A Garganta da Serpente

Marcos Antônio Filho

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Auto de Páscoa

(Marcos Antônio Filho)

Tinha descido do morro pra resolver as contas com um devedor. Consumiu a droga, tinha que pagar, ou morria. Sua 9mm engatilhada e escondida debaixo da sua camisa para a polícia não pegar. Ele caminhava despreocupado, as pessoas do morro tinham um certo respeito por ele.Alguns moleques da favela tinham-no como ídolo, pois ascendeu rapidamente na quadrilha e no tráfico. Ele era o cobrador da boca. E era sempre muito difícil ele voltar com o dinheiro, a maioria dos devedores pagava com a morte, a tortura eram os juros cobrados.Na saída do morro, ele foi abordado por um rapaz que trabalhava na igreja ali perto, uma das requintadas da cidade, que sequer imaginava o que aquele menino iria fazer:

- Menino, você quer ajudar a nossa igreja e participar do nosso auto de páscoa? Queremos só os meninos da favela encenando. Daremos cestas básicas a todos.

Ele pensou coçou o seu queixo, puxou seus fiapos de barba, e aceitou o convite. Sempre tivera a vontade de representar, mas a vida não deu tempo pra sonhar, apenas para encarar a realidade que batia a retina.Semana que vem é a páscoa. A sua avó se orgulharia dele, por encenar uma passagem bíblica. Ele já se imaginava no papel de Jesus Cristo.Faria de tudo para conseguir o papel, tudo mesmo. Ele se inscreveu e foi procurar o devedor, afinal o trabalho vem primeiro, a diversão depois.

Conseguiu uma folga com o gerente, que era seu amigo, para poder ensaiar. Ouviu algumas brincadeiras, mas relevou. No ensaio as funções foram distribuídas e nosso amigo acabou recebendo o papel de Jesus Cristo, como ele desejava. Encarregado de preparar os garotos no auto, o rapaz da igreja que se mostrou muito simpático quando fazia as inscrições, mostrou a todos no ensaio o que realmente era: Um tremendo de um racista. A cada erro, ele gritava e cobrava muito de todos os meninos como eles se fossem atores profissionais.Depois ele resmungava uns insultos inaudíveis, mas com certeza era sobre a cor da maioria dos meninos, inclusive de nosso protagonista, que pensava que ele não gostava de negros, quem teve a ideia de que esse auto deveria ser feito com os meninos da favela?

- Como vocês sabem, esta é uma igreja muito tradicional, a elite da zona sul vem rezar aqui. Então resolvemos fazer o auto de Páscoa com vocês, para que eles vejam a realidade e possam ajudar a todos os necessitados. - explicou o padre, muito mais legal que o rapaz racista.

Três dias depois, e muitos ensaios idem, os meninos conseguiram encenar com a perfeição digna de iniciantes nas artes cênicas.O Rio de Janeiro todo soube do trabalho social que aquela igreja da zona sul estava fazendo através de jornais e da televisão. E na sexta-feira santa a igreja ficou com todos os bancos preenchidos, as portas tiveram que ser fechadas. A alta sociedade católica esperava ansiosa por este momento. Todos os meninos ficaram nervosos, afinal era uma responsabilidade muito grande para meninos que uma semana atrás estavam com os pés descalços nos valões, soltando pipa ou trabalhando para o tráfico. E qualquer erro, rapaz racista ia ficar falando merda o tempo todo. E nosso herói, além da interpretação, tinha uma bela surpresa para a tão caridosa sociedade católica.

A missa começa e o padre inicia a missa como planejado, na hora da homilia, o auto seria encenado.Depois trinta minutos de louvores, os meninos são chamados...Todos bem caracterizados com as vestes do tempo de cristo. Em fila indiana, eles entram vagarosamente sob uma salva de palmas. Nosso amigo é o ultimo da fila, com uma expressão serena, mas um olhar muito observador diante do que ocorria.Todos os meninos ficam em seus lugares e o racista de merda começa a narrar. Mesmo com o nervosismo de todos os novos atores, o auto seguia perfeitamente como ensaiado até a hora de Jesus repartir o pão e o vinho. Levantando o cálice, nosso amigo percebe com tamanha fé que é observado. Era como se aquele menino fosse mesmo Jesus. Ele se enojou com o tamanho da hipocrisia deles, que admiram o menino preto que encena Jesus e ignoram o menino preto que vende bala na rua, cheira cola por que não tem o que comer e dorme debaixo da ponte. Aquilo acendeu sua fúria tão temida por todos no morro onde morava. Ele resolveu a sua surpresa, a sua querida 9mm compartilhada de sua irmã gêmea, uma em cada mão de nosso amigo. Ele anuncia o assalto e o clima de fé e paz é substituído por medo e apreensão. Taí a realidade que eles queriam, ele pensou. Agora ele poderia dar à sua avó uma boa páscoa, natal, ano novo, carnaval, tinha muito dinheiro nos pescoços das madames.Todos continuam em um clima de pânico e ele dá um tiro par ao alto e avisa que quem falar agora morre, ele tem muita munição com ele.O rapaz que havia organizado tudo continuou a esbravejar:

- Eu falei que preto era uma merda! Mas não quiseram me ouvir, acreditaram que esses pretos er..

