A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Amizade

(Zé Luis)

Ele sabia que aquele dia o marcaria para sempre. Ele sabia que aquele dia se representava como que um fim, seria talvez o afastamento definitivo entre ele e a familia adoptiva, entre ele e as memorias que o tempo lhe deixou.

Encostado à velha palmeira que tinhamos no jardim Daniel Chatuvela parecia fundir-se com a mesma, só o fumo do cigarro que fumava era perceptível.

Alto, magro com umas feições que pareciam ter sido talhadas por um escultor africano, Daniel apresentava-se como um homem cujo tempo não tinha ou dava a impressão de não ter passado por ele.

Senti nos seus olhos quando o procurei no jardim uma tristeza que nunca pude detectar naquele olhar. Parecia-me distante, ausente com o seu pensar, senti naquele momento o que aquele homem talvez nunca tenha sentido, a angústia, a indiferença pela vida e pelo tempo.

Naquele dia depois de ter terminado a escola corria eu, como sempre o fazia, em direcção da minha casa acompanhado pela nossa cadela mara. Entrando no jardim e indo direito à porta da cozinha, fui de encontro aquelas pernas altas e duras que aí se encontravam.

Caí e olhando para cima para ver o que tinha acontecido deparei com aquele rosto risonho, amável e agradável, que se encontravada no meu campo de visão.

Minha mãe do interior olhava despreocupada para a cena.

- Entra, entra e vai arrumar os teus livros.

Ao estender-me a mão para me ajudar a levantar, senti uma sensação de proteção ao agarra-la como nunca tinha sentido.

- Quem é mãe?

- Deixa lá quem é, não tens nada que saber!..

É um amigo do teu pai.

- Daniel. Disse com uma voz segura , estranha e melódica ao mesmo tempo.

Assim fiz pela primeira vez conhecimento com Daniel Chatuvela.

O sol era quente, a sombra era pouca, o silêncio da tarde fazia-se sentir, dava a sensação de que o bairro dormia cansado pelos fortes raios quentes do sol.

Sentado na soleira da porta da cozinha, Daniel parecia sentir o ar e admirar as poucas nuvens que se deslocavam no céu.

- Onde vais Daniel?

Estás tão bem vestido, até tens uns sapatos novos!...

- O seu pai, menino, está a chegar e depois vamos à missão de S. Paulo!...

- Á missão?...E que vais fazer à missão?

- Não sei menino! O seu pai disse que hoje íamos à missão acompanhados da sua mãe.

E lá foram os três metidos naquele Ford verde antigo, que fazia um barulho infernal quando o seu motor a diesel se punha a trabalhar.

Quando pela tarde regressaram, corri até junto deles e perguntei:

- E então que foram fazer?

- Cala-te rapaz não é nada contigo.

Olhando para o Daniel compreendi e então não fiz mais perguntas.

- O mulher podes arranjar aí algo para comer, pois tenho fome e tu Daniel não tens fome?

- Tenho sim padrinho.

- Padrinho?

O meu pai tinha oferecido no dia do baptizado do Daniel, um relógio usado que ele meteu dentro de uma caixa de fósforos.

Nunca compreendi porque é que ele o metia dentro da caixa de fósforos e um dia perguntei-lhe:

- O Daniel sabes que os relógios são para usar no pulso?

- Sim sei, mas não me ageito, é que nunca tive um e depois nunca tive o hábito de olhar para o pulso para ver as horas.

É sem importancia para mim as horas!

Que me interessa que sejam dez ou cinco, compreendes?

- Ah!...

Só muito mais tarde é que compreendi porque é que o Daniel tinha aquela sensação de que o tempo estava fechado dentro de uma caixa de fósforos. Porque é que ele o fechou dentro da caixa, porque é que o Daniel fugia do tempo que lhe queriam impor.

Era verdade!

Muitas vezes ouvi o meu pai a dizer-lhe:

- Vê se estás a horas Daniel.

Não era porque o quizessem obrigar a entrar dentro do tempo, não, era talvez porque mecanicamente se dizia isso a toda a gente.

O Daniel olhava para o céu e sabia exactamente o que tinha que fazer e quando o devia fazer. Assim era a sua percepção do tempo, o movimento das nuvens, talvez, ou a claridade do sol?

Sentando-se junto de mim disse:

- O teu pai para mim tem sido o pai que perdi, por isso queria que eu fizesse parte da familia. Para que isso pudesse acontecer fomos à missão de S. Paulo, onde eu fui baptizado e o teu pai e a tua mãe foram os meus padrinhos.

