A Garganta da Serpente
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Magia Marítima

(Leonardo Teixeira)

Meus anos são mágicos experientes, revelam os criativos pensamentos, que nascem onde eu não imagino. Em alguns momentos, entro em parestesia, recordo algum fato - remorso pojado -, a boca se abre, escancarada. O ranger dos dentes cessa para que as palavras palrem num paleio aleatório. As sobrancelhas são peões de rodeio que saltam, freneticamente, no cavalgar perfeito dos pêlos, durante o tique-nervoso. Nessas horas, preciso de um tiçoeiro para avivar o lume do coração. Horas em que poetizo uns epigramas rebuscados. Satirizo o próprio sarcasmo, às avessas.

Todo mágico que se preza não revela o segredo de seus artefatos, esconde o truque no cofre da memória, e embeleza as pequenas coisas, demonstrando a ampla capacidade de o impossível acontecer, esperançosamente. A bela arte é divertimento que emprega a enganação da mentira. Assim como eu, nesses anos de momentos mágicos, demonstro só um pedaço resumido da minha história inteira. Sou apenas o verso do reverso. Um tanto quanto lado contrário. Posso tornar uma água límpida em turva, ríspida, ou, para demonstrar minha capacidade mágica, transformar em áspero lamaçal. Declamo fatos anônimos, uso o epíteto inventado. Modifico o meu lado torpe em um vitorioso tímido, discreto. O lado mais algoz, em modesto herói do próprio lirismo encantado. Reviro a tibieza do meu corpo, numa coragem elétrica muito bem forçada. Afugento o medo e o desejo, numa falsidade tão fina quanto o fio do truque da levitação. Passo a construir barreiras com uma iniciativa moldada em frustrações. Reservo o direito de tolher meus passos, ao conhecimento de um confuso curioso. No fim do espetáculo, cubro meu exausto corpo, dizendo estar preparado para a próxima guerra, ou para o show seguinte.

No fundo da cartola dos anos, há lembranças não saudosas; dentro do cofre, há o dorso duro de roer! E o alívio que acalma é o cântico dos mares, embalado pelas ondas solares, círculos máximos expandidos em cores roxas, laranjas, um tanto quanto plúmbeas, no fim da tarde, a orla da órbita em cores de arco-íris, na imensa homogeneidade celeste, durante o pôr nitente do rei sol, que energiza e aquece o corpo, pintando a ausência de cor natural nos meus pêlos, deixando-os ruivo-loiros; sem modéstia, vanglorio sete das minhas virtudes, convoco-as para um elenco principal, onde confecciono uma coleção de escritos, só para homenagear a essência do meu bom espírito, no palco da minha vida teatral. Observo a constelação das plêiades fixadas no mural do espaço, durante a doce viagem de apreciação. E suas sete estrelas, minhas sete virtudes, perceptíveis num jogo de sete erros, me fazem lembrar dos difíceis momentos de neblina empoeirada, onde o puro pó perfeito poliu minha pele pálida, partindo meu pé de pato, tão necessário para pular na piscina do pirado e pastoso mar. Que paisagem! Que patriotismo pirata! Que paixão pagã! Página da minha pacata piada, onde o mar se torna um pântano poluído. Que pânico paranóico! Que peia me prende pela peaça, na pequenez dos meus pecados? Tão preso como o boi na carroça de pau? Que presunção psicopata mais pedante! Que perfil pernóstico mais peçonhento! Mas não beberei o veneno gélido da vingança. Viajo alhures como um peregrino, acompanhado pelos meus preciosos livros, lampiões noturnos e pela minha gaita, de sons contraltos, que canta as duas últimas vogais do a-e-i-o-u. Desenvolvo outras canções para espantar o frio, quando cessa a era do meu período ensolarado, da mesma forma do solstício avantajado nos polos do planeta. Em terra firme, eu vendo os peixes pescados, guardo a pecúnia do pedágio, quito as dívidas com o mulherio dos prostíbulos, onde sou muito popular. Pareço um polífago prostituto. Após o ato já consumado, a necessidade imperiosa de urinar limpa meu pudor, como se estivesse preparando para a purificação. O lendário pescador já vai embora.

Vivo numa praia de memórias, com pedras de rancor, conchas de paixão e amor, caranguejos entorpecidos de licor, peixes a morrer de dor, cardumes entupidos de cor, flores alegres e sublimes, que exalam o odor; nos cais de porto, onde costumo sugar, da brisa do ar, o salgado sabor, manifesto a bela teurgia - a magia celeste mais milagrosa - sem pudor, sentindo-me um homem promissor - os cabelos dançando com os ventos -, um selvagem sedutor; olho o céu com louvor, e com ares de superior, adentro o mar no navio da minha vida, onde sou o condutor. Ora bolas, redondas, emboladas: eu sou navegador; desfruto das ondas, suas subidas e descidas, sem o enjoo cansado dos vômitos; flutuo nas trilhas oceânicas, por onde eu passo, para onde vou; domino meu mar de Netuno, Poseidon e Iemanjá; sou o timoneiro que comanda o leme; mando na direção das minhas vontades; carrego, no barco, os meus pensamentos provectos - aqueles antigos, fincados no chão do cofre da memória -, meus velhos passos guardados em caixas no porão, por onde se atravessa o estreito saguão, trancado pela porta do alçapão. Sou meu próprio líder e meu autêntico herói marítimo: proa a quem doer!

