Ele sabia que aquele dia o marcaria para sempre. Ele sabia que aquele dia
se representava como que um fim, seria talvez o afastamento definitivo entre
ele e a familia adoptiva, entre ele e as memorias que o tempo lhe deixou.
Encostado à velha palmeira que tinhamos no jardim Daniel Chatuvela parecia
fundir-se com a mesma, só o fumo do cigarro que fumava era perceptível.
Alto, magro com umas feições que pareciam ter sido talhadas por
um escultor africano, Daniel apresentava-se como um homem cujo tempo não
tinha ou dava a impressão de não ter passado por ele.
Senti nos seus olhos quando o procurei no jardim uma tristeza que nunca pude
detectar naquele olhar. Parecia-me distante, ausente com o seu pensar, senti
naquele momento o que aquele homem talvez nunca tenha sentido, a angústia,
a indiferença pela vida e pelo tempo.
Naquele dia depois de ter terminado a escola corria eu, como sempre o fazia,
em direcção da minha casa acompanhado pela nossa cadela mara.
Entrando no jardim e indo direito à porta da cozinha, fui de encontro
aquelas pernas altas e duras que aí se encontravam.
Caí e olhando para cima para ver o que tinha acontecido deparei com aquele
rosto risonho, amável e agradável, que se encontravada no meu
campo de visão.
Minha mãe do interior olhava despreocupada para a cena.
- Entra, entra e vai arrumar os teus livros.
Ao estender-me a mão para me ajudar a levantar, senti uma sensação
de proteção ao agarra-la como nunca tinha sentido.
- Quem é mãe?
- Deixa lá quem é, não tens nada que saber!..
É um amigo do teu pai.
- Daniel. Disse com uma voz segura , estranha e melódica ao mesmo tempo.
Assim fiz pela primeira vez conhecimento com Daniel Chatuvela.
O sol era quente, a sombra era pouca, o silêncio da tarde fazia-se sentir,
dava a sensação de que o bairro dormia cansado pelos fortes raios
quentes do sol.
Sentado na soleira da porta da cozinha, Daniel parecia sentir o ar e admirar
as poucas nuvens que se deslocavam no céu.
- Onde vais Daniel?
Estás tão bem vestido, até tens uns sapatos novos!...
- O seu pai, menino, está a chegar e depois vamos à missão
de S. Paulo!...
- Á missão?...E que vais fazer à missão?
- Não sei menino! O seu pai disse que hoje íamos à missão
acompanhados da sua mãe.
E lá foram os três metidos naquele Ford verde antigo, que fazia
um barulho infernal quando o seu motor a diesel se punha a trabalhar.
Quando pela tarde regressaram, corri até junto deles e perguntei:
- E então que foram fazer?
- Cala-te rapaz não é nada contigo.
Olhando para o Daniel compreendi e então não fiz mais perguntas.
- O mulher podes arranjar aí algo para comer, pois tenho fome e tu Daniel
não tens fome?
- Tenho sim padrinho.
- Padrinho?
O meu pai tinha oferecido no dia do baptizado do Daniel, um relógio usado
que ele meteu dentro de uma caixa de fósforos.
Nunca compreendi porque é que ele o metia dentro da caixa de fósforos
e um dia perguntei-lhe:
- O Daniel sabes que os relógios são para usar no pulso?
- Sim sei, mas não me ageito, é que nunca tive um e depois nunca
tive o hábito de olhar para o pulso para ver as horas.
É sem importancia para mim as horas!
Que me interessa que sejam dez ou cinco, compreendes?
- Ah!...
Só muito mais tarde é que compreendi porque é que o Daniel
tinha aquela sensação de que o tempo estava fechado dentro de
uma caixa de fósforos. Porque é que ele o fechou dentro da caixa,
porque é que o Daniel fugia do tempo que lhe queriam impor.
Era verdade!
Muitas vezes ouvi o meu pai a dizer-lhe:
- Vê se estás a horas Daniel.
Não era porque o quizessem obrigar a entrar dentro do tempo, não,
era talvez porque mecanicamente se dizia isso a toda a gente.
O Daniel olhava para o céu e sabia exactamente o que tinha que fazer
e quando o devia fazer. Assim era a sua percepção do tempo, o
movimento das nuvens, talvez, ou a claridade do sol?
Sentando-se junto de mim disse:
- O teu pai para mim tem sido o pai que perdi, por isso queria que eu fizesse
parte da familia. Para que isso pudesse acontecer fomos à missão
de S. Paulo, onde eu fui baptizado e o teu pai e a tua mãe foram os meus
padrinhos.
