A Garganta da Serpente
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O Ermitão

(Ligi@Tomarchio®)

Nesse dia o mar estava calmo. As ondas corriam lentas. Arrastavam algas e mariscos de suas profundezas até a praia. A areia brilhava sob o sol forte e o céu confundia-se com o azul do mar no horizonte...

Alguns navios lá estavam, como estátuas à deriva, balançando, balançando...

Poucas pessoas faziam seu passeio matinal na praia. Não era época de veraneio. Sem turistas. Apenas os costumeiros moradores da praia de Itararé.

E lá estava eu, do outro lado do mar e da avenida. No meu buraco. No alto do morro ainda úmido da chuva que castigara por toda a semana.

Levantei para descer o morro, a fim de encontrar alguma comida.

Há uma pequena trilha por onde posso descer. É íngreme. Para os que olham para o morro devem se perguntar, como consigo subir ou descer. Acho até acreditarem que nunca desça, pois raramente alguém me vê embaixo.

Ouço muitos comentários a meu respeito, principalmente quanto a minha aparência. Mas não me importo. Sou e vivo assim, por opção e não me interessa o resto do mundo.

Não gosto de falar muito. Quando me chamam para perguntar algo, logo faço qualquer sinal para fazê-los desistir.

Já vivi muito... A escolha de morar nesse morro foi a melhor que pude fazer.

Nele tenho tudo de graça. A própria natureza é quem me abriga e me dá sustento.

Não vivo só. Tenho um cão companheiro. Alguns ratos passam sempre a procura dos restos de alimentos que guardo para essa finalidade. Pombos, passarinhos e corvos, também visitam minha morada. Nos entendemos bem, sem interferências...

Dizem que sou o "velho do saco", aquele que rouba criancinhas. Ou, ainda, que sou louco. E que meu aspecto é repugnante. Porém, nada é verdade. Talvez, quanto a minha aparência tenham razão, pois nunca me vejo.

As crianças, muitas vezes, jogam pedras e outros objetos para o alto do morro, tentando me provocar. Não ligo. Dessa forma, logo desistem e se vão.

Alguns adultos acompanhados de seus filhos olham admirados e dizem às crianças para tomar cuidado ao passar sozinhas perto do morro. Explicam às pobres criaturas, que ali, no morro, vive um homem mau, que rouba crianças!

- Como os adultos perturbam as crianças com tantas bobagens! - Penso, contrariado.

- Ah! Lá vem o trem apitando...

Recordo-me de quando aqui cheguei. Tomei um trem em São Paulo. Não tinha dinheiro para continuar viagem, daí me atiraram aqui embaixo, onde agora, o trem está passando. Seu trilho separa o morro da calçada, que é cercada por um muro baixo, fácil de pular.

- Não vou descer agora. - penso - Ficou tarde. Muita gente na rua. Vou esperar.

Nesse momento, o apito do trem soava longe, quando percebi uma mulher e duas menininhas. Estavam na calçada, olhando para mim. Devem ter parado para ver o trem passar e acabaram por me descobrir. Levantei curioso para vê-las e até tentei chegar um pouco mais à vista das três.

Estas me vendo aproximar deram um passo para trás receosas e continuaram a me observar.

E assim ficamos, os quatro, por uns momentos, hipnotizados.

Senti no olhar daquela mulher, uma grande tristeza. As meninas, já apresentavam uma certa admiração em seus olhos brilhantes e vivos.

Passado o primeiro contato, consegui entender, através do pensamento - sim, porque consigo algumas vezes ler os pensamentos - o que as três queriam de mim.

Elas querem que eu conte minha vida. A mulher, que descobri ser repórter, deseja escrever uma matéria para o jornal sobre os velhos abandonados. E as crianças querem sentar no meu lado e escutar histórias fantásticas de um velho avô que já não existe nessa vida.

- Como gostaria de ajudá-las! Não posso, porque eu as assustaria com minhas histórias e a reportagem nem seria aceita pelo diretor do jornal.

Pensando assim, acenei para elas, que corresponderam e voltei para meu canto.

Quando sentei, meu cão, que não tem nome, disse-me:

- Está certo amigo. Não há necessidade de sair por aí contando sua vida. Mas quanto a sua aparência... Podia melhorar um pouco, não acha? Quem sabe se tomasse um banho de mar e trocasse suas roupas... Não chamaria tanto a atenção!

Fiz de conta que não ouvi. Única coisa que chamou minha atenção naquele momento foram algumas lesmas instaladas numa panelinha furada e cheia de folhas derrubadas pela chuva. Como eram lentas... Os corpos acinzentados, cobertos por uma gosma transparente, brilhavam ao sol, roubando o verde das folhas e o pouco de brilho da panela de metal. Devoravam vagarosas aquelas folhas. Deve ser o prato predileto delas... A uma dessas lesmas prestei mais atenção. Após comer um pedaço de folha, saiu da panelinha e, rastejando muito devagar, rumou solitária para o alto do morro.

Praticamente, passei todo o resto do dia a observar aqueles moluscos. Quando todas já haviam partido, o sol escondia-se atrás de mim. O céu avermelhado completou a felicidade daquele dia... Perdido, assim, em deslumbramento e devoção ao crepúsculo, compreendi que as lesmas queriam me mostrar algo. Assim como aquelas três, a mulher e as meninas.

Não sei bem o quê. Minha sensibilidade nunca falha e, dessa vez, alguma mensagem deveria haver naquilo tudo...

Assim permaneci toda à noite, pensando, pensando... Até que adormeci.

Outro dia ensolarado se fez, quando despertei assustado. Tive um sonho triste. Não sei bem se foram lembranças ou um sonho, mas enfim, entendi a mensagem quase indecifrável do dia anterior.

Vi a mulher e as duas meninas indo à praia tomar sol e brincar na água salgada. Estavam acompanhadas de um homem, jovem como a mulher. Esse homem era eu, há muitos anos. A mulher e as crianças foram para o mar e eu, fiquei sentado na areia quente a observá-las. Naquele dia o mar da praia de Itararé estava bravo. Não me preocupei. Elas sabiam nadar, apenas alguns instantes de distração, fizeram com que as três sumissem entre as ondas ariscas. Todas foram encontradas, mais tarde, pela guarda costeira, mortas. Como sofri tal perda! Parecia até mesmo que eu as havia perdido para o mar...

Sonho ou não, aquelas três me trouxeram lembranças tristes.Continuarei a ser e viver como sempre. Enclausurado em pensamentos e conversas com meu cão e o mar.

Com o mar, a relação é de mágoa, no entanto, me reservo o direito de ser o guardião dessas águas enganosas. Águas em que não entro, apenas observo sua beleza e reflexo.

Continuo minha vida de ermitão. Solitário por opção.

Perdido no esquecimento e passado distantes...

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