A Garganta da Serpente
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Luzes

(Monica Barizan)

Foi um passo em falso. Ou teria sido simplesmente um passo involuntário? Desde as cores e as luzes, as dimensões...Tudo mudou de forma abrupta e incompreensível e inimaginária e definitiva! Repentina mudança, brusca, dolorosa e sadomasoquista! Sadomasoquista: pois eu fazia os dois papéis: sádico quando me obrigava a contorcer, desesperar de dor.E masoquista, quando me deixava enlevar por aquela dor por mim mesmo impingida, sentindo até alegria! Entretanto, era uma mudança totalmente estabelecida por mim, embora involuntária.Sim, involuntária! Mil vezes involuntária!

Só me lembro que era noite. Noite cheia de luzes brilhantes, grandes e pequenas, brancas e coloridas, fortes e fracas. Ah, eram as luzes da cidade, agora me lembro! E, era uma noite comum, chegava até a ser morna, de tão comum, rotineira e banal. Havia o mesmo som das mesmas buzinas, dos mesmos carros, dos mesmos ambulantes... Todos os semáforos apresentavam as mesmas cores: verde, amarelo e vermelho. Acho que o vermelho de todos os semáforos se tornou mais intenso, rubro ou mais celestial. Sim, o vermelho também pode ser celestial! Basta se ter um coração pulsante, vivo e dominador. É esse mesmo vermelho que nos leva até o inferno e pelo mesmo motivo: o amor.

Sim, eu estive nos dois extremos, sempre acompanhado dele. Depois daquela noite quando cheguei à hora marcada como habitualmente fazia. Depois de me sentar, fiz o pedido ao garçom exausto e disperso. Poucos minutos depois já sentia a bebida gelada refrescando, pela última vez, meu corpo.

Coloquei o copo sobre a mesa que suava. De fato, suava em bicas! Que estranho, pensei. Uma mesa não transpira. Uma mesa é um objeto inanimado dos mais comuns e corriqueiros! Quanto mais uma mesa de bar. Talvez, estivesse cansada. Dos pingos de álcool que voavam de copos e bocas desequilibrados! Talvez, aquela mesa, transpirasse as minhas emoções devastadoras que meu consciente ainda não havia registrado.

Então, coloquei o copo sobre a mesa, quase em câmera lenta. E fui me dando conta do que tinha à minha frente: duas portas lado a lado, de alguma forma unidas, gêmeas. Embora fossem duas e distintas entre si, me seduziam por dois caminhos absolutamente diversos. Uma me levava em direção ao bem e a outra ao mal. E, ao mesmo tempo em que me dava conta dessas distinções, percebia simultaneamente, que em algum ponto elas se misturariam, se enredariam, se mesclariam provando serem uma só.

Não conseguia desviar minha atenção. E quanto mais olhava, mais via. E não compreendia. O que seria aquilo? Naquelas portas eu via de tudo: alegria, ternura, cumplicidade. Mas, enxergava mais. Muito mais! Havia também sedução, cobiça, luxúria, gula, ira! Os sete pecados capitais! Estavam os sete diante de mim! E eu os queria todos, um por um, só para mim. Percebi, então, que não eram portas.Definitivamente não eram portas. Eram olhos! Um par de olhos. Olhos comuns na cor, comuns no formato, comuns no tamanho... Olhos. Não. Não eram simples olhos. Dentro deles eu via os caminhos que eu iria percorrer e senti meu sangue como uma enorme onda, uma onda de 20, 30 metros que se quebra em infinitas bolhas de ar borbulhando, borbulhando, borbulhando. Espumando, branca, ameaçadora, incontrolável, salgada. Pois, aqueles caminhos não poderiam, jamais, ser doces. De repente tudo parou em torpor, em resignação, submissão, ardor, vergonha, desejo, brilho, felicidade e desespero: eles haviam se aproximado, de forma rápida e imponente. Senti, então, o cheiro deles: de grama molhada, de chocolate, de maresia de lua e de sol. Uma breve respiração colada ao meu ouvido. Um só momento e se foi.

Para onde teria ido? Percebi que o lugar estava apinhado de mortais, objetos e mesas estarrecidos, surpresos, alcoolizados. Abriram passagem. Saí. Não saí, simplesmente, decolei. À minha frente, porém, eu só via costas! Costas de homens, mulheres, de pessoas, enfim! Não conseguia reconhecer entre todas elas e mais as luzes cada vez mais brilhantes e confusas, a quem pertenciam aqueles olhos.

Quando coloquei os pés na calçada senti que ela se abria e eu fui caindo, caindo, devagar, e tentava me segurar nas paredes daquele abismo em que me encontrava. Paredes ora ilusórias, ora dentadas. Deus, eu sabia o que era aquele abismo: era o amor. Sim, arrebatador e sôfrego, surreal, dominador, pleno, esperançoso, incondicional. Limpo, alegre, irresistível e pecador. Olhei para o lado e vi a poucos metros: eles estavam lá, me esperando e sorriam. Segurei com todas as forças nas paredes do abismo, com mãos e pés e subi até tocar novamente na calçada. E corri até alcançá-los e os vi de perto pela primeira vez. E naquele exato momento decidi viver por aqueles caminhos inseguros, loucos e inevitáveis e esperançosos.

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