O rapaz foi interrompido com um tiro certeiro na cabeça. Nosso herói estava com ele na garganta há tempos tanto que logo em seguida pronunciou que todo racista tinha que morrer. Ele puxa uma sacola e pede para dois meninos recolherem as joias. Ao ver que um coroinha tentava abrir sorrateiramente a porta, foi impedido por dois tiros um na mão e outro na perna. O garoto se contorcia de dor no chão enquanto ele gritava pra todos ficarem quietos e entregarem seus pertences. A mira dele era realmente incrível, ele tinha um dom para atirar com precisão. E isso tudo com apenas quatorze anos.Ele observa todos os presentes e avisa que sabe que tem delegados no local e avisou que se alguém esboçasse um movimento, estava morto. Um deles não acreditou e sacou a arma:

- Tu vai morrer preto filho da puta! - logo seguido foi alvejado na cabeça e morreu instantaneamente.

Enquanto as pessoas da família estavam sujas de sangue, miolos e estavam em choque, os meninos entregavam as bolsas abarrotadas de dinheiro e joias. Ele divide um pouco com os outros, que precisam do dinheiro mais até do que ele.Ele faz dois disparos e foge pelos os fundos da igreja. Antes de sair, ele vê sua imagem de cristo na cruz, se benze e se vai.

Ele volta para o morro correndo loucamente, a sua sorte também era a proximidade da igreja, umas três quadras do morro. Ele já articulava um plano de fuga, pois sabia que a policia iria procura-lo para entregar a sua cabeça em um prato para a sociedade. Ele vai até a boca trocar as joias com seu amigo gerente e se preparar com muitas armas e munição com o que estava por vir. O gerente se demonstrava preocupado com seu amigo e oferece ajuda:

- Quer que eu junte um pessoal pra apagar os policia?

Ele disse que não precisava, ele resolvia sozinho. Pediu desculpas por trazer desordem e insegurança que ele amava. O gerente entendeu e desejou boa sorte:

- E vê se não vai morrer, você vai ser o chefe disso tudo aqui, porra.

Ele pegou o dinheiro, disse que ia fazer o possível e pediu pra que o pessoal da quadrilha se escondesse, porque a coisa iria esquentar muito. Ele partiu pra sua guerra particular.

A polícia já estava à procura do meliante desde a madrugada. Fora um grande disparate contra a sociedade que os acolheu. Alguns meninos que encenaram junto com ele foram pegos e forçados a falar que tudo fora um grande plano minuciosamente planejado pelo o garoto que matou duas pessoas e feriu uma. Eles nem sabiam se aquilo era um plano mesmo, nem sabiam que ele era um traficante. Mas foram fichados como cúmplices e armas foram apreendidas com eles, armas que foram plantadas com eles para mostrar que eles deram uma falsa cobertura ao menor assassino. A mídia pressionava e plantões entravam no ar a todo o momento no rádio e na televisão. Jornais preparavam edições extraordinárias, alguns editores de jornais aristocratas e diretores de televisão tinham comparecido ao auto e presenciado a barbárie do menino que enfurecido roubou e matou dois inocentes...A opinião pública fora muito bem manipulada e o queria vivo ou morto, justiça tinha que ser feita e as mortes tinham que ser vingadas. Era um absurdo que esse garoto tivesse destruído duas famílias e ficasse impune. A repercussão disso se estenderia muito ainda, e os policiais assim que descobriram de que morro o menor vivia foram com os seus melhores homens em busca daquele pequeno matador. O mais forte armamento foi destinado a prender vivo ou morto um garoto de quatorze anos, a captura mais esperada do ano.