Então compreendi!
Agarrando-me ao seu pescoço senti um enorme desejo de lhe dar um beijo.
- Então quer dizer que vais viver em nossa casa?
Fiquei tão feliz ao saber que o Daniel faria parte da nossa familia que
nessa noite só sonhei com isso.
No dia seguinte encontrei de novo o Daniel sentado à porta da cozinha
com um copo de alumínio na mão bebendo café.
- Então Daniel que vais fazer hoje?
- Não sei! A sua mãe, menino, é que sabe.
- Eu vou para a escola queres vir esperar-me depois desta acabar?
-Vou pedir à senhora que me deixe ir.
- Então até logo.
E lá estava ele com as suas compridas pernas encostado ao muro à
minha espera.
- E então Daniel queres vir jogar futebol ?
- Não menino, não posso, pedi à sua mãe que me deixasse
vir busca-lo mas ela disse para não demorar.
- Daniel porque é que não me chamas pelo meu nome?
- O menino sabe!...
- Então vamos fazer um pacto, quando estivermos os dois, tu chamas-me
pelo meu nome, quando estiveres junto da minha mãe, então sim
chama-me, menino!
- E de onde vens tu Daniel?
- Eu venho de uma pequena povoação junto das margens do rio Cuango,
muito perto das quedas Guilherme em Caungula, mas sou Quimbundo, e dizia isto
com um ar muito orgulhoso e fiel em o ser.
É verdade que o povo Quimbundo, era um povo trabalhador e muito orgulhoso.
- E quantos anos tens?
- Não sei, nunca o soube e nunca foi importante para mim sabe-lo. Sei
que nasci em noite de lua cheia e quando nasci o meu pai já tinha dois
filhos, um de cada mulher. Ele trabalhava na mina.
Nunca foi importante para nós o tempo, nunca foi importante saber quando
nascemos tão pouco quando morremos.
O meu pai um dia teve que ir trabalhar para os lados das quedas então
a familia não teve outra escolha senão de o acompanhar.
- E porques vieste embora?
Baixou a cabeça e pude ver no seu olhar uma tristesa quase sem fim. As
palavras que saíam da sua boca pareciam que se atropelavam umas às
outras.
- Não queres contar, não contes Daniel.
- Nao é isso, é que sinto uma pressão dentro de mim que
não me deixa conjugar o pensamento.
O meu irmão mais velho, a minha mãe e o meu pai trabalhavam na
mina, um dia apareceu à porta da cubata o encarrago da mesma acompanhado
do soba. Olhei para ele e senti um frio enorme dentro de mim. Primeiro pensei
que me vinha buscar para eu começar a trabalhar na mesma, depois pensei
que algo se tinha passado. E assim foi, algo se passou, todos morreram na mina.
Fiquei gelado sem forças para reagir, fiquei como morto, só compreendi
que me iam enviar para os missionários na capital, dado que não
tinha outra familia.
A mesma pergunta me fizeram quando cheguei ao colégio dos missionários:
Quantos anos tens? Quando nasceste?
- Não sei, dizia eu!...
Pois é dizia o missionário mais velho, esta gente nunca foi recenseada,
ora bem abre lá a boca.
De boca aberta e com os dois missionários a tentar espreitar para dentro
da mesma,
Daniel não compreendia o que estava a viver.
É como lhe digo irmão Zacarias, pelos dentes parece-me que deve
ter mais ou menos doze anos.
- É possivel irmão Berto, é possivel, mas não acha
que está um pouco atrofiado para a idade?
- Não!
- Lá grande é ele, mas está muito magro.
- Como te chamas?
- Daniel Chatuvela.
- Pelo menos tem nome!
- Abra uma ficha com o nome e ponha
idade doze.
- E data de nascimento?
- Ponha a que o irmão quizer.
- Que tal oito de Agosto?
- Pronto então vais ficar registado assim: Nome: Daniel Chatuvela nascido
nas margens do Cuango a oito de Agosto e tens doze anos de idade.
- E assim fiquei registado no reino da papelada, portanto hoje tenho vinte e
cinco anos.
-Sabes quantos anos tenho eu Daniel?
- Não!
- Tenho dez anos e meio.
- E gostaste de ter estado no colégio com os missionários?
- Gostei sim, foi aí que aprendi a ler e a escrever, ensinaram-me muita
coisa, mas um dia o irmão Berto chamou-me ao escritório e disse-me:
Daniel não te podemos ter mais na missão, já tens vinte
anos e por conseguinte é tempo que vás à procura da tua
própria vida. Senti novamente o mesmo frio que tinha sentido no dia em
que a minha familia tinha desaparecido.
