Meus anos são mágicos experientes, revelam os criativos pensamentos,
que nascem onde eu não imagino. Em alguns momentos, entro em parestesia,
recordo algum fato - remorso pojado -, a boca se abre, escancarada. O ranger
dos dentes cessa para que as palavras palrem num paleio aleatório. As
sobrancelhas são peões de rodeio que saltam, freneticamente, no
cavalgar perfeito dos pêlos, durante o tique-nervoso. Nessas horas, preciso
de um tiçoeiro para avivar o lume do coração. Horas em
que poetizo uns epigramas rebuscados. Satirizo o próprio sarcasmo, às
avessas.
Todo mágico que se preza não revela o segredo de seus artefatos,
esconde o truque no cofre da memória, e embeleza as pequenas coisas,
demonstrando a ampla capacidade de o impossível acontecer, esperançosamente.
A bela arte é divertimento que emprega a enganação da mentira.
Assim como eu, nesses anos de momentos mágicos, demonstro só um
pedaço resumido da minha história inteira. Sou apenas o verso
do reverso. Um tanto quanto lado contrário. Posso tornar uma água
límpida em turva, ríspida, ou, para demonstrar minha capacidade
mágica, transformar em áspero lamaçal. Declamo fatos anônimos,
uso o epíteto inventado. Modifico o meu lado torpe em um vitorioso tímido,
discreto. O lado mais algoz, em modesto herói do próprio lirismo
encantado. Reviro a tibieza do meu corpo, numa coragem elétrica muito
bem forçada. Afugento o medo e o desejo, numa falsidade tão fina
quanto o fio do truque da levitação. Passo a construir barreiras
com uma iniciativa moldada em frustrações. Reservo o direito de
tolher meus passos, ao conhecimento de um confuso curioso. No fim do espetáculo,
cubro meu exausto corpo, dizendo estar preparado para a próxima guerra,
ou para o show seguinte.
No fundo da cartola dos anos, há lembranças não saudosas;
dentro do cofre, há o dorso duro de roer! E o alívio que acalma
é o cântico dos mares, embalado pelas ondas solares, círculos
máximos expandidos em cores roxas, laranjas, um tanto quanto plúmbeas,
no fim da tarde, a orla da órbita em cores de arco-íris, na imensa
homogeneidade celeste, durante o pôr nitente do rei sol, que energiza
e aquece o corpo, pintando a ausência de cor natural nos meus pêlos,
deixando-os ruivo-loiros; sem modéstia, vanglorio sete das minhas virtudes,
convoco-as para um elenco principal, onde confecciono uma coleção
de escritos, só para homenagear a essência do meu bom espírito,
no palco da minha vida teatral. Observo a constelação das plêiades
fixadas no mural do espaço, durante a doce viagem de apreciação.
E suas sete estrelas, minhas sete virtudes, perceptíveis num jogo de
sete erros, me fazem lembrar dos difíceis momentos de neblina empoeirada,
onde o puro pó perfeito poliu minha pele pálida, partindo meu
pé de pato, tão necessário para pular na piscina do pirado
e pastoso mar. Que paisagem! Que patriotismo pirata! Que paixão pagã!
Página da minha pacata piada, onde o mar se torna um pântano poluído.
Que pânico paranóico! Que peia me prende pela peaça, na
pequenez dos meus pecados? Tão preso como o boi na carroça de
pau? Que presunção psicopata mais pedante! Que perfil pernóstico
mais peçonhento! Mas não beberei o veneno gélido da vingança.
Viajo alhures como um peregrino, acompanhado pelos meus preciosos livros, lampiões
noturnos e pela minha gaita, de sons contraltos, que canta as duas últimas
vogais do a-e-i-o-u. Desenvolvo outras canções para espantar o
frio, quando cessa a era do meu período ensolarado, da mesma forma do
solstício avantajado nos polos do planeta. Em terra firme, eu
vendo os peixes pescados, guardo a pecúnia do pedágio, quito as
dívidas com o mulherio dos prostíbulos, onde sou muito popular.
