A Garganta da Serpente
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O Retrato

(Lucineide Souto)

Por que era manhã.

O rosto úmido, envelhecido deitava fora da rede e o lacrimejante par de olhos castanhos, ainda brilhantes sem o estigma da senilidade, acompanhava o trajeto da mão nervosa a revirar os papeis jogados à beira da cama, tateando o relógio para consultar a hora.

Seis! Vira o mostrador em algarismos romanos sob a luz da bateria. Comprara-o assim para não se levantar na madrugada fria, de insônia, fastidiosa, para mirar a contagem do tempo, longa, sofrida, desde que ele se foi. Ela o mandara embora de sua vida. Amava-o muito. Costumava dizer-lhe: "Não me deixes te deixar porque assim estarei deixando a mim mesma".

Ele era infiel. Ela o deixou.

A cabeça reclinada na rede mostarda, bordada em alto relevo, não se queria erguer, enfrentar o dia, sem sol, embora seis horas marcassem o tempo. Ela vira! Seis horas, não tinha dúvidas.

A névoa observada pela janela aberta que varara a noite de calor intenso, impedia ares matinais a que ela se acostumara nos braços dele, com os lábios colados em seus lábios, as pernas entrelaçadas, a mão na cavilha de seu peito nu, como a pegar o coração batendo célere de amor por ela. "Eu te amo, Vidinha. Eu te amo e te amarei para sempre." Ele disse. Disse e escrevera nos cadernos, nos pegadores de madeira do armário do banheiro, na tela do computador, em sua agenda diária... quisera até mesmo gravar no corpo tatuagem com o nome dela, a sentenciar o seu amor enquanto existisse a pele por sobre os ossos largos que lhe davam uma silhueta espadaúda que a fizera chamá-lo "meu deus grego".

Ela o recordava na manhã sentindo saudade dos longos cabelos dele por entre seus dedos, penteados com carinho, a cada vez que se arrumava para sair. Untava-o de creme e o pente escorregava macio numa repetição ordenada que lhe satisfazia a alma. Cabelos lindos, cacheados, pintados, por pura vaidade... 33 anos, mas ele dizia 39 para diminuir a diferença (26 anos), ciúme doentio o seu por ela... revoltada... se ele era tudo em sua vida.

Infiel. Ela não o aceitava assim. "Não te divido com ninguém, prefiro deixar-te a ter o teu amor fracionado. Não gosto de sociedade, principalmente em questão amorosa. Vá para as outras. Esqueça-me. Se eu não te esquecer, morrerei, mas não te quero mais... nunca mais."

As outras caluniavam-na, enciumadas.

Ele a queria de mãos dadas no shopping... abraçando-o enquanto dirigia, com as mãos acariciando-lhe as pernas, e os lábios roçando-lhe o rosto. Caminhando... ela se urinou de tanto rir, em plena avenida... continuava a sorrir, freneticamente, a urina descendo-lhe pelas pernas, descendo fartamente... ela sorrindo... ele sorrindo... só se amavam há três meses... ele dizia: "És a única em minha vida". A urina... o riso... o amor nos olhos, no beijo, nas mãos dele, ávidas, no peito desordenado... o amor.

Mentiroso! Foi assim, ela gritou. E outra e mais outra mulher a telefonar-lhe, a tirar-lhe o sossego, a fazer-lhe sangrar a alma. Demônios! Velhas ridículas, oferecidas, mal-amadas, sem amor-próprio... suas rivais, ela entendera.

E vieram as brigas a tomarem o tempo dos carinhos, as ofensas mútuas, o desespero, a dor, o pranto. Quatro olhos em chama na expressão do amor. Quatro olhos... a dor... quatro olhos - "um vale de lágrimas" -... quatro mãos... a blusa arrancada... os corpos... sem manhã, sem tarde... a rede a embalar pecados e sonhos... a cama a esperar... ninguém foi tão amado - ela sabia. Ninguém foi tão querido - ele sabia.

E a parede fria contrastava com a ardência dos pés em repouso - os dela-, quando emborcada e com o braço dobrado apoiando a cabeça contemplava o rosto belo de seu "Moicano" e dizia a si mesma: " Tu és meu, sempre o serás, pois que te elegi meu grande amor."

Ela folgava a alma na repetição doce que lhe enchia os ouvidos: "Eu te amo, eu te amo, minha linda mulher - mas ela sabia, não era bela. Exagera em tuas carícias, exagera em teu amor. E, quando absorta em outros misteres, ele, docemente, advertia-a: "Tem um homem ao teu lado".

Sedutor! Miserável, sedutor! Traidor... ela o xingava.