Tens aqui esta direcção vai e fala com o senhor Duarte pois ele
tem um emprego para ti.
- E assim fui lançado no mundo que seria a minha casa.
- E como conheceste o meu pai?
- Uma noite, por volta das sete e meia dirigia-me eu a casa quando avistei um
carro parado ao lado da estrada, fora estava um sujeito que me pareceu bastante
nervoso dando pontapés na roda do carro que estava furada, dizendo: ora
bolas, logo agora é que isto devia acontecer. Aproximando-me perguntei:
- Desculpe, posso ajudar?
Olhando-me de cima para baixo o teu pai disse:
- Podes, vai à mala do carro, traz-me o macaco e o pneu suplente.
- Macaco? Patrão o pneu está aqui, mas não vi macaco, não,
juro.
Rindo o teu pai levou-me de novo até junto da mala do carro e apontando
para um ferro com uma espécie de grande parafuso disse:
- Vês, isto é um macaco. Mete-se debaixo do carro e com esta chave
vai-se apertando até que o carro suba. Assim podemos sacar a roda furada
e substituí-la por uma outra que esteja em condições. Vamos
então mudar a roda.
- Gostei da forma como o teu pai soube explicar-me a situação.
Depois de termos mudado o pneu, o teu pai perguntou:
- Para onde vais?
- Eu fico logo ali...
- Então pega e metendo-me vinte angolares na mão disse:
- Se algum dia precisares de algo vai ter comigo à fábrica de
vidros e pergunta pelo Sr. Maxado.
- Obrigado e boa noite.
- Como não gostava muito do trabalho que o Sr. Duarte me tinha dado,
resolvi passados dois dias ir ter com o teu pai.
A fábrica de vidros estava situada no Cacuaco, um pouco mais à
frente.
Chegando à entrada da fàbrica o guarda que estava na guarita perguntou-me.
- Que queres?
- Queria falar com o senhor Maxado.
- Espera aí um bocado.
- Podes entrar, vês aquele pavilhão à esquerda?
- Vejo sim.
- Aí são os escritórios, quando chegares entra e pergunta
pelo senhor Maxado.
- Então Daniel o que te traz por cá?
- Como o senhor Maxado me disse se precisasse de algo...
- Muito bem, espera comigo até à hora de fechar os escritórios,
depois vamos à secção de pirogravura para falarmos com
o encarregado que necessita de uma pessoa.
E assim foi como conheci o teu pai e vim para tua casa.
Daniel vinha à nossa casa quase todos os dias pois passou a trabalhar
na fábrica por turnos e todos os dias vinha ajudar a minha mãe
naquilo que era preciso. Arranjava o jardim, ia às compras, saía
com os meus irmãos. Não vivia em nossa casa, vivia no muceque
Sambizanga, segundo ele vivia numa casa pequena com mais dois amigos do trabalho.
Os anos foram passando, já eu tinha dezoito anos quando um dia o Daniel
chegou junto de mim e disse:
- Queres vir comigo ao muceque?
- Para quê?
- Queria mostrar-te uma coisa.
- E quando queres ir?
- Pode ser amanhã, que é domingo.
E là fomos até ao muceque.
Chegados aí, levou-me a uma casa pequena, cheia de bancos, com uma mesa
ao fundo e do lado esquerdo aquilo que disse ser um piano.
- Que casa é esta Daniel?
- É uma espécie de igreja protestante, onde se reza e canta durante
a cerimónia
- Nunca ouvi falar de tal.
- É verdade! Foi o meu amigo que me trouxe e gostei imenso de ter participado
na cerimónia.
- Como tu me tinhas dito um dia que gostava de aprender a tocar um instrumento
eu pensei que talvez gostasses de tocar piano.
- Sim é verdade que gostava. Mas Daniel não tenho dinheiro para
poder pagar a um professor para me ensinar!...
- Não te preocupes já falei com o pastor, ele mesmo, o senhor
Gamba (guerreiro) se propôs a dar-te lições gratuítas.
Depois de me ter apresentado ao pastor Gamba e a seu filho Lutalo (guerreiro),
ficamos entendidos de que começaria as minhas lições na
semana seguinte.
- Confesso Daniel que não sei como te agradecer.
- Não tens nada que agradecer, só espero que gostes.