Pareço um polífago prostituto. Após o ato já consumado,
a necessidade imperiosa de urinar limpa meu pudor, como se estivesse preparando
para a purificação. O lendário pescador já vai embora.
Vivo numa praia de memórias, com pedras de rancor, conchas de paixão
e amor, caranguejos entorpecidos de licor, peixes a morrer de dor, cardumes
entupidos de cor, flores alegres e sublimes, que exalam o odor; nos cais de
porto, onde costumo sugar, da brisa do ar, o salgado sabor, manifesto a bela
teurgia - a magia celeste mais milagrosa - sem pudor, sentindo-me um homem promissor
- os cabelos dançando com os ventos -, um selvagem sedutor; olho o céu
com louvor, e com ares de superior, adentro o mar no navio da minha vida, onde
sou o condutor. Ora bolas, redondas, emboladas: eu sou navegador; desfruto das
ondas, suas subidas e descidas, sem o enjoo cansado dos vômitos;
flutuo nas trilhas oceânicas, por onde eu passo, para onde vou; domino
meu mar de Netuno, Poseidon e Iemanjá; sou o timoneiro que comanda o
leme; mando na direção das minhas vontades; carrego, no barco,
os meus pensamentos provectos - aqueles antigos, fincados no chão do
cofre da memória -, meus velhos passos guardados em caixas no porão,
por onde se atravessa o estreito saguão, trancado pela porta do alçapão.
Sou meu próprio líder e meu autêntico herói marítimo:
proa a quem doer!
O mar é meu lar, minha casa e móvel residência: mar doce
mar! Há sempre alguém que vai falar, reclamar, espantar, orgulhar,
admirar, invejar e repudiar: cruz credo! Preciso de luz e prego - para fixar,
nas paredes de meus pensamentos, os aprendizados com meus curtos desvios. Os
pregos e estacas para construir o navio da minha vida, com a dura madeira -
a aroeira -, a maçaranduba maciça, o jatobá cheiroso, o
pau de pequi, que provoca coceiras nos pescoços, a peroba lustrosa, o
pau-brasil avermelhado, o mogno vistoso, o ébano escuro dos morenos,
a moldável acácia, a cerejeira dos meus velhos tempos de carpintaria,
a fraca e macia tábua de pinho, o ipê útil das flores, com
cores de nascer e pôr-do-sol, o álamo pesado, o carvalho escuro,
a grossa nogueira, o belo jacarandá e o durável cedro, escolhido
por mim e pelo barco. Quero a luz que abre os olhos do tempo mágico,
para poder caminhar tranquilo nas ondas do picadeiro, nas profundezas do
palhaço-mar, dentro deste circo teatral. Sem apressar o artista temporal,
buscando um atalho, durante o caminho da vida. Depois de saciar o meu púbis
pudico, fico faminto de cansaço. Deito na rede, entre os mastros, deixo
que o mágico cuide dos meus passos. A bússola buzina para a desatenção
do meu desleixo. Deixo que os ventos soprem a embarcação, na direção
escolhida pelo mágico, na rosa-dos-ventos. Não me incomodo com
uma possível tempestade marítima, uma procela terrível
e devastadora: o que vem da realidade não me atinge.
Lembro a lenda da lenha do cedro, que formou meu leme, agora livre, sem ninguém
a vigiar seu traço, seu tronco, manobrar com um suave trisco, ou um forte
tranco, trancar com o trinco o seu movimento, ainda que não esteja truncado.