Ele sabia que não estaria seguro por muito tempo por muito tempo. O dia já estava claro e tinha que sair daquela casinha afastada da favela no alto do morro. Eles sabiam que arruaça aqueles policiais filhos da puta estavam fazendo lá embaixo, entrando nos barracos de trabalhadores, e destruindo o pouco que têm. Ele tinha que sair dali porque lhe incomodava demais isso, se ele pudesse mataria todos eles por não respeitar os trabalhadores que vivem no morro, que eles acham que são bandidos só porque são pretos.O sol já tinha raiado, ele resolveu sair dali e descer pra cidade e ver as coisas no morro se acalmarem.Ele começou a correr, pois com aquele mato alto que rodeava aquela parte do morro era impossível andar. O cansaço bateu rapidamente, tamanha era a dificuldade de se locomover. Em meio à correria, lembrou-se que era sábado de aleluia. Ele ouve um disparo e a bala passa zumbindo no seu ouvido esquerdo. Ele se deita rapidamente no mato e calcula a distancia onde o policial está. Aproximadamente dez metros ao sudeste. Ele se levanta e dispara dois tiros certeiros vitimando o policial, que nem teve tempo de reagir. A velocidade de raciocínio do moleque era incrível. Ele soube a localização do policial apenas pelo o barulho do disparo e por onde a bala passou. Agora ele teria que correr muito mais rápido porque a troca de tiros com certeza atraiu os outros policiais. Ele estava certo, pois veio uma saraivada de tiros em sua direção ele nem podia se virar para atirar, pois ficaria vulnerável, o jeito era atirar sem olhar pra trás apenas com a mão direita descarregando o pente da 9mm enquanto a mão direita preparava a granada que foi arremessada logo em seguida. Antes de ouvir a explosão da granada ele sentiu uma forte ardência nas costas.Um grito seco. A granada explode e ele é arremessado para frente enquanto três policiais foram atingidos.Ele acabou caindo milagrosamente em uma erosão escondida no meio do mato, ele rola uns cem metros e ao cair fica imóvel para não ser descoberto. Os policiais que sobraram continuaram seguindo e não encontraram mais o menino. Ele escapou deles, mas talvez a morte não lhe daria chances pra escapar.Ele levou o tiro na altura do rim direito, e o ferimento não parava de sangrar, ele era muito grave.Sua vista começou a rodar, suas pálpebras pesaram e ele acabou se rendendo com a disputa com o seu corpo.

Domingo de Páscoa. Todo sos veículos de comunicação noticiam a morte do assassino do auto de Páscoa. A policia não conseguiu encontrar o corpo, perdera mais dois policiais, e outros estavam em estado grave. Um teve a perna amputada. As joias não foram encontradas, mas a morte do garoto acalmou os ânimos, o seguro pagaria as joias perdidas...Justiça foi feita e o caso que chocou o Rio de Janeiro foi encerrado.

No mesmo dia, uma senhora alheia a tudo isso se preparava pra cear sozinha. Tinha acabado de voltar da missa em uma capela do morro e colocado o frango no forno quando ela ouve um barulho vindo da sala. Tinha alguém além dela dentro de casa. Ela vai até a sua sala e se depara com uma bela surpresa para a senhora:

- Meu neto! Vem cear comigo! Fiquei preocupada você sumiu há dois dias.

Era ele mesmo, o moleque agonizou, mas não morreu. Bastante sujo e ferido, ele recusa o convite de sua avó, explica o que aconteceu nesses dois dias e lhe dá o dinheiro das joias. Mas ela recusa:

- Esse dinheiro é sujo. Você matou muitas pessoas para consegui-lo.

Ele insiste, dizendo que só assim ela sairia daquele barraco do morro e poderia viver com a dignidade que ela merecia, sem depender da aposentadoria furreca que ela recebia do governo. Ela se manteve irredutível e se preocupou com o ferimento dele:

- Você está ferido, deixa eu limpar isso para você...

Ele diz que está tudo bem, que pra ela não se preocupar, não era grava e ele já teve ferimentos piores. Ele resolve deixar o dinheiro em cima da mesa, para a sua avó fazer o que bem entendesse com ele. Ele toma a benção e se vai, diz que não pode ficar lá porque ela corre perigo com ele ficando lá. Mesmo sujo e ferido e sentindo dores insuportáveis, ele foi cumprir o seu destino. Ele havia entendido o por que de aquilo tudo, essa ideia de roubar aqueles ricaços, a fuga espetacular. Ele se sentia o arauto do morro miserável, que fora escolhido para escancarar a guerra silenciosa do povo do asfalto e o do morro com disparos de ódio. Alguém precisava combater a elite gorda e hipócrita, banaliza a caridade, usando como marketing próprio, apenas para ter uma boa imagem diante da população ignorante. Ele entendia que era hora de encerrar sua missão, eclodindo essa guerra civil que as autoridades eufemizam. O sol estava forte e as crianças brincavam de bola e de amarelinha sem se importar com o moleque sujo e ensanguentado que passava por eles. Andando devagar por causa das dores, ele desceu o morro, dobrou algumas esquinas e finalmente chegou na delegacia.

Desarmado, ele adentra na delegacia assustando todos, que sacam rapidamente suas armas. Alguns acham que se tratava de alguma assombração, já que ele foi dado como morto. Ele levanta os braços em sinal de rendição e o delegado vai prende-lo pessoalmente e o leva para uma cela especial, onde só tinha uma pequena janela de onde vinham os poucos raios de luz que iluminavam o local. Havia um gancho no teto e o menino foi colocado pela as algemas por ali. O delgado pega pó seu cacetete e diz em um tom ameaçador:

- filho da puta, você matou meu melhor amigo na igreja, você estourou os miolos dele na frente da família... Agora vamos acertar as contas. E o melhor é que ninguém vai te salvar, todo mundo acha que tu tá morto.

- Não é com você que eu vou acertar as contas. - disse o jovem olhando com esperança o sol pela pequena janela.

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