E na semana seguinte lá estava eu sentado num banco ouvindo as explicações
do pastor Gamba.
- Conheces as notas?
- Conheço sim.
- Então como vês, o piano tem teclas brancas e negras , as brancas
são as notas cheias e as pretas as meias notas.
Não toquei no piano só ouvi a lição teórica
do mestre Gamba.
Confesso que ainda hoje quando olho para um piano vejo aquele homem gordo, sorridente
e com os dentes brancos em evidência quando abria a boca. Com os dedos
compridos e cheios a pousarem-se como penas de pássaro suavemente nas
teclas do piano fazendo sair do mesmo sons magnificamente melódicos e
encantadores.
Sinto-me culpado por ter abandonado quem com tanto entusiasmo se prontificou
a mostar-me o segrego do saber criar melodias harmoniosas e interpretar música.
Sinto-me culpado por não ter sabido aproveitar a oportunidade que tive
de aprender a tocar piano numa igreja protestante, mas uma coisa ficou comigo
até ao fim, fui sempre um grande amigo do senhor Gamba e de seu filho
Lutalo.
As razões pelas quais perdi o interesse de aprender a tocar piano, não
as conheço, talvez pela juventude selvagem que encerrava dentro de mim,
talvez pela grande febre que tinha em viver intensamente essa juventude, sem
me preocupar em sublimar o lado místico do meu ser. Talvez não
tenha sabido aproveitar a mão que me estendiam, talvez!!!!
Durante um periodo senti-me tão mal que evitava encontrar-me com o Daniel,
pois não sabia como lhe explicar as razões do meu abandono.
Um dia chegou-se junto de mim e disse-me calmamente.
- Não te preocupes, há coisas na vida que não se podem
explicar, há coisas na vida pelas quais pensamos sentir atracção,
mas quando as enfrentamos desistimos porque realizamos que não é
o nosso caminho.
Fiquei boquiaberto perante tal franqueza. Senti que tinha recebido a maior lição
de amizade da minha vida. Eu que fugia para não me explicar e Daniel
que me procurava para me explicar aquilo que eu não sentia forças
e não era capaz de saber expressar. Senti que nesse momento estava em
frente de um homem sincero e capaz de realizar as maiores acções
a que um homem se possa submeter.
- Um dia estou capacitado disso, encontrarás o teu caminho e assim haverão
coisas com as quais irás comungar com amor e alegria, com coerência,
força e emoção, um dia verás, iràs sentir
atracção por coisas e situações que virás
a amar.
Voltaram a passar-se alguns anos e porque a minha vida tomou rumos diferentes
à da minha familia eu não voltei a ver o Daniel, mas lembro-me
que um dia fui à praia e não sei porque razão, adormeci
durante horas debaixo de um sol ardente. Quando acordei a minha roupa tinha
desaparecido, foi o Daniel que me veio socorrer trazendo-me um par de calças
uma camisa e umas sandálias o meu corpo estava vermelho de tanto sol
ter apanhado.
Mais uma vez senti por aquele homem uma admiração sem fim. Não
porque me tivesse socorrido, não, mas pelo facto de ter sabido sempre
estar presente. Tenho a sensação de que entre os dois se tinha
formado uma cumplicidade silenciosa que eu mesmo não posso explicar,
uma cumplicidade, à indiferença do dever, mas a comunhão
do sentir que nos levava a estar presente quando se devia estar.
Por vezes sentia vergonha de mim mesmo ao ver aquele ser, aquele homem que corria
para junto de nós como uma necessidade recíproca e a luta que
a minha mãe travava para que o Daniel fosse só espirítualmente
parte da família e não fisicamente.
Fisicamente, a seus olhos, o Daniel era considerado um ser diferente, que segundo
ela não tinha o direito de se sentar à mesa com o resto da família.
Eu sentia essa dor na sua pele, sentia-a quando ia à cozinha e via nos
olhos do Daniel a falta de algo que o levaria a acreditar que sim, que fazia
parte de uma família.
Quantas vezes me revoltei, quantas, quantas vezes pela noite fora senti nos
meus sonhos a tristeza do Daniel, quantas vezes me perguntei de que servia o
facto do Daniel chamar madrinha à minha mãe, de que servia?
Nesse dia de cacimbo o meu pai chamou-me
- Tens que fazer?
- Não!
- Então vai ao meu quarto e traz-me aquele fato azul às riscas
brancas....agora vamos ali ao alfaiate.
- O Mendes veja lá se consegue deste fato fazer um para o miúdo,
que na verdade já não é miúdo nenhum, mas sim um
homenzinho.
