Não lhe causou estranhamento algum quando, já na entrada daquele
pátio, topou de cara com a tabuleta bem postada, solene, onde se lia:
"A FILA". Em caixa alta, sem serifas, preto sobre o branco e bem à
altura da vista. A lucidez com que se impunha excluía e conclamava a
presença de uma crase, isso sim, seria de se estranhar? Ao contrário,
era quase uma condição, uma essência mesmo da placa, essa
simultaneidade. A caminho, no entanto, lembrou-se ter lido "FUNERÁRIA"
onde seria mais crível que, pelo recorte urbano do local, pela vizinhança
típica, lá estivesse escrito "FUNILARIA". Mas este petisco
caprichoso, já o reservara ao analista, até por uma questão
de comodidade, ou de resistência. Não era o caso desta placa. O
máximo que ela permitia era conjecturar se teria faltado um ponto de
exclamação ou, algo mais sutil - se, por decoro de se evitar um
imperativo grosseiro, autoritário, suprimiram elegantemente um "RESPEITE
A FILA!". E era essa condição que impunha respeito.
Tudo isso lhe infundia uma espécie de esperança vaga, de crença
em valores substantivos, de confiança pela confiança; acelerou
a marcha e perfilou-se aos demais. Não eram muitos, os demais. Silhuetas
discretas, deslocamento proporcional aos espaços sucessivamente desocupados
pelo atendimento. Pessoas, como ele, ali, na fila. Dispunha de um dispositivo
contra o enfado, conversa mole, mas, sobretudo, contra a timidez incorrigível.
Era um livrinho em formato seis por cinco que cabia em qualquer canto de bolso,
paginação confortável e à prova de olhares bisbilhoteiros.
"Padre Antônio Vieira", uma antologia...viria a calhar; apalpou
e, pela espessura percebeu o engano; era um Hamlet cuja impressão, de
tão nítida, dava para ler até nos vagões do metro
e, até por isso, ele o reservara para o crepúsculo.
Decepcionado, enfiou as mãos pelo bolso e resignou-se a sua corporeidade
perfilada aos demais. Foi então que se instalou um certo caos no recato
daquela espera ordenada. Um homem deixou a fila e, ajeitando pasta e capacete
pelos braços aproximou-se, agachou-se e ergueu do chão um retângulo
de plástico cinza.- "Esta senha é sua, não?"
Sim, era dele, escapou do bolso onde guardava o William Shakespeare das horas
crepusculares. - "Melhor ficar esperto pra quando a fila bifurcar",
asseverou, num tom de voz sinistro, em baixo profundo e olhando furtivamente
para os lados e para cima, em direção ao começo da fila.
- "Obrigado, mas que bifurcação é essa?" Olhou
para o edifício à frente, era térreo, não havia
razão para olhar para cima.
O caos se instalou por uma razão singela e contra cuja obviedade, a menor
inobservância parecia implicar em afronta grave. Tinha alguma relação
com as senhas e aceitar que a cor da senha determinasse a bifurcação
parecia tão consensual aos demais, que apenas uma leve indagação
sobre sua razão de ser, soava como um libelo. E tornava o perfilado um
contraventor.
- "A minha, senhor, eu sei que é branca. Quando bifurcar lá
na frente eu sei pra onde devo me dirigir. E a sua que eu vi que é cinza
vai tomar outro destino. Fica mais atento que ninguém aqui é ingênuo
nem palhaço!".
- "Bom, já que" branco "não é cor, deve
ter senha preta também...".
- "Tem sim senhor, mas ninguém viu cair de bolso nenhum!".
- "Deve ser porque não tem destino nenhum!"