A Garganta da Serpente
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O incêndio do circo americano

(Lira Vargas)

Era verão, no céu nuvens desenhavam elefantes, ursos e palhaços. Na minha rua passa um carro com alto falante anunciando o maior circo do mundo: corri para a janela, sorrindo e já sonhando com o espetáculo que ia assistir no final da tarde. Minha mãe fazendo recomendações de meu comportamento, mas nos meus quinze anos, pensava que sabia tudo. Ansiava com a chegada da hora. Escolhi o vestido mais lindo, queria ver de perto o circo tão falado na cidade.

Minhas amigas chegaram, meus cabelos ainda molhados, esvoaçavam com o vento. Sorria numa alegria de menina. A fila enorme, o pipoqueiro foi a primeira atração que vi. Compramos pipocas para a hora passar. As pessoas andavam de lá pra cá. Lourdes era a mais quietinha, parecia indiferente. Quando a fila foi diminuindo, ela olhou para a imensa lona meio assustada, mas a minha alegria era tanta, que nem ouvi seu comentário.

Escolhemos a arquibancada mais próxima do picadeiro. Vestia um vestido de seda azul, meus cabelos negros combinando com o azul de meus olhos - diziam que eu parecia uma artista. Debrucei meus braços nos joelhos e fiquei sonhando com aquele picadeiro. Gostaria muito de fazer parte daquele mundo colorido do circo. Nesse momento, um rapaz loiro, atravessou o picadeiro para puxar uma corda atravessada que ia até a arquibancada perto de nós. Ele parou e pediu licença, num sotaque que desconhecia. Nossos olhos se encontraram, notei um sorriso em seus lábios, meu coração disparou, ele parou e quando puxava a corda, jogou um beijo pra mim. Fiquei sorrindo numa alegria tão grande que minhas amigas aplaudiram.

Não via hora do começo do espetáculo. Tentava imaginar qual seria a função daquele rapaz, seria um ajudante, e com certeza não mais o veria. Mas ficava olhando por toda parte do circo, onde estaria aquele loiro tão lindo que parecia um anjo.

Nesse momento uma música de orquestra invadiu o circo, as pessoas aplaudiam, um locutor chegou até o picadeiro e anunciou o inicio dos espetáculos. Um grupo de palhaços invadiu o palco. As pessoas riam e um deles se destacou do grupo, foi se aproximando de nós e jogou uma flor pra mim. Peguei, e consegui ver seus olhos azuis escondidos na maquiagem. A alegria foi misturada em gargalhadas, aquele circo estava sendo uma grande mudança em minha vida, jamais sentira tanta emoção. E outros espetáculos aconteciam, mágicos, macacos etc.

Mas ficava desejando ver de novo aquele rapaz que me dera alegria, mas que sumira, ficava sorrindo pensando que meu primeiro flerte fora de um palhaço tão lindo. Nesse instante, o locutor anunciou o espetáculo do trapézio. A música embalando o público, as pessoas aplaudindo, uma rede estendida abaixo, o locutor fazendo o suspense do perigo que o trapezista iria desafiar. Nesse momento dois rapazes e uma moça aparecem no picadeiro. Suas roupas colantes, brancas e com brilho. Chegaram bem perto do público para agradecer as palmas antecipadas ao espetáculo. Quando eles se viraram para nosso lado, dois palhaços atravessaram o palco, minha atenção era para eles, queria ver de novo o meu anjo vestido de palhaço, e o grupo de trapezistas virados pra nós, eu procurava o olhar do palhaço, mas eles foram embora sem olhar pra mim. Ansiosa, senti uma ponta de decepção, quando Lourdes bateu de leve em meu braço para que olhasse o trapezista, mas não dava atenção a ela, queria o olhar do palhaço, mas nesse instante quando o grupo foi se afastando, é que percebi que o trapezista era o meu anjo. Tentei olhá-lo, mas ele já se virara para a direção da escada de corda. Senti a sensação de perda, e Lourdes então disse que ele ficara o tempo todo olhando-me.