E o senhor Mendes abanava a cabeça em sinal de afirmação.
Olhando para o meu pai, disse-lhe, porque tinha que dizer algo, porque sentia
que o seu reconhecimento devia ter uma razão de ser.
- Não quero fato nenhum, ainda por cima com este cheiro a tabaco (o meu
pai fumava cachimbo, até fumava do bom tabaco aromático,Golden
Leaf, (se não me engano) mas o cheiro que estava impregnado no fato,
eu não suportava.
- O Mendes então mande lavar o fato antes do o arranjar.
- É melhor, e vai ver que não vai sentir cheiro nenhum.
Depois do senhor Mendes ter tirado as medidas eu perguntei ao meu pai.
- Para que vai servir o fato?
Porque é que a teus olhos já sou um homenzinho?
- Sabes, resolvi que chegou a hora de me representares, como és o mais
velho dos filhos e és já um homem quero que me representes no
casamento do Daniel, como se eu estivesse presente e também porque sinto
a tua amizade em relação a ele.
E assim fui o padrinho do casamento do meu grande amigo Daniel que casou com
Mariama (presente de deus) uma rapariga muito simpática com uns olhos
enormes cheios de vida.
Quando chegamos, eu e minha mãe à pequena casa onde a recepção
era dada deparamos com uma mesa com alguma comida umas laranjadas e um aparelho
de música.
Eu metido dentro daquele fato azul às riscas brancas com uma camisa branca
e um laço à pintor de estátuas. A minha mãe de tacão
alto fino e um fato saia-casaco, do qual não tenho memoria de pormenores
alguma, pareciamos dois desembarcados do espaço.
Eu sentia-me apertado dentro daquele fato, tinha a sensação de
que participava em uma corrida de sacos, o calor dava-me uma vontade de me por
em cuecas, não fosse o casamento do Daniel Chatuvela e teria-o feito.
Logo que tive oportunidade tirei o laço que me apertava a garganta e
quase me sufocava.
Quando alguém resolveu pôr a música a tocar, o Daniel por
amabilidade veio buscar a minha mãe para dançar. A mim só
me dava vontade de rir ao ver a senhora metida dentro daqueles sapatos com uns
tacões finos e enormes a dançar o merengue.
Eu tive que me agarrar à noiva e dançar também. Sentia-me
encharcado até aos ossos, muito embora as janelas estivessem abertas,
mas os miúdos da vizinhança estavam todos debruçados sobre
a mesma e não deixavam entrar o pouco ar que circulava nas ruas.
Depois e por obrigações a mim desconhecidas, tive que dançar
com a minha mãe, a minha camisa estava colada às costas e o casaco
colado à camisa. Tinha a sensação de ter um peso enorme
sobre mim, quase não podia arrastar os pés ao som daquele slow
que me parecia durar uma eternidade.
Quando a noite começou a cair resolvemos voltar a casa. A verdade é
que eu estava mais morto do que vivo. Depois de nos termos despedido dos recém-casados,
apanhamos um taxi e fomos directos a casa onde passei duas horas debaixo do
chuveiro.
Prometi a mim mesmo que se assistisse de novo a outro casamento iria em calções
e camisa.
Só três anos depois é que voltei a ver o Daniel e isto muito
próximo da minha partida de África para a Europa.
- É como te digo Daniel, vou-me embora para a Europa, sinto em mim que
devo partir, não só porque sinto e vou à procura de algo,
como também sinto que já não pertenço mais a este
país. Sinto que já nada posso fazer e dar a este maravilhoso continente,
sinto que devem ser vocês a fazerem aquilo que deve ser feito. Por mais
que eu queira fazer, não tenho e não me sinto com o direito, ou
por outra, não me deixam sentir com o direito de interferir nas resoluções
que devem ser tomadas.
Não sei se me faço compreender!...
- Claro que te compreendo e é com bastante tristeza que te vou ver partir,
gostaria mais de te saber a meu lado, a lutar pelos ideias da liberdade que
dizem respeito a todos os homens de boa fé e de boas intenções.
E que posso fazer por ti antes de partires?
Gostaria que respeitasses sempre as tuas opiniões porque são quanto
a mim as verdadeiras, são aquelas que te estão agarradas à
pele, gostaria que em nome da amizade que sinto por ti lutasses com convicção
pelos teus ideais, que penso ser os melhores para ti e para o teu povo.
Aquilo que agora te vou pedir está para além da compreensão
e pode ter significados diferentes.
- Mas diz lá!...