Ele sempre negou: "Só tenho você. Só quero você. Acredite em mim. Vamos viver bem. Não dê ouvido a quem lhe inferniza os dias. Elas querem isto mesmo... que a gente rompa. Vidinha, não faça assim, quero viver com você para sempre... vamos casar, peça logo esse maldito divórcio. Moramos juntos, mas quero casar, ser seu marido, dar-lhe o meu nome". E nesses momentos, enciumava do ex - o dela - . E vinham as cenas por causa do passado que ela vivera... um marido... dois maridos... dois namorados... antes dele - coisa recente, uns dois anos -, a bem dizer.

Choro, palavras ásperas, noites mal-dormidas, manhãs sem lumes da aurora... um padecer descabido, injustificado - o dele, o dela - enquanto o amor explodia em seus corações. Então, ele a segurava, abraçava-a forte e lhe beijava a boca intensamente. Ela enlanguescia a pouco e pouco, extasiando-se no beijo que lhe excedia a alma em desejo pleno. E se sentia conquistadora e conquistada e beijava seu homem tão profundamente, como se fosse aquele o último momento de suas vidas.
Ele a amava - a seu modo -, na explosão dos seus ciúmes doentios... a vigiar-lhe os passos... não a deixava sozinha, não a queria com ninguém... tinha ciúmes.

Você mudou - disse-lhe ela um dia. "Não invente histórias, eu te amo, Vidinha, e só tenho a ti em minha vida"
.
Mentira! Ela pensava: sei que ele está me traindo. Vou deixa-lo, vou manda-lo embora de minha vida... seus ciúmes...

As coisas dele arrumadas... três vezes... uma delas, colocadas no carro... Ele pediu para ficar. "Vidinha, não sei mais viver sem você." A reconciliação... e o amor foi mais terno... mais selvagem... Um dia, ela não mais cedeu. Chorando, ele se foi, deixando-lhe ao sair, por sobre o corpo, seu lençol de ursinho que tem desde menino. "Eis a prova de que eu te amo... meu lençol do qual não me separo". Era um domingo... 29 de maio.

Os retratos ficaram... ele os retirou da bagagem. Ficaram outras coisas... o computador... dentre elas, o pente verde de dentes largos que deslizava mansamente por sobre os cabelos dele, todas as manhãs, como a cumprir uma devoção. Todas as noites... os cabelos jogados sobre o rosto dela por força do abraço, na rede mostarda, bordada, no quarto amplo, embalando corpos - um só corpo... a bem dizer, pois que eram a mesma alma... - o reflexo dos espelhos reproduzindo - o. O riso a encher o aposento (mais nos lábios dele), em promessa constante de amor... em juras "Juntos, felizes para sempre - a senha."

É. Lá vem a saudade insana arrastando correntes, devastando a seara do pensamento. O telefone não pára... ele, em mensagens porque ela não quer atende-lo. "Toque telefone, não te vou atender". Ele insiste... dez... quinze... vinte vezes consecutivas... por fim, ela pergunta em mensagem: "o que você quer?"

Então, a noite inteira recebe mensagens "Minha gata, sempre te amarei. Volte para mim."

As lágrimas quentes por sobre o rosto. E para si mesma, responde: "Não, Havita - porque carinhoso apelido -, não te divido com ninguém, portanto, não voltarei para ti."

E pesam as mágoas em choro vertido, no contar e desfiar dos segundos. Mais uma noite insone a enrugar-lhe os olhos.

Os retratos... ela não quer olha-los... sabe que ele está noutros braços. Não aceita. Não perdoa.

E sabe que está morrendo - isto é antigo - como sua blusa cacharrel, sempre na moda... preta, de punhos vermelhos - o crepúsculo -, depois as sombras. Pois é, depois as sombras.

E o retrato da mãe - mulher belíssima, há trinta e cinco anos em outras planuras - envelhecido, pendurado à parede, ouve-lhe a confissão, presencia-lhe o amargor... E os olhos mexem-se azuis, entristecidos, a transtornar-lhe a serenidade peculiar dos mortos, enquanto os lábios mudos, falam, docemente, palavras que só as mães proferem numa noite cumprida, ansiosa, em que ela é ele, em que ele é ela na fusão de um sentimento afogueado - só deles -, sem rivais, sem notas de adeus... Distantes... Próximos, sempre próximos... Ela não cede.. Não atende ao telefone, não responde as mensagens... Olha o retrato da mãe, levanta-se, beija-o, conversa com ele. Deita-se. A rede mostarda chora nas escápulas uma saudade infinda. O silêncio sufocante o vento quebra ao farfalhar a palmeira, atrás da janela... Voz difusa por entre as folhas... O nome dele... O pensamento cruza mundos -. o dele, o dela -, em qual dimensão?

Em qual leito ele...

E, sabe ela a sentença.

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