. Meu pai, meu medo está passando. Foi bom falar com você, mesmo sabendo que você não me escuta. Seus olhos estão abertos e tenho certeza que você me entende, talvez pelo movimento de meus lábios, talvez pela expressão de meu rosto, talvez por meus gestos nervosos. Ainda sobrou um pouco de café. Vou lá preparar duas xícaras pra gente. O bebê está chorando, vou pegá-lo e colocá-lo em seus braços, para que você possa niná-lo. Ele fica assustado com o barulho das bombas, mas sempre se acalma no colo do avô. Eu te amo, pai. E desconfio que este amor profundo que sinto por você, por meu filhinho, e por este país devastado, este amor singelo e particular que arde em mim, este amor é o próprio Deus vivo em meu coração. E quando a areia do deserto tiver bebido todo o sangue, quando as águas do Eufrates arrastarem em sua corrente os últimos cadáveres, quando o sol inclemente tiver secado nossas feridas, será ainda este amor que nos salvará de nós mesmos, de nosso egoísmo e nossa maldade. Não tenho mais medo, meu pai. Que venham os ianques, agora estou pronta para lutar.

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