A Garganta da Serpente
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A arca de Manoel

(Mão Branca)

Não era religioso, desprezava essas tolices, mas aconteceu de ver um anjo num sonho: loira, peituda, pernão. Falou numa língua estranha dentro de sua cabeça:

- Manoel, você deve fazer uma arca para sair deste lugar.

"Então deus é mulher!", pensou.

- Não sou deus, Manoel, apenas uma amiga das estrelas.

"Como se pode ser amigo de uma estrela?", imaginou.

- Sou sua amiga que veio das estrelas.

"Mas não conheço ninguém de lá.", lembrou.

- Pare de besteira, Manoel, e meu ouça. - O semblante da mulher ainda impassível brilhava um pouco mais intensamente. - Você deve juntar os seus para construir uma arca e sair deste lugar.

O olhar abobado do homem revelou sua estupefação. Tantas eram as perguntas que a aparição nem as esperou.

- Reúna sua família e os alerte que o fim se aproxima. - A iluminada fez uma pausa, parecia esperar o efeito de suas palavras. - Você fará uma arca para salvar a vida no planeta.

- O que é uma arca? - Conseguiu perguntar.

- Uma nave, Manoel, faça uma nave espacial.

- Mas sou um simples mecânico, não sei fazer uma nave!

A mulher abriu os braços num suave circulo. Uma luz ondulante pairou sobre Manoel.

- Eu precisaria de plasma ionizado, plutônio enriquecido, cristais dodecaedros. - Coçou a orelha.- Nem sei como sei essas coisas! - Parecia aturdido com a própria inteligência. - Mas posso dar um jeito...

Convocou a família logo que acordou e informou que iria construir um grande motor-home com tecnologia de ponta. Não era trouxa, se revelasse a verdade seria impedido juridicamente, era rico, dono de três oficinas, tomariam-no por pródigo. Com o engodo, teve o apoio da trupe. Achavam que ele faria algo divertido para todos.

- Preciso de algumas coisas esdrúxulas. - Manoel ficou surpreso com as novas palavras que conhecia. - Óleo de avião, circuitos eletrônicos, baterias recarregáveis, tanques de ar temperado, lâmpadas de cristal puro, sementes de mudas de plantas...

- Perai. - O cunhado interviu. - O motor-home será autossuficiente? Iremos cultivar plantas?

- Não só cultivar, mas retirar energia da captação solar das células foto-sensitivas das plantas. - Explicou calmamente, torcendo para não ser questionado sobre tal conhecimento.

- Ah...

- Usaremos a energia absorvida pelas plantas para a sustentação de vida, como calor, filtragem do ar, alimentação e medicina. A energia nuclear da fusão iônica usaremos para propulsão e revigoração da estrutura metálica.

Os outros até indagaram-se onde ele aprendera tantas coisas, mas depois que ficara viciado na rede mundial de computadores falava cada coisa que ninguém entendia. Admitiram que ele sabia o que estava fazendo e aplicaram-se no projeto.

Onze meses depois estava pronto. Possuía acomodações para doze pessoas, banheiro, cozinha, oficina e cabine de controle. Uma usina de fusão nuclear a frio, uma estufa com iluminação solar hidroalimentada, dois tanques de plasma iônico para os propulsores espaciais e um motor turbo-diesel 12 litros com 470 cv.

No dia da partida, a patota perguntou sobre os as maletas com lâminas de sangue.

- Amostras de DNA. - Limitou-se a dizer Manoel.

- Para quê? - Perguntou a esposa.

- São os animais do planeta. Tô colecionando... - Foi o que conseguiu inventar.

Ele acelerou e o caminhão deslizou suavemente. A tripulação, seus filhos e esposas, cantavam alegremente uma canção. Manoel pediu a atenção de todos.

- Quero mostrar uma coisa. - Ele apertou um botão no painel. A energia das usinas preencheu os tanques iônicos e superaqueceu o plasma. Puxou levemente o manche, adaptado de um jogo de software, levitando o veículo. Apontou para o céu. - É para lá que vamos. - Digitou uns números no teclado da tela e saíram em disparada para o alto. A velocidade estonteante logo os fez alcançar a estratosfera. Em segundos passavam pelo satélite natural do planeta.

Extasiados demais para ficarem confusos, esperaram a explicação do patriarca da família.

- Iremos em busca de um novo mundo.

Infelizmente Manoel não pensou em construir uma sonda para análise de curso de navegação ou um tricorder para prospecção de condições de sobrevivência. Era apenas um mecânico, não um aventureiro. Ficaram perdidos no espaço, nem sabiam mais voltar ao lugar de origem. Quando encontravam um planeta, tinham que entrar na atmosfera para ver se seria habitável. Anos se passaram.

- Vamos tentar aquele? - Apontou o neto de Manoel para um planetinha azul. Ele não sabia que era muito parecido com aquele do qual saíram, havia nascido no espaço.

- O sol é amarelo! - Notou Adão, o filho primogênito, pois haviam perdidos anos procurando em planetas de sistemas com sóis vermelhos.

- Sim, vamos tentar. - Concordou Manoel.

Assim que se aproximaram puderam ver os oceanos azulados e os grandes continentes verdes. Era branco nas extremidades. Um planeta bonito, pensou a netinha mais nova ao desenhá-lo com giz de cera. Fez os contornos das cadeias montanhosas, coloriu de laranja os desertos, demarcou os grandes rios e mares. Fez o primeiro mapa mundial.

Um solavanco.

- Problemas? - Quis saber Adão. Mesmo há tanto tempo ajudando o pai a conduzir o motor-home, ainda não compreendia os princípios que faziam a coisa toda funcionar. Até era capaz de consertar um nano-fusível, mas nunca entendeu como as plantas cresciam tanto e ainda captavam energia para a nave.

- Não sei ... - Foi o que pôde dizer. A alta concentração de oxigênio incandesceu o exterior coberto de poeira do vácuo. As labaredas apenas assustaram sem provocar danos, porém Manoel desconcentrou-se e perdeu a direção. A nave atingiu uma montanha e desabou arrancando coqueiros perto da praia. O acidente danificou apenas alguns circuitos elétricos.

Manoel, contudo, apertou o peito com a mão e balbuciou algumas palavras. Estava tendo um ataque cardíaco. Levaram-no para fora, para sentir o ar fresco depois de tanto tempo.

- Ao menos consegui chegar na nossa terra... - A mão tombou sobre o chão. Estava morto.

- Nossa terra... - Repetiu a esposa, chorosa, a cabeça no peito do falecido.

- Terra! - Falou Adão. - Este será o nome do planeta.

Em poucos anos já tinham uma vila bem organizada, com dezenas de crianças correndo por todos os lados. Viviam simploriamente, não sabiam nem fundir ferro, toda a tecnologia morreu com Manoel. O filho até consertou os circuitos danificados mas não soube reorganizá-los. Sempre repetia que tudo dependia do pai.

Os filhos dos filhos pareciam um tanto bobos aos olhos de Adão. Ele se perguntava se aquela sensação de embriaguês causada pelo excesso de oxigênio poderia ser responsável. Ou talvez a procriação entre irmãos e primos. Não sabia, era apenas um filho do mecânico. Desconhecia muitas coisas, entre elas o que motivara o pai a levá-los até aquele lugar. Ele dissera que seu planeta original iria acabar. Se aconteceu, nem isso sabia.

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