Então compreendi!

Agarrando-me ao seu pescoço senti um enorme desejo de lhe dar um beijo.

- Então quer dizer que vais viver em nossa casa?

Fiquei tão feliz ao saber que o Daniel faria parte da nossa familia que nessa noite só sonhei com isso.

No dia seguinte encontrei de novo o Daniel sentado à porta da cozinha com um copo de alumínio na mão bebendo café.

- Então Daniel que vais fazer hoje?

- Não sei! A sua mãe, menino, é que sabe.

- Eu vou para a escola queres vir esperar-me depois desta acabar?

-Vou pedir à senhora que me deixe ir.

- Então até logo.

E lá estava ele com as suas compridas pernas encostado ao muro à minha espera.

- E então Daniel queres vir jogar futebol ?

- Não menino, não posso, pedi à sua mãe que me deixasse vir busca-lo mas ela disse para não demorar.

- Daniel porque é que não me chamas pelo meu nome?

- O menino sabe!...

- Então vamos fazer um pacto, quando estivermos os dois, tu chamas-me pelo meu nome, quando estiveres junto da minha mãe, então sim chama-me, menino!

- E de onde vens tu Daniel?

- Eu venho de uma pequena povoação junto das margens do rio Cuango, muito perto das quedas Guilherme em Caungula, mas sou Quimbundo, e dizia isto com um ar muito orgulhoso e fiel em o ser.

É verdade que o povo Quimbundo, era um povo trabalhador e muito orgulhoso.

- E quantos anos tens?

- Não sei, nunca o soube e nunca foi importante para mim sabe-lo. Sei que nasci em noite de lua cheia e quando nasci o meu pai já tinha dois filhos, um de cada mulher. Ele trabalhava na mina.

Nunca foi importante para nós o tempo, nunca foi importante saber quando nascemos tão pouco quando morremos.

O meu pai um dia teve que ir trabalhar para os lados das quedas então a familia não teve outra escolha senão de o acompanhar.

- E porques vieste embora?

Baixou a cabeça e pude ver no seu olhar uma tristesa quase sem fim. As palavras que saíam da sua boca pareciam que se atropelavam umas às outras.

- Não queres contar, não contes Daniel.

- Nao é isso, é que sinto uma pressão dentro de mim que não me deixa conjugar o pensamento.

O meu irmão mais velho, a minha mãe e o meu pai trabalhavam na mina, um dia apareceu à porta da cubata o encarrago da mesma acompanhado do soba. Olhei para ele e senti um frio enorme dentro de mim. Primeiro pensei que me vinha buscar para eu começar a trabalhar na mesma, depois pensei que algo se tinha passado. E assim foi, algo se passou, todos morreram na mina.

Fiquei gelado sem forças para reagir, fiquei como morto, só compreendi que me iam enviar para os missionários na capital, dado que não tinha outra familia.

A mesma pergunta me fizeram quando cheguei ao colégio dos missionários: Quantos anos tens? Quando nasceste?

- Não sei, dizia eu!...

Pois é dizia o missionário mais velho, esta gente nunca foi recenseada, ora bem abre lá a boca.

De boca aberta e com os dois missionários a tentar espreitar para dentro da mesma,

Daniel não compreendia o que estava a viver.

É como lhe digo irmão Zacarias, pelos dentes parece-me que deve ter mais ou menos doze anos.

- É possivel irmão Berto, é possivel, mas não acha que está um pouco atrofiado para a idade?

- Não!

- Lá grande é ele, mas está muito magro.

- Como te chamas?

- Daniel Chatuvela.

- Pelo menos tem nome!

- Abra uma ficha com o nome e ponha

idade doze.

- E data de nascimento?

- Ponha a que o irmão quizer.

- Que tal oito de Agosto?

- Pronto então vais ficar registado assim: Nome: Daniel Chatuvela nascido nas margens do Cuango a oito de Agosto e tens doze anos de idade.

- E assim fiquei registado no reino da papelada, portanto hoje tenho vinte e cinco anos.

-Sabes quantos anos tenho eu Daniel?

- Não!

- Tenho dez anos e meio.

- E gostaste de ter estado no colégio com os missionários?

