A Garganta da Serpente
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A dor

(Mônica Bragança)

O menino falou para o avô! Como vai você, eu vou muito bem, estou com um pouco de dor de barriga, mas vai passar logo. Então o avô falou: _ Isso não é problema podemos passear ou então tomar um chá, o que você acha? O menino ficou muito confuso e logo foi dando um jeito de melhorar - era que ele achava que ia tudo muito bem, mas a dor foi piorando. Seu avô muito preocupado, afinal tinha garantido pra Lizbete, sua filha, que tudo ia ficar bem, e que as férias seriam maravilhosas - também o menino, morando na cidade, nunca deve ter comido tanta fruta fresquinha e de boa qualidade, fora o leite que era tirado das tetas da vaca, quentinho, e que ficava espumando dentro da boca, fazendo estalar a língua. Era para ter dor de barriga mesmo.

O dia estava indo embora, o sol já estava cansado de tanto esperar e já era hora de uma boa espreguiçada. Logo, logo, a noite estaria caindo, o menino iria dormir e seu avô poderia ficar pitando seu cigarro de palha, calmamente, na cadeira de balanço, escutando os grilos cantarem, afinal, prometia uma noite linda. Mas e a dor de barriga? Como iria resolver o problema sem preocupar sua filha?

Nesta hora sentia saudades de sua Bela, vô Belinha, como a chamavam, ele preferia chamar de belezura; ela achava tão engraçado e ao mesmo tempo nada apropriado, mas o amor...o amor permitia tais estripulias. Ele sentia realmente sua falta, e ela sabia tudo, as plantas que deveria colher para fazer os chás, para tantas mazelas. Os bombocados deliciosos, o bolo de fubá, e a broa de milho? - quentinha, esperando para ser comida na soleira da janela, e que fazia todos ao redor ficarem com água na boca - ele dizia para ela que até os bichos iriam querer um pedaço, e ela, ela ria, ria e ria. Que pena, Deus levou-a tão cedo, tinha planos de ir primeiro, mas não foi feita a sua vontade, e vivia, cuidando do sítio, das plantas para fazer chá, apesar de não saber seus nomes nem para que serviam, cuidava dos bichos, das estrelas, da lua, da cama que guardou seus corpos desde o dia do casamento, quantos anos faziam? nem lembrava mais, agora esperava com alegria o dia de partir e encontrar sua "belezura", mas não deixava que a saudade o perturbasse, não, adorava sua única filha e seu único neto - Betinho, assim como o avô. Adormeceu na cadeira de balanço, tentando lembrar qual seria o chá certo para a dor de barriga do neto, e tantas outras lembranças; adormeceu apenas.

Teve um sonho. Andava pelas alamedas da pequena plantação de laranja. O cheiro adocicado da fruta fazia-o lembrar do doce de laranja que Belinha vendia para a vizinhança. Sonhou ter visto várias folhas de chá e também para que serviam cada uma delas; sonhou com a mão quentinha a lhe afagar os resquícios de sua cabeleira, agora rala e esbranquiçada, assim como a sua idade; sonhou também com os bailes que costuma frequentar no pátio da Igreja de Nossa Senhora das Dores; da casa sempre cheia das senhoras carolas do local, e dos pratos gostosos dispostos à mesa, enfeitada com a toalha de linho branco bordado; da louça que parecia feita para casa de boneca; sonhou o dia do nascimento de sua filha; o dia de seu casamento; o dia que conheceu Belinha, sentada no banco da praça em conversê com as meninas da cidade; dos olhares e olhares que ambos desfiaram; do cortejo na casa de seus pais; o bater do coração que ficava sempre a espera na saída da escola, esperando que ao menos, um bilhete viesse aquietar seu coração; sonhou com a folha da goiabeira e acordou, colocou a chávena de chá no fogo, acorreu ao terreiro e colheu umas boas folhas, ainda meninas, e fez um chá, para a dor de barriga de seu neto, supunha.

Betinho dormia e se remexia muito, encurvado em seu próprio corpo como se estivesse a afugentar a dor, que lhe insistia nas entranhas, mas dormia um sono dormido de criança, que mais parecia embalado por um anjo-de-guarda cuidadoso e um carinho de mãos de avó. _ Acorda Betinho, fiz um chá para você que vai levar esta dor embora logo, logo. Acorda Betinho. O chá está gostoso e quentinho. Vai esquentar sua barriga e levar a dor embora. _Oi vovô, tá doendo e doendo, fica dando umas voltinhas aqui dentro e não me deixam dormir direito. Quero a minha mãe pra ela tirar a dor. Quero dormir vovô. _ Toma esta xícara de chá Betinho que a dor vai embora logo, toma meu netinho querido, sua avó fez especialmente pra você, toma tudo logo, que vou ficar aqui até a dor ir embora.

E os dois ficaram na cama, apertadinhos, esquentando um o corpo do outro, levando a dor de barriga embora e o sol acordou com as galinhas e nasceu um outro dia cheio de coisas para fazer e muitas brincadeiras para escolher. A dor, essa, ninguém falou mais dela, foi embora junto com a saudade, que agora, não tem mais lugar para ocupar; às vezes ela vem, juntamente com uma dor de barriga que mexe o corpo todinho por dentro, que faz lembrar de coisas bonitas e sentir cheiro de doce de fruta; às vezes ela dorme e embala as lembranças. Vai uma xícara de chá para acompanhar?

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