Carrego no bolso da camisa, o bolso largo e profundo de um poeta, a sensibilidade
de uma caneta pulsante, que dança nas linhas de um papel, em ritmos bailados,
às vezes sem uma coordenação precisa. Cada palavra, uma
batida; cada batida, um coração vivo; cada letra que a caneta
contorna e dispara é um tiro de uma metralhadora incessante, que sibila
o barulho de um beijo estalado, o abrir e fechar dos feltros, o estourar das
bolhas de plástico que envolvem como um casulo as embalagens. A palavra
é a melhor arma para vencer a batalha dos diálogos, a melhor influência
que qualquer retórica possa hipnotizar, o melhor recurso para a compreensão,
embora muitas vezes não alcançada.
Dentre céleres e serelepes palavras, pingam as caladas, que ensurdecem
os ouvidos com tanto silêncio. Outras são moderadas, entristecem
os alegres e alegram os tristes. Há palavras plenas em minhas letras
de inspirações puras; o texto não é só mero
resultado, ou obra de arte lapidada, fruto do suor, expressa muito mais as labaredas
de minha alma em chamas, a doçura e a fantasia da própria mente
elétrica. Tais palavras apaziguam os raivosos e igualam os racistas que
conseguem infiltrar-se no mar de entrelinhas, absorvendo toda a essência
dos brandos sentidos que expõem a sabedoria do tempo: nada mais perfeito
do que o equilíbrio! Palavras que dão princípios aos imorais,
força aos debilitados, ânimo aos desalentos, perdão aos
que bebem o veneno da vingança, esperança aos exasperados, fé
aos descrentes; palavras que saciam os carentes, esclarecem os confusos, medicam
os enfermos, expulsam a peste, iluminam os que vivem no escuro, mesmo os que
alcançam o brilho cintilante das estrelas e penduram no calor dos seus
abraços.
Coleciono sentimentos, formando as figurinhas do meu coração,
espelhando os reflexos do esconderijo onde guardo a fonte de inspiração
desta caneta pulsante no meu largo e profundo bolso. Na porta do esconderijo,
a sentinela é o entendimento que carrega a senha e evita a entrada de
visitantes não cadastrados. As imagens refletem o brilho da fonte, configuram
feixes iluminados como os braços do sol, que tateiam nossa cabeça
exposta, recebendo quentes carícias, em cada fio de cabelo. Quem mergulha
nas entrelinhas invade meu esconderijo protegido, bebe da minha fonte e se embriaga
das figurinhas sentimentais. Pelo caminho de palavras, o papel é o meio
de transporte que leva até o meu mundo. Muitas vezes além dele!
Quem consegue transpor o mundo físico, se entope de humildes dádivas
e coloridas virtudes calcadas por mim, anos e anos movidos à frieza do
aprendizado e ao calor da paciência. Por isso não reclamo do tempo,
não rebelo das inovações tecnológicas que me servem
tão bem, não clamo um passado que já morreu e tem no jazigo
as palavras "aqui jaz o passado e daqui não mais retornará",
não contesto o ciclo natural do tempo através do envelhecer dos
corpos, nem mesmo da exiguidade temporal, não contrario a soberania,
o fluxo, o poder, os caminhos, a liderança, o plantio e a sabedoria do
tempo, não me irrito com o futuro incerto, pois sei que ele logo chegará,
com toda certeza, colhendo os frutos do meu presente. Aguardo os favores, as
vantagens, o equilíbrio mágico de uma balança controlada,
as andanças do tempo, numa espera sábia e obediente, então
eu vivo a vida intensamente e não espreito poucos momentos como se eu
não fosse o protagonista da minha história; não espio de
fora, mas consumo por dentro; não fico sedento por omissão, nem
faminto por não mover as mãos, numa lassidão constante
de uma eterna e ardente agonia, como se respirasse, tendo consciência
que respiro, percebendo cada inspiração ou expiração
forçada, buscando o ar escasso e arredio. A onda de inspiração
segue devotadamente como o atravessar de um fantasma na parede, com a intensidade
do sangue que extravasa a carne, sensibilizando a alma, eclodindo sensações
expansivas, notando as bênçãos do poder de aqui viver. Vivo
o desenrolar dos fatos como se cada momento fosse a última chance, oportunidade
em que busco os resultados como a aranha que espera calmamente, sabendo que
a presa ficará enrolada nos fios do seu branco e grudento cetim.
Eu lidero e comando minha fonte com respeito e admiração, já
que a inspiração não tem hora para chegar, mas chega sempre
mais cedo, quanto mais eu possa precisar. Por não ter nada para reclamar,
sigo em passos leves e felizes o caminho do papel, antes vazio, agora completo,
viscoso, pronto para ser explorado, saboreado como o alimento mais nutritivo
para a alma, tragado como o ar por todos os poros. Os grandes olhos mostram
o poder da percepção, mas não culpo os olhos turvos, cheios
de poeiras ruivas em pós granulados, que não se encantam ou que
não levam as palavras e o caminho vibrante do meu mundo para o corpo
obsoleto. É que o entendimento custa caro, precisa de um aparato e um
arsenal de sensibilidades, que distingue o observar de uma pedra; pedra como
mero objeto jogado na ourela de uma estrada, ou como a mais velha vida, amamentada
pela natureza, carinhosamente, sob olhares e cuidados do sol, chuva e ventos,
as maiores beldades da vida, quer sejam os braços do sol, a saliva fria
e azul da chuva, ou o bafo quente e o congelar do sopro do vento, como quem
faz, com o álcool, parar de arder uma ferida aberta; pedra que sente
a vida mais antiga em volta de tudo, que acompanhou e acompanhará gerações
e gerações de nossas presenças; pedra que observou a caminhada
dos mais velhos anciãos e mediu as forças dos mais ilustres profetas,
serviu de brinquedo para as diversas crianças, fez-se arma para inúmeros
raivosos, fingiu-se de boba para incontáveis cabeças maléficas,
leu e participou da mais antiga história, resistiu à invalidez
da caduquice, calou diante das infindáveis lástimas, chorou por
infinitas tristezas e injustiças, sorriu para os poucos que conseguiram
percebê-la, um número irrisório, mas estupendo e memorável.