O espetáculo começou, ele bailava no alto, sentia um vento frio em meu rosto, a plateia aplaudindo, e lá do alto, seu corpo desafiando o perigo, a música melancólica da orquestra ajudava o show ficar mais fascinante. Ele olhou em minha direção, consegui ver seu sorriso, e do trapézio ele jogou outra flor em minha direção, mas a flor caiu longe, tentei pegar, fui impedida por Lourdes. Alguém lá da frente pegou, senti ciúmes, mas ele deu outro sorriso e ficamos assim trocando sorrisos, ele beijou mão e a passou no coração e fez que jogara pra mim, fiz o mesmo gesto, estávamos curtindo um namoro maravilhoso. Nesse instante ele foi descendo nas cordas, os aplausos e gritos eram confusos, ele descia mais rápido. No fascínio daquele sentimento novo, não percebia que as pessoas gritavam. Uma claridade de fogo surgiu do outro lado, por um momento pensei que fazia parte do espetáculo, mas era um incêndio. As pessoas gritavam e corriam por varias direções, um elefante passa arrastando as lonas em fogo, pisando pessoas. Nesse momento a arquibancada começa a balançar, senti um pavor. Minhas amigas se perderam, tentei descer, mas era tarde, as arquibancadas desmontaram, fiquei presa, as pessoas gritando, outras viraram tochas humanas, minha perna doía. Quando já perdia as forças, senti alguém tentando tirar-me dali, nossos olhos se encontraram, nesse instante era de pavor, o fogo dominava tudo, ele fazendo força para livrar minhas pernas, o fogo se aproximando, as pessoas correndo, outras morrendo, pedi no desespero que ele fosse embora, que salvasse sua vida. Ele saiu para pedir ajuda, mas era muita gente, o calor era insuportável, já não via mais nada, só fogo e fumaça. Quando outra vez tive esperança de sair daquele incêndio, ele voltou com um ferro enorme, resto do que sobrava do circo, com uma força descomunal, ele consegui empurrar partes das arquibancadas que prendiam minhas pernas, ele carregou-me e tentava sair, mas tinha muito fogo. Ele me carregava, o sangue misturado com minha roupa, a dor era tanta, mas tentava permanecer acordada. Ele conseguiu um atalho por entre o fogo e pessoas pelo chão. Já chegava quase do lado de fora, quando outra parte das arquibancadas caiu. Fomos arrastados pelas tábuas, abraçados ficamos sem esperança de sobreviver. Ele levantou com dificuldade, tentando me carregar, mas estava ferido. Desesperada, consegui me arrastar mais pra dentro das tábuas para defender-me do fogo. Nesse instante, esqueci a dor, e gritava para que ele saísse dali. Nesse momento ouvimos um estrondo, a fumaça nos sufocando, ele levantou o corpo, e na ânsia de viver, nos arrastamos e enfrentamos a fumaça. Após o estrondo vimos o céu, ele segurou minha mão e seguimos a claridade, do lado de fora fomos amparados por muitas pessoas e perdi os sentido.

Acordei no hospital, com muitas queimaduras. Fiquei sabendo que dormi uma semana, fiquei sabendo do espetáculo mais triste que um circo fizera, muitas pessoas morreram. Lembrei do trapezista, não sabia seu nome, não sabia se ele estava vivo, chorei baixinho, ninguém poderia entender que um amor poderia acontecer tão rápido e ter um fim tão trágico.

Voltei a minha vida normal, todos os dias nos jornais saiam notícias de pessoas que perderam amigos, famílias inteiras morreram. Minhas amigas conseguiram se salvar.

Passaram alguns anos, em minha lembrança ainda aquele rosto e o sorriso ainda faziam parte de meus sonhos. Fui para a universidade, conheci André, estudante de psicologia. Fomos convidados a um seminário na Argentina. Uma noite, estava no hotel, a cidade iluminada, avistei um circo. Meus pensamentos voltaram para aquela época, ainda traumatizada pelo acidente, mas as lembranças do trapezista, voltaram a fazer parte naquele instante. André e os outros colegas bateram na porta, gritei que estava aberta, André era muito atencioso, entrou no quarto e abraçou-me e olhando também pela janela, pediu que eu falasse daquele dia. Senti uma sensação ruim, e André convidou-me a ir até aquele circo. Comecei a chorar, e por ser psicólogo, insistiu dizendo que eu tinha que vencer o medo. Recusei, mas André e os colegas insistiram. Mas a sensação de medo era muito forte, chegando na entrada do circo, não aguentei, recuei e chorando, fui abraçada por André, nesse instante nossas mãos se encontraram, senti segurança, ele dizendo que me ajudaria a curar o trauma. Os colegas levaram na brincadeira nosso carinho e com os bilhetes de entrada, fomos procurar uma arquibancada. André me abraçava, nunca sentira tanto carinho depois daquela época.

O espetáculo começou, em minha lembrança, olhei para os lados, meus colegas da faculdade comiam pipocas, parecia a mesma cena. André acariciava minhas mãos. Nesse instante o locutor anunciou o espetáculo do trapézio, e um trio apareceu no palco, uma lágrima rolou em meu rosto - lembrança daquele sorriso que nunca mais saiu de minha lembrança. Sentia as mãos de André segurando as minhas, o grupo se dirigiu para a plateia, dois palhaços atravessaram o palco, nesse instante lembrei de Lourdes e meus olhar foi para o grupo de trapezistas. Os palhaços deram cambalhotas, e um deles permanecia em pé, notei que não tinha uma perna, ele segurava uma flor e jogou em minha direção. Nesse instante nossos olhos se encontraram, senti um calafrio, desci da arquibancada. André tentou impedir. Fui me aproximando até o picadeiro, e ele estendeu a mão. Subi com dificuldade e nos abraçamos. A plateia aplaudia, nosso abraço que não acabava, era um abraço de saudade e felicidade.

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