Fui chamada às pressas ao pequeno apartamento de Liza. Era madrugada
alta, tempo chuvoso. Mas, faminta apenas, ocupava-me em juntar condimentos leves
à mistura das refeições do dia e escutava Ginastera, a
"Variação canônica para oboé e fagote";
relíquia recuperada pelo meu ócio resignado desses últimos
anos. Os 2:31 minutos que levava à repetição ad nauseum,
repetição em volume reduzido nem tanto - enlevando-me e velando
o misterioso sono de minha vizinhança zumbi. Quando em vez, fumava pelas
frestas de um basculante; a fumaça conspiratória denunciada pela
lúgubre luminância da rua fantasma. Pois bem, Liza, tivera um daqueles
pesadelos reais.
Registrou o sonho, Liza? Não. Mas contou-me o suficiente às minhas
anotações e, tendo antes ligado para mãe e, esta, insistido
na ideia de recorrer a mim para acompanhar Liza ao centro, parecia mais
determinada a agir que propriamente angustiada.
Interrompi o processamento dos meus resíduos culinários, insisti
para que ela recolhesse do ralo do esquecimento, do aquém-linguagem,
os resíduos de seu pesadelo e, com uma gravidade emputecida na voz, tentei
dissuadi-la a se embrenhar pelo centro, como zumbi, na ilusão de mitigar
suas intimidades angustiadas naquela maquinaria suspeita do "CPP"
- nome obscuro para uma autarquia que se pretendia como um organismo público
de processamento de pesadelos. Um contra senso instituído, em face da
alta incidência de distúrbios do sono - pesadelos, aferida pelo
Ministério do Trabalho e Lazer, desde o início de 2036.
Liza, sejamos razoáveis, passar por sessões relâmpago de
dramatização do óbvio - que são ou teus fantasmas
mesmo, ora! Filas, senhas e mais filas de pessoas apavoradas que não
trocam palavra com medo de perder a vaga, depois...a Máquina! Mas mamãe
conhece o sobrinho do homem da estatal que sabe de um psiquiatra gnomotivista-experimental
(...). No cinzento daquela manhã, incapaz ou sem alma suficiente para
dissuadir Liza de farfalhar sua singularidade pelos receptores daquela incubadora
caleidoscópica., de espargir seus fragmentos oníricos pelos corredores
de uma repartição pública cartorial, setorizada...kafkiana,
minha recusa foi lapidar. Preciso passar pela "Retro-sensibilização",
retorquiu minha amiga, convicta de que já estivera impregnada por pesadelos
classe "D" por mais de duas vezes naquele quadrimestre; risco de demissão
na certa! Classe "D", ruminei? É! "D", de derrelição?!
Ela recordou-se do texto de Hilda Hilst, mas não adiantou. Pairava sob
síndrome de abstinência de substância específica:
sentido.
Entrei pela manhã relendo fragmentos de alguns clássicos. Entre
eles -Gilles Deleuze sobre coisas como a "máquina desejante".
Nas ruas, Liza, atarantada, na pressa, agonizava atropelada. Seu fantasma, para
redimir minha recusa, lembrou-me um verso de "Iracema", um clássico
também, de Adoniran Barbosa: (...) "travessou contramão".
E eu? "eu sempre dizia", deveras. Era a minha questão central.
Paga ainda "meus alfinetes", hoje.