A Garganta da Serpente
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Dois amores

(Luciana Pereira)

D.Luiza era uma típica moradora de uma cidadezinha do interior, acordava cedo, preparava o café e saia para comprar os pães, pelo caminho, ao encontrar com suas amigas de rotina, confirmava a ida vespertina na igreja e discutia sobre os noticiários da noite. Dependendo do tema, perdia até a última fornada de pão de sal. E, por isso, dava um jeitinho de apressar seus passos curtos, pois, seu marido não gostava de outro tipo de pão, apenas o de sal.

Quando voltava para casa, já o via sentado à frente da mesa, servindo-se de café preto amargo, o primeiro gole era apreciado como se fosse o último, ele deglutia e inspirava ao mesmo tempo, havia adquirido uma técnica invejável de não se engasgar. E, enquanto isso, ela postava se ao seu lado preparando os pães. Os dois dividiam esse momento há anos e em todos os dias, ele significava que era a hora da despedida, ela o abraçava confortavelmente desejando um bom trabalho e dizia que o esperava para o jantar.

Ao bater da porta, D. Luiza, rapidamente, como se fosse um ato meio clandestino ligava o rádio, ela gostava de escutar a programação AM da rádio local e o esposo não muito, achava que os programas de nada lhe serviam, pois sua função era cuidar somente da casa. Mas, ela descobriu que podia ouvir toda a programação se o aparelho estivesse baixo e escondido. Depois disso, nunca mais ela perdeu sua previsão de horóscopo e os noticiários, suas preferências.

Não ligava para as músicas, a cantoria nunca fora o seu forte, enquanto as canções tocavam, ela aproveitava para estender as roupas no varal, sempre que ouvia a voz do locutor corria para a cozinha, sentava-se e devorava as palavras ditas por aquele desconhecido, sentindo se inebriada por aquela aventura que cometia.

Quando ocorria em sua casa reuniões com suas amigas, logo dava uma desculpa para que suas companheiras fossem para suas casas antes que começasse a programação, mas se não funcionasse, ouvia, mesmo assim, junto a elas, porém não tinha aquele prazer de estar ali a sós. Se alguma delas interrompesse a voz grave e misteriosa que vinha do aparelhinho, de imediato, ela impunha o seu pedido de silêncio e todas, prontamente, lhe respeitavam. E assim, se passava as manhãs de D. Luiza.

Era final de outono e o frio já anunciava que o inverno naquele ano seria rigoroso, talvez, por causa disso, naquela manhã, D. Luiza perdeu a hora de se levantar, desesperada deixou o café para preparar após pegar o pão na padaria, pois, sabia que não poderia perder tempo, caso contrário, não veria o marido desfrutar do seu café habitual, por mais que ela tenha corrido não foi o suficiente para trazer o pão a tempo, não viu o marido sentado na mesa como de sempre, e logo, concluiu que ele não havia de ter esperado e partiu. Decepcionada pelo seu esforço em vão, ela apagou a água que fervia no fogo e também não mais quis tomar café.

Tirou o rádio de dentro de uma lata, que tinha em letras garrafais escrito farinha, o ligou e ao primeiro falar do locutor sentiu o tremer de seu corpo, esquecia em segundos toda a decepção de não ter se despedido do marido naquela manhã, debruçava-se sobre a mesa só para o ouvido aproximar daquela voz que vinha baixinho das caixas de som.

A sirene tocou, era o sinal de que se iniciava o programa policial, ouviu atentamente o desconhecido dizer que havia acontecido um acidente em um bairro próximo ao seu, mas não se interessou muito, apenas saboreava a entonação sóbria do locutor, até que um nome lhe chamou atenção, Osvaldo Ribeiro Nunes, não estava convicta que havia escutado direito aquele nome ali, mas quando ele repetiu, informando que ele era a vítima fatal do acidente, ela confirmou que se tratava de seu marido, com um olhar lacrimoso, ela lançou o rádio a parede e ele calou-se. Naquele dia ela perdeu os dois grandes amores de toda sua vida.

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