- Gostei sim, foi aí que aprendi a ler e a escrever, ensinaram-me muita coisa, mas um dia o irmão Berto chamou-me ao escritório e disse-me: Daniel não te podemos ter mais na missão, já tens vinte anos e por conseguinte é tempo que vás à procura da tua própria vida. Senti novamente o mesmo frio que tinha sentido no dia em que a minha familia tinha desaparecido.

Tens aqui esta direcção vai e fala com o senhor Duarte pois ele tem um emprego para ti.

- E assim fui lançado no mundo que seria a minha casa.

- E como conheceste o meu pai?

- Uma noite, por volta das sete e meia dirigia-me eu a casa quando avistei um carro parado ao lado da estrada, fora estava um sujeito que me pareceu bastante nervoso dando pontapés na roda do carro que estava furada, dizendo: ora bolas, logo agora é que isto devia acontecer. Aproximando-me perguntei:

- Desculpe, posso ajudar?

Olhando-me de cima para baixo o teu pai disse:

- Podes, vai à mala do carro, traz-me o macaco e o pneu suplente.

- Macaco? Patrão o pneu está aqui, mas não vi macaco, não, juro.

Rindo o teu pai levou-me de novo até junto da mala do carro e apontando para um ferro com uma espécie de grande parafuso disse:

- Vês, isto é um macaco. Mete-se debaixo do carro e com esta chave vai-se apertando até que o carro suba. Assim podemos sacar a roda furada e substituí-la por uma outra que esteja em condições. Vamos então mudar a roda.

- Gostei da forma como o teu pai soube explicar-me a situação.

Depois de termos mudado o pneu, o teu pai perguntou:

- Para onde vais?

- Eu fico logo ali...

- Então pega e metendo-me vinte angolares na mão disse:

- Se algum dia precisares de algo vai ter comigo à fábrica de vidros e pergunta pelo Sr. Maxado.

- Obrigado e boa noite.

- Como não gostava muito do trabalho que o Sr. Duarte me tinha dado, resolvi passados dois dias ir ter com o teu pai.

A fábrica de vidros estava situada no Cacuaco, um pouco mais à frente.

Chegando à entrada da fàbrica o guarda que estava na guarita perguntou-me.

- Que queres?

- Queria falar com o senhor Maxado.

- Espera aí um bocado.

- Podes entrar, vês aquele pavilhão à esquerda?

- Vejo sim.

- Aí são os escritórios, quando chegares entra e pergunta pelo senhor Maxado.

- Então Daniel o que te traz por cá?

- Como o senhor Maxado me disse se precisasse de algo...

- Muito bem, espera comigo até à hora de fechar os escritórios, depois vamos à secção de pirogravura para falarmos com o encarregado que necessita de uma pessoa.

E assim foi como conheci o teu pai e vim para tua casa.

Daniel vinha à nossa casa quase todos os dias pois passou a trabalhar na fábrica por turnos e todos os dias vinha ajudar a minha mãe naquilo que era preciso. Arranjava o jardim, ia às compras, saía com os meus irmãos. Não vivia em nossa casa, vivia no muceque Sambizanga, segundo ele vivia numa casa pequena com mais dois amigos do trabalho.

Os anos foram passando, já eu tinha dezoito anos quando um dia o Daniel chegou junto de mim e disse:

- Queres vir comigo ao muceque?

- Para quê?

- Queria mostrar-te uma coisa.

- E quando queres ir?

- Pode ser amanhã, que é domingo.

E là fomos até ao muceque.

Chegados aí, levou-me a uma casa pequena, cheia de bancos, com uma mesa ao fundo e do lado esquerdo aquilo que disse ser um piano.

- Que casa é esta Daniel?

- É uma espécie de igreja protestante, onde se reza e canta durante a cerimónia

- Nunca ouvi falar de tal.

- É verdade! Foi o meu amigo que me trouxe e gostei imenso de ter participado na cerimónia.

- Como tu me tinhas dito um dia que gostava de aprender a tocar um instrumento eu pensei que talvez gostasses de tocar piano.

- Sim é verdade que gostava. Mas Daniel não tenho dinheiro para poder pagar a um professor para me ensinar!...

- Não te preocupes já falei com o pastor, ele mesmo, o senhor Gamba (guerreiro) se propôs a dar-te lições gratuítas.

Depois de me ter apresentado ao pastor Gamba e a seu filho Lutalo (guerreiro), ficamos entendidos de que começaria as minhas lições na semana seguinte.

- Confesso Daniel que não sei como te agradecer.

- Não tens nada que agradecer, só espero que gostes.

