Estava escuro. A noite ia já avançada. Passavam das três
horas da manhã. Num fiat punto de 2000, azul escuro, rebaixado
e com duas potentes colunas instaladas na bagageira, para impressionar quando
cruzava as ruas com a música vários decibéis acima do suportado
pelo ouvido normal, um grupo de amigos aproveitava o sábado, o tão
ansiado sábado depois de uma semana de aulas.
Gui, o mais velho do grupo, conduzia o carro, fazendo manobras arriscadas de
propósito só para arreliar as raparigas. A seu lado, Pedro consolava-se
com uma garrafa de cerveja comprada numa dessas bombas de gasolina, em que bastava
ter dinheiro para comprar bebidas alcoólicas e ninguém pedia um
documento de identificação. Nos banco de trás, Joana e
Lucas namoravam, interrompidos apenas pelas curvas mais apertadas, e Vânia
embalava a irmã de Pedro, tentando que esta adormecesse apesar da algazarra
que ia dentro do carro.
- Porra, Gui, vai mais devagar! A miúda daqui a bocado vomita para cima
de mim!- gritou Vânia, lançado olhares recriminatórios a
Pedro, por este continuar a beber cerveja como se não fosse nada com
ele.
Gui olhou-a pelo espelho retrovisor. Abriu a boca naquele sorriso que sabia
derretê-la em três minutos. Há muito tempo que Vânia
tinha uma paixão secreta por Gui, que deixara de ser secreta a partir
do dia em que contara a Joana. Sabendo da verdade que se escondia por detrás
dos olhares languidos que Vânia lançava a Gui quando ele sorria,
Joana não conseguira esconder a confissão e apressara-se a contar
tudo ao objecto de tal paixão. Vânia deixara de confiar na Joana,
Lucas ficara chateado de ver a namorada aos segredos com o melhor amigo, Pedro
sentira-se excluído de todo aquele frenesim hormonal, Gui apercebera-se
de que tinha em Vânia uma oportunidade de aparecerem feitas aquelas coisas
mais chatas que ele não gostava de fazer, como os trabalhos de Biologia
ou a lavagem do carro, e Vânia sentira-se tão envergonhada que
durante dias não fora capaz de olhar Gui no olhos- mas continuavam todos
amigos.
- Vânia, fofinha, aguenta só um bocadinho.- disse Gui, num falsamente
carinhoso- Estamos quase a chegar ao bairro do Pedro. Depois ele vai para casa
e nós podemos curtir o resto da noite!
Vânia parou de resmungar e apertou a criança ainda mais contra
si. No seu íntimo, acalentava a esperança de que, ficando sozinho
com ela, enquanto Lucas e Joana e perdiam no corpo um do outro, Gui a beijasse,
nem que fosse só para passar o tempo. Vânia não se importava.
Só queria poder ter Gui nos braços, estar perto daqueles olhos
verdes, despentear ainda mais o cabelo aloirado e beijar aqueles lábios
inspiradores de vários poemas escrito na aula de Matemática. Encorajada
por essa expectativa, Vânia empenhou-se ainda mais na tarefa de adormecer
a menina. Mas esta não parava de chorar. Aborrecido, Pedro inclinou-se
para trás, lançando um forte bafo de cerveja, e disse-lhe:
- Mariana, pára de chorar! Se não chorares no caminho até
casa, compro-te um chocolate.
Os olhitos da menina de cinco anos arregalaram-se. O choro diminuiu para uns
soluços ocasionais e acabou por dormitar, aquecida pelo abraço
de Vânia, cuja imaginação voava uma horas mais à
frente, fantasiando o beijo romântico que, tinha a certeza, Gui lhe iria
dar.
O carro deu uma guinada. Joana descolou os seus lábios dos de Lucas,
para perguntar, alarmada:
- Gui, que se passa?
- Não é nada, Joana!- gritou, arrancando a garrafa de cerveja
das mãos de Pedro e dando um grande golo- És uma desconfiada,
tu! Para a próxima vais a pé, porra!
Joana calou-se, ofendida, enfiando-se debaixo do braço de Lucas, à
espera que este a defendesse. Como ele ainda lhe sussurrou um "Cala-te!",
Joana virou a cabeça para a janela, amuada.
Gui voltou a beber mais cerveja. Vânia abriu a boca para o lembrar da
promessa de não beber quando conduzia, para a fechar logo a seguir, ao
ver o ar carrancudo que lhe assombrava o rosto. Começou a cantarolar
uma música infantil ao ouvido de Mariana, mais para se acalmar a si própria
do que à criança.
Tudo o resto foi confuso e precipitado. O carro deu uma guinada de novo, mas
desta vez os reflexos de Gui não foram suficientemente rápidos.
