Entre as árvores tortas daquele solo fulvo, depois do Morro do Maçado
e das curvas do caminho, onde escorre fino o córrego Guará, tentando
vencer a seca, cravado no ermo, afastado de tudo - não fosse o brejo
mateiro das cercanias - Tião Galego aprumou seu rancho e sua choça
de adobe.
Para vencer a guerra de silêncios, Tião Galego, com o arrebatamento
da finada Anajoana, resolveu arrumar um tomba-litro farejador, para ver se o
entretinha, se a saudade amainasse naquele estado de amodorramento. Tião
Galego era velho, bem enxuto de carnes, a pele adusta de tanto sol, como se
dia a dia se enfornasse na estufa constante para ser amornado na boca da cova,
assim como Anajoana, no fim de seus dias.
Naquela altura do tempo, Trovão já era cachorro crescido e tornou-se
a única companhia do velho Tião. O nome surgiu desde pequeno,
com a mania de uivar para o ribombo dos trovões. O velho tinha um olhar
opaco e fundo, ao contrário de Trovão, olho vivo de bicho do mato,
olhar procurativo. O velho era banguela, o cão tinha dentes de prego,
acostumados a perseguir seriemas, tatus e lagartos. A discrepância se
aglutinava em estreito afeto e profunda amizade recíproca.
A casa mais próxima dali ficava a cinco quilômetros. O único
trieiro era visto ao longe pela inclinação do morro abaixo. Próximo
à barra do horizonte, na orla da estrada, subia um trêmulo nevoeiro
luminoso, que o mormaço solar irisava. Vez por outra se via uma imagem
desfigurada, minúscula, que parecia delinear os traços de Anajoana,
mas Tião Galego rompia logo a quietude para dizer "bobagem, é
miragem da estiagem!"
Tião Galego era carpinteiro, fazedor de viola. Adorava o serviço
de lapidação da paciência. Com as sobras fazia bonecos,
bois, cachorros para Trovão brincar. Ganhava uns trocos na cidade, onde
recebia as encomendas das violas. Dava folgado pro sal, alho, açúcar
e café. Nos meses que não tem "r" (maio, junho, julho
e agosto), de preferência o final de junho que é início
do inverno, para a madeira não ficar "gripada", durante a lua
minguante, que é para ser mais durável, flexível e não
carunchar, porque viola com caruncho fica "leprosa", esse era o segredo
da fabricação. Tião Galego usaria cedro ou jacarandá,
mas acabou arranjando um caixão velho de pinho sem serventia e fez as
duas tampas da viola. O caixão virou viola. Usou apenas canivete, barbante,
fogo e cola vegetal de sumbaré. Estava tudo no padrão dos conformes.
Cavalete, filete, rastilho de taquara, pestana, braço, cravelha de criuvinha,
cordas de aço, depois de quase cinco estações estava pronta
a sua viola nº 5 de dez cordas. Essa sim, com tanto capricho, não
venderia a ninguém.
Dizem que violeiro passa a metade da vida tentando afinar a viola e a outra
metade toca desafinado mesmo. Para o Tião Galego nada disso importava.
Só tinha os ouvidos do Trovão por perto. Era sempre ele que se
empolgava com a cantoria, deitava perto do velho e ficava escutando com alegria.
Trazia até os bonecos de madeira para ouvir também.
"Deixei pra traz o mato e a poeira,
ficou triste o meu coração,
o progresso fez a vida traiçoeira,
que saudade do meu sertão"
Naquele caixa-prego do calcanhar do Judas, era preciso tocar uma hortaliça,
pescar e de vez em quando caçar. As pacas, os caititus, os veados e até
os tatus andavam muito ariscos, as arapucas, os mundéus e outras armadilhas
ficaram praticamente ineficazes. Foi nesse entremeio que Trovão engajou-se
como caçador.
A vontade de um treco vermelho assado era tanta que Tião já preparava
os gravetos. Como Trovão conhecia os trejeitos do velho, o diálogo
corporal era compreendido ao menor movimento de uma sobrancelha. Ficou a postos,
correndo em zigue-zague. Era só esperar Tião colocar o chapéu
e sair pro capoeirão. Eis o início da acossa.
O costume era Trovão disparar pro ermo e sumir por um tempo. Voltava
depois com um bicho no beiço, contando vitória. Às vezes
ficava estático, hipnotizado na vertigem de um animal desavisado. Deitava
rasteiro com o prosseguimento milimétrico. Quando ultrapassava o limite
do invisível, o outro bicho dava o sinal de descobrimento e corria. Trovão
era bom de patas. Poucas vezes perdia corrida. Tatu é que dava trabalho,
se entocava no buraco fundo e estreito. Trovão cavava as tocas e o encarapuçado
ainda tinha outra reserva. O cachorro, coberto de terra, arfante, procuraria
outro menos astuto.
Aquela vez Trovão demorou bastante. Tião Galego ficou preocupado.
A vontade de comer era tanta que já tava no goto o quitute. O sol mergulhou
nas longínquas colinas e nada do cachorro. A lua clareou aquele campestre.
Apesar de não ter mais o viço, a rigeza e o pulso de outrora,
partiu sem detença em busca do parceiro. Apesar do vigor daqueles caminhos
soturnos, Tião engoliu um toco de coragem e adentrou a brenha suja. Como
os cacarejos miúdos e distantes dos galos anunciavam a proximidade do
dia, Tião retornou cabisbaixo. Sentado no toco da gameleira, ainda forçou
as vistas para alcançar qualquer movimento parecido com seu companheiro.
Sem querer, o cansaço pregou as pálpebras num sono manso de boi
antigo.
Quando a lanterna do sol apontou os olhos, Tião tomou um café
requentado, engoliu um doce de buriti, pegou o embornal com algumas tranqueiras
e foi avizinhar as outras moradas. Nenhum sinal. Cachorro bom de faro daquele,
e porte de bezerro, não faria papel de troncho para se perder por aí.
Ainda de tarde resolveu seguir as pegadas e viu que tinha um rastro de ida sem
o par de volta. Lá na frente um treco roliço, possivelmente um
ingazeiro tombado, vedava o rastro no trieiro.
Eis que um ronco, urrado típico das sucuris, rompeu o silêncio
do matagal e se encantou com o vento, invadindo os ouvidos do velho. Tião
aproximou-se e vislumbrou aquela imensa sucuri, devia ter uns onze metros. Ela
estava quieta, e, pelo calombo no meio do corpo serpenteado, percebia-se que
a digestão ainda demoraria um bocado. Devia ter comido um veado qualquer.
Tião Galego buscou o enxadão e o golpe partiu a cabeça
da sucuri, que media um palmo e meio. Teve a ideia de vender o couro,
mas descobriu que Trovão jazia todo quebrado, no meio da gosma digestiva.
Os olhos do velho se esbugalharam como só se viu com o passamento de
Anajoana. A córnea umedecida deixou pingar a gota dolorida do desespero.
Era preciso construir um caixão para o jazigo. Tião Galego usou
algumas tábuas, desmanchou a viola e aproveitou a madeira. A viola virou
caixão. Lá dentro as lembranças da cobra, de Trovão,
dos bonecos de madeira e da viola ficaram amarradas pelas cordas de aço,
incorporando a musicalidade da tristeza silenciosa. Aquela foi a última
vez que Tião Galego mexeu com carpintaria.
(1º Lugar no XV Concurso Literário SESI Arte e Criatividade - Modalidade Conto)