E na semana seguinte lá estava eu sentado num banco ouvindo as explicações do pastor Gamba.

- Conheces as notas?

- Conheço sim.

- Então como vês, o piano tem teclas brancas e negras , as brancas são as notas cheias e as pretas as meias notas.

Não toquei no piano só ouvi a lição teórica do mestre Gamba.

Confesso que ainda hoje quando olho para um piano vejo aquele homem gordo, sorridente e com os dentes brancos em evidência quando abria a boca. Com os dedos compridos e cheios a pousarem-se como penas de pássaro suavemente nas teclas do piano fazendo sair do mesmo sons magnificamente melódicos e encantadores.

Sinto-me culpado por ter abandonado quem com tanto entusiasmo se prontificou a mostar-me o segrego do saber criar melodias harmoniosas e interpretar música. Sinto-me culpado por não ter sabido aproveitar a oportunidade que tive de aprender a tocar piano numa igreja protestante, mas uma coisa ficou comigo até ao fim, fui sempre um grande amigo do senhor Gamba e de seu filho Lutalo.

As razões pelas quais perdi o interesse de aprender a tocar piano, não as conheço, talvez pela juventude selvagem que encerrava dentro de mim, talvez pela grande febre que tinha em viver intensamente essa juventude, sem me preocupar em sublimar o lado místico do meu ser. Talvez não tenha sabido aproveitar a mão que me estendiam, talvez!!!!

Durante um periodo senti-me tão mal que evitava encontrar-me com o Daniel, pois não sabia como lhe explicar as razões do meu abandono.

Um dia chegou-se junto de mim e disse-me calmamente.

- Não te preocupes, há coisas na vida que não se podem explicar, há coisas na vida pelas quais pensamos sentir atracção, mas quando as enfrentamos desistimos porque realizamos que não é o nosso caminho.

Fiquei boquiaberto perante tal franqueza. Senti que tinha recebido a maior lição de amizade da minha vida. Eu que fugia para não me explicar e Daniel que me procurava para me explicar aquilo que eu não sentia forças e não era capaz de saber expressar. Senti que nesse momento estava em frente de um homem sincero e capaz de realizar as maiores acções a que um homem se possa submeter.

- Um dia estou capacitado disso, encontrarás o teu caminho e assim haverão coisas com as quais irás comungar com amor e alegria, com coerência, força e emoção, um dia verás, iràs sentir atracção por coisas e situações que virás a amar.

Voltaram a passar-se alguns anos e porque a minha vida tomou rumos diferentes à da minha familia eu não voltei a ver o Daniel, mas lembro-me que um dia fui à praia e não sei porque razão, adormeci durante horas debaixo de um sol ardente. Quando acordei a minha roupa tinha desaparecido, foi o Daniel que me veio socorrer trazendo-me um par de calças uma camisa e umas sandálias o meu corpo estava vermelho de tanto sol ter apanhado.

Mais uma vez senti por aquele homem uma admiração sem fim. Não porque me tivesse socorrido, não, mas pelo facto de ter sabido sempre estar presente. Tenho a sensação de que entre os dois se tinha formado uma cumplicidade silenciosa que eu mesmo não posso explicar, uma cumplicidade, à indiferença do dever, mas a comunhão do sentir que nos levava a estar presente quando se devia estar.

Por vezes sentia vergonha de mim mesmo ao ver aquele ser, aquele homem que corria para junto de nós como uma necessidade recíproca e a luta que a minha mãe travava para que o Daniel fosse só espirítualmente parte da família e não fisicamente.

Fisicamente, a seus olhos, o Daniel era considerado um ser diferente, que segundo ela não tinha o direito de se sentar à mesa com o resto da família. Eu sentia essa dor na sua pele, sentia-a quando ia à cozinha e via nos olhos do Daniel a falta de algo que o levaria a acreditar que sim, que fazia parte de uma família.

Quantas vezes me revoltei, quantas, quantas vezes pela noite fora senti nos meus sonhos a tristeza do Daniel, quantas vezes me perguntei de que servia o facto do Daniel chamar madrinha à minha mãe, de que servia?

Nesse dia de cacimbo o meu pai chamou-me

- Tens que fazer?

- Não!

- Então vai ao meu quarto e traz-me aquele fato azul às riscas brancas....agora vamos ali ao alfaiate.

- O Mendes veja lá se consegue deste fato fazer um para o miúdo, que na verdade já não é miúdo nenhum, mas sim um homenzinho.