A lenda dizia que o cedro deixa nas águas do oceano, o gosto de um suave
amargo, atraindo uma bela sereia, que aparece com os cabelos cor de areia, cantando
com uma voz suave que semeia, no rigor das claves, o timbre do tom encantado
e místico, desviando da realidade do mundo da cidade, de verdade, onde
um singelo pescador às vezes anda, tornando-se um mero flagelo, à
mercê das armadilhas marítimas, com os ouvidos indefesos, perante
o estrondoso feitiço do cantar musicado das sereias. E os ventos são
tenores líricos, carregando, de carona não requerida, o cantar
soprano da majestosa canção feminina da mulher-peixe. Dizem que
o cedro manipula os devaneios dos navegantes em alto-mar, conduz os tripulantes
para travar a batalha de ilusões, imaginando seres nada serenos, extraterrestres,
sereias que fazem com que as tábuas da proa tornem-se trampolins: salve-se
quem conseguir; abandonar o navio; homem ao mar: acredite se puder!
O mar estava calmo - sossego sólido - solidão silvestre. Ciente
de ser, o oceano, um pacífico - quem sabe Atlântico ou Índico
- solo de batalhas, de sobrevivência, sendo que o mago mar é a
terra mais populosa. Ouço um coro único de uma linda voz. Larguei
minhas cordas, desisti das leituras. Minha gaita estridente se envergonhou:
demitiu seu sopro e empregou seu silêncio, ouvindo o belo som. Sem pensar,
mergulhei nas águas congelantes. Esquentei meus ombros no balanço
do meu agito. Liguei o motor dos meus braços e nadei - nadei como nunca
havia nadado. Minha condução, que era tudo, se fez nada. Abandonei
o cedro das tábuas flutuantes, a bandeira do meu corpo, o mastro alto
que garante o equilíbrio, as memórias do porão inundado,
o leme que se fez volante; abracei e nadei a vontade que se fez dominante; compus
a elegia - em versos de luto e lamentação - toda criada sem aflição,
numa tentação entorpecida de lucidez, ou seria uma lucidez entorpecida
pela tentação? Nadei, nadei, nadei. Nada como a imensidão
do nada! Finalmente havia conseguido pausar minhas braçadas. O som vinha
de uma pequena ilha rochosa. Lá estava ela a me olhar. Cheguei ensopado
para ver de perto o verde das suas escamas, sentir a cauda macia e úmida
de suas barbatanas, nem douradas, nem prateadas. Aplaudi a fantástica
performance do solo da sua voz. Nem me lembro de como consegui beijá-la.
Mas até agora sinto o sabor dos fluídos refrescantes do pomo de
cada lábio carnudo. Lembro que me deitei no colchão do mar, perfurei
o zíper dos fundilhos, na cauda da estonteante sereia. Que ondas tórridas!
Que sondas sonâmbulas! Que sons mais belos! Que sonata mais bem solfejada!
Minha carne limpa se abria para o toque de pele, ou de escama, quem sabe ao
certo a sequência?! Senti o tremor dos toques, o temor dos coques
- os cabelos dela estavam presos no formato da casa de joão-de-barro.
Quem diria? Assim, podia-se ver, em qualquer hora do dia, os seios desnudos,
bicudos, delicados, lisos, rosáceos, brandos, ternos, sem a camuflagem
das ostras, sem a vergonha do escondido. Curvei-me nas curvas do seu violado
corpo de violão, até aquele instante inviolável. E havia
um púbis! Espremi carícias e recebi delícias. Percebi o
clímax do clitóris. Misturei com cautela o caldo dos nossos genes.
Seria um sonho de soçobro - um naufrágio decadente - na viagem
inventada dos meus delírios? Não: guardo comigo a rosa vermelha,
que ela carregava no lombo macio da orelha. É uma flor que não
envelhece, com pétalas que não esmaecem. Mantenho o sabor do seu
gosto, carrego as feições do seu rosto, lembro da canção
de seu sopro. Desfruto do abuso, em abundância, da minha magia marítima.
Não tenho que confessar a ausência do meu celibato. E para não
dizer que não falei das dores: o remorso é só um grão
de areia no caminho da embarcação da minha vida. O esquecimento
de um problema não é esquecido, mas só é lembrado
quando não distraído. Afinal, que mal feliz seria? Agora posso
contar que sou o mago do mar...