A Garganta da Serpente
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Você sabia...

(Leanan Sidhe)

Não entendo o que as pessoas veem no amor. Precisam desesperadamente de companhia, iludem-se com promessas falsas e sonhos de uma vida em comum. Mas sempre alguém acaba ferido, sempre alguém se machuca.

Eu o conheci quando estava fragilizada. Havia perdido alguém a quem muito amei fazia pouco, sentia-me deprimida, vazia. E então ele entrou em minha vida. Era como um cavaleiro saído das novelas medievais. Honrado, corajoso, e estava ali para salvar a donzela em perigo.

Eu, que já andava descrente dos sentimentos, relutei. Duelei bravamente com meu coração, mas perdi. Em situações como essa, mesmo o cérebro sabendo a verdade, o coração, burro, teima em não aceitar.

- Dessa vez vai ser diferente - ele sempre diz. E a gente acredita. Eu acreditei.

Amei Henrique como jamais julguei possível amar alguém. Ele me trazia alegria e alento, mesmo em sua tristeza. Sua tristeza, aliás, completava a minha. Confortava meu coração saber que não estava sozinha, que alguém entendia o que eu estava passando. E displicentemente, embora com certo esforço, abri as portas dos meus sentimentos para que ele entrasse. Tirei a poeira, as teias de aranha. Fiz do meu peito um lugar aconchegante para receber um novo inquilino.

Era maravilhoso tê-lo comigo, mesmo que não fosse sempre. Aliás, era esse caráter esporádico que me agradava. Não gosto de compromissos e de prisões emocionais. Minha relação com Ricky era livre disso. Tínhamos sim compromisso um com o outro, mas jamais houve cobranças. Também nunca oficializamos nada. Nunca fomos namorados. Nunca fomos noivos. Nunca um casal oficial. Não precisávamos disso. Rótulos eram o que menos importavam, quando tínhamos um ao outro, corpo e alma.

Um ano se passou, e nesse tempo mais desencontros do que encontros. Não sou de fazer planos a dois, não me vejo partilhando minha vida com ninguém. Henrique quase derrubou essa barreira, era até divertido nos imaginar com um casal antigo, assistindo à TV, deitados no sofá. Quando estava comigo, dormia bem, um sono tranquilo e feliz. Nas noites em que não nos víamos, no entanto, meus sonhos me alertavam: "não se entregue, vai doer". Eu sabia disso, mas não queria acreditar. Pela primeira vez em muito tempo, sentia que amava alguém; não podia crer que estivesse errada.

- Burra! Ouça o que eu digo. O coração mente, não se deixe levar por ele. Sentimentos são traiçoeiros. São maus.

Eu fazia de conta que não ouvia as vozes em minha cabeça. Elas gritavam, mas eu as combatia com uma cartela inteira de aspirinas. Passaram a ser mais agressivas. Quando eu as ignorava, berravam em coro.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

- Não quero ouvir!

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

Já não adiantavam os remédios, era infantil tentar afastar as vozes com as mãos nos ouvidos, o vinho e as drogas também se tornaram banais.

- Amor, o que mais quero é ter você perto de mim, poder estar com você sempre e todas as noites vê-la adormecer em meus braços.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

- Não!

Henrique me olhou desconcertado.

- Não? Pensei que fosse o que você queria, também. Não me ama mais, Jen?

Eu olhava para ele e tentava, mas não via mais meu cavaleiro. Meu coração alternava entre batidas aceleradas e momentos de quase total inatividade. Senti o ar faltar. A vergonha por ter caído no conto da carochinha me machucava mais do que o "fora" que estava prestes a levar. Pessoas começam e terminam relacionamentos todos os dias, não havia nada de mais nisso. Mas eu podia ter evitado...

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

- Sinto que você precisa de alguém mais presente, Jen. Não estou conseguindo fazê-la feliz.

Olhei nos olhos dele, tentando encontrar algo que me tirasse daquele pesadelo. Ele havia me enganado! Eu, sempre tão cuidadosa, havia sido pega na mais antiga das armadilhas. Nenhuma mulher é diferente, afinal, e eu era prova disso: uma romântica ingênua e burra. Continuei a olhar naqueles olhos azuis, buscando algo que me situasse novamente na realidade. Ou no sonho. Queria continuar sonhando.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

Apertei os olhos, cobri novamente os ouvidos com as mãos. As vozes eram como pedras lançadas em minha mente. Precisava me concentrar, voltar a mim; precisava voltar ao meu centro e pensar. O que Ricky estava dizendo? Ele esperava uma resposta, sei disso. E eu precisava afastar as vozes... Senti as lágrimas rolarem, sem-vergonhas, pela face.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

- Você sabe que estamos certas. Ele a engana. Nunca a amou.

Aos poucos as vozes foram silenciando. Também elas queriam saber o que eu havia decidido. Também elas queriam ouvir a resposta, pôr um ponto final naquela farsa. A pressão nas minhas têmporas foi suavizando, as lágrimas secando. Abri os olhos, mas não havia ninguém na minha frente. Nunca houvera. Sim, as vozes estavam certas. Amei uma ilusão, e ilusões são efêmeras. O amor é uma ilusão, e eu sempre soube disso, apenas com Henrique eu quis crer que não precisava ser assim. Senti meu peito voltar ao normal, tornar-se oco novamente. Não permitiria mais essas ilusões.

- Você sabia que estávamos certas...

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