E o senhor Mendes abanava a cabeça em sinal de afirmação.

Olhando para o meu pai, disse-lhe, porque tinha que dizer algo, porque sentia que o seu reconhecimento devia ter uma razão de ser.

- Não quero fato nenhum, ainda por cima com este cheiro a tabaco (o meu pai fumava cachimbo, até fumava do bom tabaco aromático,Golden Leaf, (se não me engano) mas o cheiro que estava impregnado no fato, eu não suportava.

- O Mendes então mande lavar o fato antes do o arranjar.

- É melhor, e vai ver que não vai sentir cheiro nenhum.

Depois do senhor Mendes ter tirado as medidas eu perguntei ao meu pai.

- Para que vai servir o fato?

Porque é que a teus olhos já sou um homenzinho?

- Sabes, resolvi que chegou a hora de me representares, como és o mais velho dos filhos e és já um homem quero que me representes no casamento do Daniel, como se eu estivesse presente e também porque sinto a tua amizade em relação a ele.

E assim fui o padrinho do casamento do meu grande amigo Daniel que casou com Mariama (presente de deus) uma rapariga muito simpática com uns olhos enormes cheios de vida.

Quando chegamos, eu e minha mãe à pequena casa onde a recepção era dada deparamos com uma mesa com alguma comida umas laranjadas e um aparelho de música.

Eu metido dentro daquele fato azul às riscas brancas com uma camisa branca e um laço à pintor de estátuas. A minha mãe de tacão alto fino e um fato saia-casaco, do qual não tenho memoria de pormenores alguma, pareciamos dois desembarcados do espaço.

Eu sentia-me apertado dentro daquele fato, tinha a sensação de que participava em uma corrida de sacos, o calor dava-me uma vontade de me por em cuecas, não fosse o casamento do Daniel Chatuvela e teria-o feito. Logo que tive oportunidade tirei o laço que me apertava a garganta e quase me sufocava.

Quando alguém resolveu pôr a música a tocar, o Daniel por amabilidade veio buscar a minha mãe para dançar. A mim só me dava vontade de rir ao ver a senhora metida dentro daqueles sapatos com uns tacões finos e enormes a dançar o merengue.

Eu tive que me agarrar à noiva e dançar também. Sentia-me encharcado até aos ossos, muito embora as janelas estivessem abertas, mas os miúdos da vizinhança estavam todos debruçados sobre a mesma e não deixavam entrar o pouco ar que circulava nas ruas.

Depois e por obrigações a mim desconhecidas, tive que dançar com a minha mãe, a minha camisa estava colada às costas e o casaco colado à camisa. Tinha a sensação de ter um peso enorme sobre mim, quase não podia arrastar os pés ao som daquele slow que me parecia durar uma eternidade.

Quando a noite começou a cair resolvemos voltar a casa. A verdade é que eu estava mais morto do que vivo. Depois de nos termos despedido dos recém-casados, apanhamos um taxi e fomos directos a casa onde passei duas horas debaixo do chuveiro.

Prometi a mim mesmo que se assistisse de novo a outro casamento iria em calções e camisa.

Só três anos depois é que voltei a ver o Daniel e isto muito próximo da minha partida de África para a Europa.

- É como te digo Daniel, vou-me embora para a Europa, sinto em mim que devo partir, não só porque sinto e vou à procura de algo, como também sinto que já não pertenço mais a este país. Sinto que já nada posso fazer e dar a este maravilhoso continente, sinto que devem ser vocês a fazerem aquilo que deve ser feito. Por mais que eu queira fazer, não tenho e não me sinto com o direito, ou por outra, não me deixam sentir com o direito de interferir nas resoluções que devem ser tomadas.

Não sei se me faço compreender!...

- Claro que te compreendo e é com bastante tristeza que te vou ver partir, gostaria mais de te saber a meu lado, a lutar pelos ideias da liberdade que dizem respeito a todos os homens de boa fé e de boas intenções. E que posso fazer por ti antes de partires?

Gostaria que respeitasses sempre as tuas opiniões porque são quanto a mim as verdadeiras, são aquelas que te estão agarradas à pele, gostaria que em nome da amizade que sinto por ti lutasses com convicção pelos teus ideais, que penso ser os melhores para ti e para o teu povo.

Aquilo que agora te vou pedir está para além da compreensão e pode ter significados diferentes.

- Mas diz lá!...