Este arsenal de sensibilidades não é encontrado em uma loja de
conveniência, nem na maior loja de qualquer ramo. Uns já nascem
armados até os dentes. Outros precisam adquirir do tempo, tão
gracioso e preciso, naquela mesma espera obediente e incansável. O tempo
enxerga somente às distâncias. O tempo também ri para aqueles
que o percebem como o minúsculo filhote de canguru, que sabe, mesmo sem
olhos, quem é a mãe, no meio da manada. O tempo tem chorado mais
que um bebê carente e faminto numa sala solitária, por estar sendo
responsabilizado pelos males causados aos homens. O tempo é inocente.
O destino seria o mentor brincalhão, mas o tempo, um deus supremo, um
titã poderoso, sem interferir no mundo interior de ninguém, já
que apenas atira seu fluxo no alvo do infinito, apenas pendura nossas vidas,
num limiar-momento, sem interferir no que fazemos do dia a dia. Livre arbítrio.
O tempo é o varal onde percorrem os prendedores do destino; destino que
maneja e segura a roupa: alma dos homens. O prendedor decide quando ou não
soltar-nos, até o chão da morte. Há os teimosos que engarrancham
o tecido no fio, almas insistentes que deslizam no varal por inteiro, até
onde o atrito pará-lo; mas sem perder para a inércia, vencem a
batalha, continuando e acompanhando o tempo, se modificando e se adequando a
ele, onde quer que ele vá.
Vivo feliz porque sou teimoso, não solto o fio nem por um pequeno instante,
mesmo que as mãos doloridas não suportem o calor dos calos ou
o queimar do atrito. Talvez ninguém possa segurar ou cortar o fio do
varal. É bem provável que os prendedores não possam ser
retirados. É certo que o tecido de nossas roupas não possa ser
rasgado. A alma é impenetrável fisicamente. E assim segue a lei
inexorável, colorindo a composição dos mistérios
do universo, ultrapassando os limites de nossa filosofia. Mas meu modesto papel
pode atravessar ou misturar-se às linhas e fiapos do tecido da essência
da alma. Meu papel pode manchar, retirar manchas, lavar o pano e secá-lo
em qualquer temperatura dos meus verbos. A celulose deste meu papel pode fixar-se
no âmago de um ser. Meu papel pode aderir ao que ainda falta para que
a alma possa olhar em outras dimensões, percebendo a quantidade de mundos,
escolhendo dentre eles o melhor para se morar.
Minha contemplação é limpar a poeira dos teus olhos, implantar
neles lentes coloridas, viajar nos caminhos do papel, abrir a porta do meu mundo,
banhar na fonte da inspiração, agarrar o fio do varal e fazer
minhas roupas gritarem bem alto, num gesto súbito e eufórico,
varrer a cera dos seus ouvidos, expulsar o seu medo dos prendedores e a dor
que te invadiu, aguar sua luz, cultivar seu brilho, regular sua temperatura,
cuidar da absorção de sua lisa epiderme, presentear figurinhas
colecionáveis, raras e puras, tatear seu gosto distraído, riscar
um fósforo, queimando o fogo do seu prazer, amar sua descoberta, amando
o seu amor, invadir os mistérios da harmonia, cantar o som que os velhos
e admiráveis afinadores de piano deixaram nas cordas doces das bonitas
teclas do piano de cauda, e aprender com estes afinadores de piano, de nobre
profissão antiga, que o tempo não endurece os dedos, não
ensurdece os velhos, não amargura os sentimentos e as melodias, não
retira a precisão do tom, a palpitação da caneta, o contorno
e o sentido dos tatos, nem mesmo a beleza da vida, ou o mistério do silêncio
mais mudo, que nunca se acaba, assim como a lenda que nunca morre. Agradeço
aos afinadores que tanto adquiriram a paciência e o respeito pelo tempo,
que tanto sonorizaram o piano precisamente, nota por nota, acorde por acorde,
detalhe por detalhe de cada vibração correta, permitindo a dança
das claves, a magia e beleza da música. Agradeço, ainda, como
simples poeta, por ter me tornado um afinador de piano, regulando e afinando
as palavras do meu papel. Tocarei para você, neste papel de piano, vibrando
as notas no calor das minhas palavras, uma música que une os corações,
a canção de que você mais gostará, limpando os tímpanos,
arrancando um sorriso singelo, tornando-se permanente depois; purificação
em cada leitura, felicidade por felicidade, som em cada toque, palavra por palavra.