O mar é meu lar, minha casa e móvel residência: mar doce mar! Há sempre alguém que vai falar, reclamar, espantar, orgulhar, admirar, invejar e repudiar: cruz credo! Preciso de luz e prego - para fixar, nas paredes de meus pensamentos, os aprendizados com meus curtos desvios. Os pregos e estacas para construir o navio da minha vida, com a dura madeira - a aroeira -, a maçaranduba maciça, o jatobá cheiroso, o pau de pequi, que provoca coceiras nos pescoços, a peroba lustrosa, o pau-brasil avermelhado, o mogno vistoso, o ébano escuro dos morenos, a moldável acácia, a cerejeira dos meus velhos tempos de carpintaria, a fraca e macia tábua de pinho, o ipê útil das flores, com cores de nascer e pôr-do-sol, o álamo pesado, o carvalho escuro, a grossa nogueira, o belo jacarandá e o durável cedro, escolhido por mim e pelo barco. Quero a luz que abre os olhos do tempo mágico, para poder caminhar tranquilo nas ondas do picadeiro, nas profundezas do palhaço-mar, dentro deste circo teatral. Sem apressar o artista temporal, buscando um atalho, durante o caminho da vida. Depois de saciar o meu púbis pudico, fico faminto de cansaço. Deito na rede, entre os mastros, deixo que o mágico cuide dos meus passos. A bússola buzina para a desatenção do meu desleixo. Deixo que os ventos soprem a embarcação, na direção escolhida pelo mágico, na rosa-dos-ventos. Não me incomodo com uma possível tempestade marítima, uma procela terrível e devastadora: o que vem da realidade não me atinge.

Lembro a lenda da lenha do cedro, que formou meu leme, agora livre, sem ninguém a vigiar seu traço, seu tronco, manobrar com um suave trisco, ou um forte tranco, trancar com o trinco o seu movimento, ainda que não esteja truncado. A lenda dizia que o cedro deixa nas águas do oceano, o gosto de um suave amargo, atraindo uma bela sereia, que aparece com os cabelos cor de areia, cantando com uma voz suave que semeia, no rigor das claves, o timbre do tom encantado e místico, desviando da realidade do mundo da cidade, de verdade, onde um singelo pescador às vezes anda, tornando-se um mero flagelo, à mercê das armadilhas marítimas, com os ouvidos indefesos, perante o estrondoso feitiço do cantar musicado das sereias. E os ventos são tenores líricos, carregando, de carona não requerida, o cantar soprano da majestosa canção feminina da mulher-peixe. Dizem que o cedro manipula os devaneios dos navegantes em alto-mar, conduz os tripulantes para travar a batalha de ilusões, imaginando seres nada serenos, extraterrestres, sereias que fazem com que as tábuas da proa tornem-se trampolins: salve-se quem conseguir; abandonar o navio; homem ao mar: acredite se puder!

O mar estava calmo - sossego sólido - solidão silvestre. Ciente de ser, o oceano, um pacífico - quem sabe Atlântico ou Índico - solo de batalhas, de sobrevivência, sendo que o mago mar é a terra mais populosa. Ouço um coro único de uma linda voz. Larguei minhas cordas, desisti das leituras. Minha gaita estridente se envergonhou: demitiu seu sopro e empregou seu silêncio, ouvindo o belo som. Sem pensar, mergulhei nas águas congelantes. Esquentei meus ombros no balanço do meu agito. Liguei o motor dos meus braços e nadei - nadei como nunca havia nadado. Minha condução, que era tudo, se fez nada. Abandonei o cedro das tábuas flutuantes, a bandeira do meu corpo, o mastro alto que garante o equilíbrio, as memórias do porão inundado, o leme que se fez volante; abracei e nadei a vontade que se fez dominante; compus a elegia - em versos de luto e lamentação - toda criada sem aflição, numa tentação entorpecida de lucidez, ou seria uma lucidez entorpecida pela tentação? Nadei, nadei, nadei. Nada como a imensidão do nada! Finalmente havia conseguido pausar minhas braçadas. O som vinha de uma pequena ilha rochosa. Lá estava ela a me olhar. Cheguei ensopado para ver de perto o verde das suas escamas, sentir a cauda macia e úmida de suas barbatanas, nem douradas, nem prateadas. Aplaudi a fantástica performance do solo da sua voz. Nem me lembro de como consegui beijá-la. Mas até agora sinto o sabor dos fluídos refrescantes do pomo de cada lábio carnudo. Lembro que me deitei no colchão do mar, perfurei o zíper dos fundilhos, na cauda da estonteante sereia. Que ondas tórridas! Que sondas sonâmbulas! Que sons mais belos! Que sonata mais bem solfejada! Minha carne limpa se abria para o toque de pele, ou de escama, quem sabe ao certo a sequência?! Senti o tremor dos toques, o temor dos coques - os cabelos dela estavam presos no formato da casa de joão-de-barro. Quem diria? Assim, podia-se ver, em qualquer hora do dia, os seios desnudos, bicudos, delicados, lisos, rosáceos, brandos, ternos, sem a camuflagem das ostras, sem a vergonha do escondido. Curvei-me nas curvas do seu violado corpo de violão, até aquele instante inviolável. E havia um púbis! Espremi carícias e recebi delícias. Percebi o clímax do clitóris. Misturei com cautela o caldo dos nossos genes. Seria um sonho de soçobro - um naufrágio decadente - na viagem inventada dos meus delírios? Não: guardo comigo a rosa vermelha, que ela carregava no lombo macio da orelha. É uma flor que não envelhece, com pétalas que não esmaecem. Mantenho o sabor do seu gosto, carrego as feições do seu rosto, lembro da canção de seu sopro. Desfruto do abuso, em abundância, da minha magia marítima. Não tenho que confessar a ausência do meu celibato. E para não dizer que não falei das dores: o remorso é só um grão de areia no caminho da embarcação da minha vida. O esquecimento de um problema não é esquecido, mas só é lembrado quando não distraído. Afinal, que mal feliz seria? Agora posso contar que sou o mago do mar...

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