O fiat resvalou para a berma e aproximou-se da beira do desnível.
Ao ver a altura entre a estrada e o chão, lá em baixo, Pedro entrou
em pânico e agarrou no volante ao mesmo tempo que Gui. Joana gritava,
Lucas blasfemava, Mariana chorava e Vânia continuava calada, de olhos
arregalados, com uma expressão aterrorizada no rosto.
Houve um clarão na noite escura. Um estrondo distante, o embate contra
o solo. Pedro sentiu uma forte dor na cabeça e um líquido quente
escorrer-lhe pela testa. Abriu os olhos. A princípio tudo era um grande
buraco negro. Depois os contornos foram-se tornando distintos. Gui jazia inanimado,
cabeça contra o volante, um fio de sangue saindo do nariz. Lucas e Joana
permaneciam agarrados, mas ambos contorcidos numa posição estranha,
impossível para alguém cujos ossos estivessem intactos. Parecia
um retrato tirado dum filme de terror, um casal, qual Frankenstein e a sua noiva,
esperando juntos a sua boleia para o cemitério. O cabelo comprido de
Vânia tapava-lhe o rosto, pelo que Pedro não conseguia ver a sua
cara, mas continuava imóvel, portanto devia estar também inconsciente.
A última a ser diagnosticada pelo olhar de Pedro foi a sua irmã
Mariana. Sentiu um apertão no coração e as lágrimas
arderem-lhe nos olhos e misturarem-se com o sangue. A irmã, que, para
seus pais, estava supostamente deitada, aninhada no seu enorme urso de peluche,
tinha o rosto coberto de sangue e um enorme pedaço de vidro cravado na
perna. Já não chorava e Pedro não conseguia detectar nenhum
sinal de respiração.
Tentou alcançar a irmã, mas o estado do carro e o cinto de segurança,
que colocara mais por hábito, de tanto ser pressionado pelo pai para
o pôr quando viajava de carro com a família, do que por segurança,
impediam-no. Debateu-se violentamente, mas uma dor intensa nas costelas fez
com que parasse. Rompeu num choro silencioso. As lágrimas corriam-lhe
pelo rosto apressadas, mas a garganta não conseguia soltar qualquer grito.
Como é que fora capaz de trazer a irmã na saída com os
amigos? Só conseguia pensar no que os pais iam dizer. Iam pô-lo
de castigo para sempre. Isto se... Na melhor das hipóteses, Pedro ficaria
de castigo. Nem queria pensar na outra probabilidade.
Ainda mais que a cabeça, doía-lhe a alma de tanto sentimento de
culpa. Se ao menos não tivesse aceitado o convite dos amigos, se tivesse
ficado em casa a ver um filme, com a irmã a brincar no tapete da sala,
se não se tivesse oferecido para tomar conta da irmã, seduzido
pelo dinheiro que os pais poupariam na ama, e lhe dariam a ele, para comprar
os ténis que vira no centro comercial. Se, se, se... A cada batimento
de coração, um grande "SE" ressoava na sua cabeça.
Pedro não sabe quanto tempo durou o seu choro abafado. A certa altura,
ouviu um gemido vindo da sua esquerda. Olhou para o lado e viu Gui cabecear,
recuperando os sentidos.
- Puto, que é que aconteceu?- perguntou Gui numa voz fraca.
Pedro não respondeu. Olhou-o com desprezo e raiva. Era demasiado óbvio
o que tinha acontecido! Virou a cabeça o mais que as dores lhe permitiram
e ficou a fitar a escuridão, tentando controlar o enjoo. Sentiu o amigo
remexer-se no lugar e pode constatar que ele observava o estado dos amigos,
pois logo a seguir Gui rebentou em pranto.
- Bolas, puto, que é que aconteceu? Eu controlei o carro tão bem
a noite toda!- soluçou Gui, mais para si mesmo do que para Pedro.
Após ter formulado a pergunta, a cabeça de Gui voltou a tombar
sobre o volante. Perdera de novo o sentidos. Pedro sentiu-se angustiado. Apesar
do ressentimento para com o amigo, era sempre bom tê-lo consciente, pois
não sabia quanto tempo iam ficar todos ali, presos no carro, até
que os socorressem.
Ouviu um barulho de sirenes, seguido de clarões azuis. A ambulância
chegara. Pedro lançou um último olhar à irmã e aos
amigos. Mesmo sem acreditar em Deus, pediu-Lhe que os salvasse. Dava-lhe jeito
que existisse alguém omnipotente lá em cima e que tivesse o bom
senso de salvar, pelo menos, Mariana, que ainda era uma criança.
Antes de fechar os olhos e desfalecer, Pedro pode ouvir uma voz distante, metálica
: "Acidente na estrada 26 com um grupo de adolescentes. Precisamos de reforços.".