- Gostaria, se dentro dos teus contactos tivesses alguém que estivesse
disposto a arranjar alguns diamantes que eu pudesse comprar e pudesse utilizar
para meus fins na Europa.
- É verdade que há dias tive uma oferta da parte de um amigo para
comprar uma pequena quantidade de diamantes, deixa isso comigo pois vou fazer
todos os possiveis para te ajudar.
Passaram-se três semanas até que um dia, o Daniel vei-o ver-me
e trazia consigo um pequeno tubo utilizado pelos filmes kodak, o qual tinha
algumas pedras do tamanho de uma cabeça de fósforo. Ele dizia
que segundo o seu amigo eram diamantes.
- Podes ficar com o tubo e podes mesmo mandar analisar os mesmos, o que te recomendo
a fazer, pois eu tenho confiança em ti. A pessoa que os quer vender pede
vinte mil angolares, mas eu peço-te que os mandes analisar antes de tomares
uma decisão.
E assim foi, com o tubo na mão dirigi-me a um conhecido que tinha uma
ourivesaria e que era amigo do meu pai, pedi-lhe se me fazia o favor de os analisar.
- Vem ver-me dentro de dois dias e terei uma resposta para te dar.
Dois dias depois perguntava eu ao amigo do meu pai, Gonzalo Pereira.
- E então senhor Gonzalo? E então?
Vai para casa e põe uma sertã ao lume, quando a mesma estiver
quente depõe estas pedras dentro e verás o resultado.
- Mas o senhor Gonzalo não me pode dizer de que se trata?
- Claro que posso, conheces uma árvore que se dá no norte pelo
nome de Coleira, cientificamente denominada (Cola Acuminata)?
- Não, não conheço.
- Os nativos extraiem desta árvore a seiva na qual mergulham a parte
transparente dos olhos dos peixes e deixam-nos secar durante dias. Os mesmos
ficam duros que nem diamantes, só o calor os pode destruir, à
priori são muito parecidos com os diamantes, na dureza claro.
Depois de ter agradecido ao senhor Gonzalo fui direito a casa onde pus uma sertã
ao lume.
Quando esta estava bem quente depus os supostos diamantes dentro da mesma e
qual não foi o meu espanto quando passados poucos minutos os mesmos explodiam
como se fossem milho aquecido (pipocas).
No dia seguinte encontrei Daniel a quem fiz parte da minha descoberta.
- Não te preocupes, sinto-me feliz por teres descoberto do que se tratava,
melhor assim.
- Daniel, só tenho que te agradecer mais uma vez a disponiblidade e a
boa intenção que manifestaste em ajudar-me. E não te preocupes
pois posso muito bem passar sem os mesmos, era uma ajuda, mas não era
nada de primordial
- Só espero que tudo te corra bem e venhas a ser feliz como o mereces.
Estas foram as últimas palavras que ouvi da boca do Daniel Chatuvela.
O sol do principio da tarde batia-me de frente nos olhos e por momentos fiquei
completamente ofuscado não podendo ver a reacção na cara
do Daniel. Mas voltei a sentir nela a mesma tristeza que senti quando sentado
na mesa da cozida olhei directamente nos seus olhos.
Depois de o ter abraçado esperei na esquina até o ver desaparecer
com uma mágoa no peito, com ele tinha desaparecido o encanto, a beleza
que o continente africano tinha criado dentro e fora de mim.
Duas semanas mais tarde embarquei com destino ao continente.
Muitas vezes sentado na proa do navio e olhando o horizonte sem fim que se misturava
com as águas azuis e as nuvens brancas, eu pensei no Daniel e não
sei porquê veio-me ao espírito uma frase que "Mahtma Gandhi"
havia dito:
A liberdade não tem qualquer valor se não inclui a liberdade
de errar.
Anos mais tarde falando com uns amigos que tinham vindo de África e que
tinham conhecido o Daniel, perguntei por ele.
Pensamos que morreu em combate, não temos a certeza, mas tudo indica
que sim.
Nunca mais o vimos ou ouvimos falar dele, as últimas notícias
que tivemos é que era um dos quadros do MPLA.
Só espero que se isso aconteceu que tenha morrido feliz e com a convicção
que a sua morte foi útil.
Se, de facto isso não aconteceu, só espero que seja feliz e que
de vez em quando se lembre de mim como eu me lembro dele.
Buitikizi Mu Ntambu
"Todo o homem, por mais feliz que seja, tem direito à liberdade"
Obrigado Daniel Chatuvela.