Ernani era dotado de grande timidez. A mulher já lhe havia falado:
- Compra um sapato, hôme, nem parece que você é trabalhador.
Mal sabia a mulher que o maior problema de Ernani não era o dinheiro,
mas como trazer os sapatos. Os dias passavam, o pagamento saiu. Tomou coragem,
entrou na sapataria, os espelhos da vitrina refletiam seu ar desajeitado. O
balconista, muito educado, ofereceu os sapatos. Nada, Ernani não se decidia,
apenas negava com sinal de cabeça. Após longo tempo decidiu.
O balconista educadamente, perguntou se o sapato iria na caixa. Ernani disse
um "não" assustado. O balconista insistia, achando que Ernani
queria ser educado ao extremo, pôr isso recusava uma caixa, e talvez achasse
que seria trabalhoso embrulhar. Ernani dizia apenas "não".
O balconista foi até a seção de embrulhos e disse:
- Faz um embrulho caprichado, põe aquele laço em forma de flor,
que o freguês merece.
Ao chegar à seção de embrulhos, Ernani sentiu o estômago
embrulhado, o sangue colorir-lhe o rosto suado, passou as mãos pêlos
braços em atitude nervosa. Pensou: como vou sair com esse embrulho de
sapatos? Ainda mais o número 44... e que caixa!.
Saiu da loja, abraçou a caixa, era grande demais, colocou-a sob o braço
suado, ficava de asas aberta, ridículo. Depositou-a sobre a mão,
mas lembrou-se do gesto do garçom, parecia que estava servindo uma bandeja.
Não sabia como levar aquela caixa, que a essa altura pesava-lhe cada
vez mais.
Entrou num bar da esquina. Suava, olhou para os lados, a vergonha fazia-o ofegante.
Deixou a caixa no canto do balcão, pediu uma cerveja, pensava num jeito
de sair dali com aquela maldita caixa de sapatos. Arquitetou mil planos. Deixaria
a caixa no bar como esquecimento, se pudesse, iria de táxi, mas quase
nunca andava de taxi, haveria outra alternativa? Pagaria a cerveja e a deixaria
ali mesmo. O líquido escorregava-lhe pela garganta seca. Pessoas entravam
e saiam. Entrou um pivete, pediu um trocado, nos pés reluziam tênis
maiores que os pés, sentiu vergonha pelo garoto. Alguém bem humorado
do outro lado do balcão falou:
- Sapato novo, hein, Juquinha?
Ernani tomou um susto, olhou para o copo, pensou: Meu Deus, adivinharam. O que
fazer? Mal sabia que a piadinha tinha sido pro pivete.
Pagou a cerveja, disfarçou, saiu de mansinho. Na rua, o ar secou-lhe
o suor. Pulou uma poça d'água numa alegria de menino. Livrara-se
dos sapatos - "prós diabos o dinheiro gasto" tentou até
um assobio - tum, tum.. bate coração... O trânsito estava
uma loucura, o sinal fechou, deu o primeiro passo e uma voz de menino alta e
estridente:
- Moço, o senhor esqueceu seu sapato novo no bar.
Maldito! Pensou. Viu as caras rindo, um riso de admiração pelo
gesto de honestidade do menino e o olhar infantil esperando uma gratificação.
Ernani agarrou a caixa, partiu para a fila do ônibus do bairro. Uma fila
enorme.
- Deus, a maioria vai para o colégio, como vou fazer? Ou fico um tempão
esperando ou arrisco a fila dos em pé. Não, e se não conseguir
sentar?
Sentiu-se numa enrascada. Não teve outra alternativa. Foi para a fila
dos sentados. Umas estudantes conversavam:
- A professora vai arrochar com os "autos"
Pros diabos com esses autos, elas só descerão no colégio,
pensou arrasado.
No ônibus, conseguiu um lugar após a roleta. Descansou os braços
na enorme caixa. Até se sentiu aliviado. No ônibus cheio, as conversas
variavam.
- A Professora exigiu outro seminário, já não aguento
mais ouvir falar em seminário...
Ernani já não se importava tanto, afinal estava sentado, vencera
a batalha. Era só esperar, já estava a caminho de casa. O ônibus
parou, entrou um sujeito alegre, chapéu amassado, a camisa quadriculada.
Exibia no peito aberto um crucifixo, nas mãos duas caixas de sapatos
amarradas uma sobre a outra. No interior, quatro passarinhos debatiam e os bicos
nos buracos feitos para respirar. Ernani gelou, abraçou sua caixa e,
num olhar suplicante, pediu ao Cristo pendente no peito do aparente caçador
que este seguisse e se instalasse lá na frente das alas dos bancos. Foi
inútil, o homem parou a seu lado e falou num tremendo vozeirão:
- Companheiro, dá para segurar essas caixas? Ah!, você também
está levando passarinhos ou é sapato novo?
Ernani sentiu-se o último dos homens, não sabia o que responder,
olhou para os lados e disse baixinho:
- São limões, limões...
E, sobre seu colo foram depositadas mais duas caixas. Sua vergonha era escondida
sob as caixas. Os passarinhos pulavam, num apelo indecifrável para o
pobre Ernani.
O ônibus seguia. Ao passar no colégio, muitos alunos desceram,
logo adiante o caçador agradeceu e desceu e se foi. Restou o sapato na
caixa com um lacinho em forma de flor.
- Maldita caixa, pensou outra vez. - Na próxima vez, Ziza vai comprar
meus sapatos.
Desceu, antes esbarrou nos que estavam de pé. No degrau, um tropeção
e a voz do motorista:
- Cuidado com o sapato. A caixa caíra no chão, Ernani quase a
chutou, mas apanhou cheio de vergonha.
Embrenhou-se pelo caminho escuro, os buracos faziam-no caminhar trôpego
e humorístico. Ia o mais depressa que podia. O vento calmo arrepiava
seus cabelos, mas não enxugava o suor que brotava a cada passo
- Para aí, é um assalto.
Ernani já estava quase em casa. O ladrão lhe impedia a passagem
- Quero tudo seu.
Ernani entregou-lhe o relógio, o restante do pagamento. O ladrão
exigiu:
- Quero esse sapato também.
Ernani entregou a caixa. Não sabia se sentia raiva ou alívio.
Soltou um suspiro:
Da próxima vez, Ziza compra meus sapatos.