Deixando o restaurante bandejão, lá vinha a Roxane equilibrando
mochilinha nas costas, tonelada de xerox na mão esquerda e um saco plástico
contendo uma baguete de pão murcho e uma laranja não descascada.
Eu acompanhava a cena de um ponto do campus onde, aos trancos, sacolejando,
desembestando pela turba, ela trombaria comigo, surpresa, mas agradecida: -
"Ah, o cara, meu anjo da guarda, o carinha que deixou a Psico pra entrar
pra História!".
Assim me enquadraram quando, alguns anos de formado, consultório claudicante,
entrei para o curso de História querendo esquentar um projetinho de mestrado
que me levaria a muitos, muitos pontos do campus. A gente conversava papos-cabeça
enquanto eu lia seus troncos e membros. Ela achava meu olhar "algo penetrante..."
essas conversas sobre Eros e Tânatos, e eu sentia alguma ternura melancólica
pela sua libido-algo dispersa- ali distribuída entre os textos pesados
para os dezenove da menina e o pão murcho, que pegava por pegar, do jeitinho
mesmo como pegava meu membro e enlaçava meu tronco. E nada, nada sabíamos
sobre a laranja e o que já significava àquela altura. Tratarei de descascá-la aqui, com um
leve arrepio na espinha e muita dificuldade de recordar a fluência com
que passeávamos por tantos labirintos simultâneos, com o fio de
Ariadne que nos oferecia a nossa condição de "membros".
Proust acreditava que o passado residia nos objetos.
Que a laranja me faça as vezes da "Madeleine" no chá
que trouxe toda a infância do escritor, em Combray. E eu os conduzirei
pelas andanças de um outro objeto, por corpos, por lugares e por instâncias
vertiginosas entre tânatos e o que tínhamos de Eros.
Ela e eu nos sentamos de frente um para o outro com as pernas abertas ao modo
de sempre. Entre as dela, duas sedinhas, uma pro "digestivo", outra
para envolver um camafeu microscópico preso à argola de um piercing.
"O passado (apontei para o pão), o presente (para o baseado) e.
o futuro?"
Uuuuu...
Acho que não vai acreditar, falou arrastado, envolvendo a peça
insólita com a sedinha e erguendo o polegar esquerdo enfiado até
a metade da laranja cuja casca rompeu por cima, sem ferir os gomos. Imagina
o que se pode esconder entre estas suculências cítricas, como se
cravasse na rocha...e dissolvesse, assim...
Eu perdi a sequência dos movimentos ao desviar o olhar para o trote
nada abstrato das ancas e peitos de Luciana que se aproximava explodindo em
sol, transpiração banhada e aromas de cânfora, rangidos
de calçados aquáticos e mais a volúpia animada pela convicção
de trepar comigo, depois do almoço, como gostava. Era a hora do nosso
itinerário pelos recantos preguiçosos do campus pós-prandial,
entre laboratórios de Física, abandonados- "Bom, eu já
curto endorfinas e coisas parecidas, assim, viagem de pele, sem maldade. O que
rola com os de ervas, to trocando por serotonina e toda dopamina da minha lata
mesmo, ô caras, sai dessa!".
"Aceite esta laranja aqui, Luciana, vem, a gente caminha pelo fumódromo
e então vai me contando como curte o cara, sem maldade..." Afastaram-se,
e eu fiquei vendo quase mudo como uma lentificava a outra, enquanto se dissolvia
o enigma da fruta, com um camafeu preso ao piercing metido pelas estranhas.
Piercing de língua. A propósito, a Roxane pesquisava línguas
nativas de tribos não aculturadas. A tarde passou. Manhã seguinte,
depois do intervalo, a notícia corre: morreu de congestão! Comeu
carne e foi pra piscina, já era, a gostosona...Uma tragédia, coisa
horrível de ver, enrolou a língua, ficou roxa roxa, ta estendida
no lava-pé esperando a enfermaria, mas já foi, todo mundo acha,
choradeira, que morte estúpida, coisa besta...as amigas querendo nem
ver, a fruta no chão... O frio na espinha veio com minha manobra bem
sucedida que, num vacilo dos para-médicos, logrou retirar-lhe o piercing
da língua e, mais tarde, arremessá-lo ao lago central do fumódromo,
na ala sul.
Não me perguntem a razão. É muito cedo ainda. Um impulso...
de protegê-la, talvez. Até hoje não sei. Nas semanas seguintes,
quando a observava de longe, sentada, catatônica, fitando a pouca profundidade
do laguinho, na ala sul-oposta à saída do bandejão, ficava
sem pensar. Ela, sem textos nem pretexto; sem pão nem laranja. Parecia
encantada. E estava.
E eu estaria assim, até agora, se um varredor que me espiava enquanto
eu olhava Roxane espiando o lago, se ele não tivesse comentado que ela
deu em cima do Jonas, naquela semana em que o funcionário achara uma
joia no laguinho. Devia de ser valorosa, pois se a branquela do lago
num tava maluquinha, querendo até pagar o menino!? E o cara, perguntei,
ué, pois num sumiu do laboratório, daqui, do mundão? "De
primero ele queria avaliar direitinho a coisa, depois voltou pra cá numa
sengraceza, falando que devolvia, mas comia ela antes, a moça. Pegaram
os dois nuínho na Física, ela enrolava ele com fibra ótica,
que ele tava todo marcado. Pois num sumiu objeto... prisma, os avental, umas
chave também! E ele também, ué, e ela fica aí olhando
pro nada dele".
Pois agora digo eu- não é que, no dia da laranja estuprada pelo
dedão dela enfiado, o normal não teria sido eu ter arrastado a
gostosona da Educação Física para o laboratório
de Física e , ao modo de sempre, esquadrinhá-la com filetes de
fibra ótica! E depois caminharmos, nus sob os jalecos, pelas espirais
do Observatório a Olho Nu (às vezes, nem dava tempo de chegar
a Lua e outros astros que poderíamos contemplar, luze e lume agora mesmo,
Luciana, fosforesce por baixo do tecido branco e arreganha luz no meio do meio
da tarde ociosa do campus pisoteando os chapados, as chapadas e as obscuridades
todas, chupa agora Luciana, chupa enquanto eu peno as chaves pra despistar esses
delitos, chupa a obscuridade de todo conhecer!). Nunca ninguém mais achou
o prisma.
Mas...se não acharam nunca mais também o Jonas, quem era eu pra
chegar na moça, encantada, e perguntar. Perguntar de quê? Ousaria
descobrir como teria reproduzido a minha delirança toda com quem luzia,
enquanto ela se enterrava nos próprios gomos a fundo, sem anjo-da-guarda
(Ó!) e, agora, tadinha...sem um camafeu?
Uuuuu...