- Gostaria, se dentro dos teus contactos tivesses alguém que estivesse disposto a arranjar alguns diamantes que eu pudesse comprar e pudesse utilizar para meus fins na Europa.

- É verdade que há dias tive uma oferta da parte de um amigo para comprar uma pequena quantidade de diamantes, deixa isso comigo pois vou fazer todos os possiveis para te ajudar.

Passaram-se três semanas até que um dia, o Daniel vei-o ver-me e trazia consigo um pequeno tubo utilizado pelos filmes kodak, o qual tinha algumas pedras do tamanho de uma cabeça de fósforo. Ele dizia que segundo o seu amigo eram diamantes.

- Podes ficar com o tubo e podes mesmo mandar analisar os mesmos, o que te recomendo a fazer, pois eu tenho confiança em ti. A pessoa que os quer vender pede vinte mil angolares, mas eu peço-te que os mandes analisar antes de tomares uma decisão.

E assim foi, com o tubo na mão dirigi-me a um conhecido que tinha uma ourivesaria e que era amigo do meu pai, pedi-lhe se me fazia o favor de os analisar.

- Vem ver-me dentro de dois dias e terei uma resposta para te dar.

Dois dias depois perguntava eu ao amigo do meu pai, Gonzalo Pereira.

- E então senhor Gonzalo? E então?

Vai para casa e põe uma sertã ao lume, quando a mesma estiver quente depõe estas pedras dentro e verás o resultado.

- Mas o senhor Gonzalo não me pode dizer de que se trata?

- Claro que posso, conheces uma árvore que se dá no norte pelo nome de Coleira, cientificamente denominada (Cola Acuminata)?

- Não, não conheço.

- Os nativos extraiem desta árvore a seiva na qual mergulham a parte transparente dos olhos dos peixes e deixam-nos secar durante dias. Os mesmos ficam duros que nem diamantes, só o calor os pode destruir, à priori são muito parecidos com os diamantes, na dureza claro.

Depois de ter agradecido ao senhor Gonzalo fui direito a casa onde pus uma sertã ao lume.

Quando esta estava bem quente depus os supostos diamantes dentro da mesma e qual não foi o meu espanto quando passados poucos minutos os mesmos explodiam como se fossem milho aquecido (pipocas).

No dia seguinte encontrei Daniel a quem fiz parte da minha descoberta.

- Não te preocupes, sinto-me feliz por teres descoberto do que se tratava, melhor assim.

- Daniel, só tenho que te agradecer mais uma vez a disponiblidade e a boa intenção que manifestaste em ajudar-me. E não te preocupes pois posso muito bem passar sem os mesmos, era uma ajuda, mas não era nada de primordial

- Só espero que tudo te corra bem e venhas a ser feliz como o mereces. Estas foram as últimas palavras que ouvi da boca do Daniel Chatuvela.

O sol do principio da tarde batia-me de frente nos olhos e por momentos fiquei completamente ofuscado não podendo ver a reacção na cara do Daniel. Mas voltei a sentir nela a mesma tristeza que senti quando sentado na mesa da cozida olhei directamente nos seus olhos.

Depois de o ter abraçado esperei na esquina até o ver desaparecer com uma mágoa no peito, com ele tinha desaparecido o encanto, a beleza que o continente africano tinha criado dentro e fora de mim.

Duas semanas mais tarde embarquei com destino ao continente.

Muitas vezes sentado na proa do navio e olhando o horizonte sem fim que se misturava com as águas azuis e as nuvens brancas, eu pensei no Daniel e não sei porquê veio-me ao espírito uma frase que "Mahtma Gandhi" havia dito:

A liberdade não tem qualquer valor se não inclui a liberdade de errar.

Anos mais tarde falando com uns amigos que tinham vindo de África e que tinham conhecido o Daniel, perguntei por ele.

Pensamos que morreu em combate, não temos a certeza, mas tudo indica que sim.

Nunca mais o vimos ou ouvimos falar dele, as últimas notícias que tivemos é que era um dos quadros do MPLA.

Só espero que se isso aconteceu que tenha morrido feliz e com a convicção que a sua morte foi útil.

Se, de facto isso não aconteceu, só espero que seja feliz e que de vez em quando se lembre de mim como eu me lembro dele.



Buitikizi Mu Ntambu

"Todo o homem, por mais feliz que seja, tem direito à liberdade"



Obrigado Daniel Chatuvela.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br