Por que era manhã.
O rosto úmido, envelhecido deitava fora da rede e o lacrimejante par
de olhos castanhos, ainda brilhantes sem o estigma da senilidade, acompanhava
o trajeto da mão nervosa a revirar os papeis jogados à beira da
cama, tateando o relógio para consultar a hora.
Seis! Vira o mostrador em algarismos romanos sob a luz da bateria. Comprara-o
assim para não se levantar na madrugada fria, de insônia, fastidiosa,
para mirar a contagem do tempo, longa, sofrida, desde que ele se foi. Ela o
mandara embora de sua vida. Amava-o muito. Costumava dizer-lhe: "Não
me deixes te deixar porque assim estarei deixando a mim mesma".
Ele era infiel. Ela o deixou.
A cabeça reclinada na rede mostarda, bordada em alto relevo, não
se queria erguer, enfrentar o dia, sem sol, embora seis horas marcassem o tempo.
Ela vira! Seis horas, não tinha dúvidas.
A névoa observada pela janela aberta que varara a noite de calor intenso,
impedia ares matinais a que ela se acostumara nos braços dele, com os
lábios colados em seus lábios, as pernas entrelaçadas,
a mão na cavilha de seu peito nu, como a pegar o coração
batendo célere de amor por ela. "Eu te amo, Vidinha. Eu te amo e
te amarei para sempre." Ele disse. Disse e escrevera nos cadernos, nos
pegadores de madeira do armário do banheiro, na tela do computador, em
sua agenda diária... quisera até mesmo gravar no corpo tatuagem
com o nome dela, a sentenciar o seu amor enquanto existisse a pele por sobre
os ossos largos que lhe davam uma silhueta espadaúda que a fizera chamá-lo
"meu deus grego".
Ela o recordava na manhã sentindo saudade dos longos cabelos dele por
entre seus dedos, penteados com carinho, a cada vez que se arrumava para sair.
Untava-o de creme e o pente escorregava macio numa repetição ordenada
que lhe satisfazia a alma. Cabelos lindos, cacheados, pintados, por pura vaidade...
33 anos, mas ele dizia 39 para diminuir a diferença (26 anos), ciúme
doentio o seu por ela... revoltada... se ele era tudo em sua vida.
Infiel. Ela não o aceitava assim. "Não te divido com ninguém,
prefiro deixar-te a ter o teu amor fracionado. Não gosto de sociedade,
principalmente em questão amorosa. Vá para as outras. Esqueça-me.
Se eu não te esquecer, morrerei, mas não te quero mais... nunca
mais."
As outras caluniavam-na, enciumadas.
Ele a queria de mãos dadas no shopping... abraçando-o enquanto
dirigia, com as mãos acariciando-lhe as pernas, e os lábios roçando-lhe
o rosto. Caminhando... ela se urinou de tanto rir, em plena avenida... continuava
a sorrir, freneticamente, a urina descendo-lhe pelas pernas, descendo fartamente...
ela sorrindo... ele sorrindo... só se amavam há três meses...
ele dizia: "És a única em minha vida". A urina... o
riso... o amor nos olhos, no beijo, nas mãos dele, ávidas, no
peito desordenado... o amor.
Mentiroso! Foi assim, ela gritou. E outra e mais outra mulher a telefonar-lhe,
a tirar-lhe o sossego, a fazer-lhe sangrar a alma. Demônios! Velhas ridículas,
oferecidas, mal-amadas, sem amor-próprio... suas rivais, ela entendera.
E vieram as brigas a tomarem o tempo dos carinhos, as ofensas mútuas,
o desespero, a dor, o pranto. Quatro olhos em chama na expressão do amor.
Quatro olhos... a dor... quatro olhos - "um vale de lágrimas"
-... quatro mãos... a blusa arrancada... os corpos... sem manhã,
sem tarde... a rede a embalar pecados e sonhos... a cama a esperar... ninguém
foi tão amado - ela sabia. Ninguém foi tão querido - ele
sabia.
E a parede fria contrastava com a ardência dos pés em repouso -
os dela-, quando emborcada e com o braço dobrado apoiando a cabeça
contemplava o rosto belo de seu "Moicano" e dizia a si mesma: "
Tu és meu, sempre o serás, pois que te elegi meu grande amor."
Ela folgava a alma na repetição doce que lhe enchia os ouvidos:
"Eu te amo, eu te amo, minha linda mulher - mas ela sabia, não era
bela. Exagera em tuas carícias, exagera em teu amor. E, quando absorta
em outros misteres, ele, docemente, advertia-a: "Tem um homem ao teu lado".
Sedutor! Miserável, sedutor! Traidor... ela o xingava.
Ele sempre negou: "Só tenho você. Só quero você.
Acredite em mim. Vamos viver bem. Não dê ouvido a quem lhe inferniza
os dias. Elas querem isto mesmo... que a gente rompa. Vidinha, não faça
assim, quero viver com você para sempre... vamos casar, peça logo
esse maldito divórcio. Moramos juntos, mas quero casar, ser seu marido,
dar-lhe o meu nome". E nesses momentos, enciumava do ex - o dela - . E
vinham as cenas por causa do passado que ela vivera... um marido... dois maridos...
dois namorados... antes dele - coisa recente, uns dois anos -, a bem dizer.
Choro, palavras ásperas, noites mal-dormidas, manhãs sem lumes
da aurora... um padecer descabido, injustificado - o dele, o dela - enquanto
o amor explodia em seus corações. Então, ele a segurava,
abraçava-a forte e lhe beijava a boca intensamente. Ela enlanguescia
a pouco e pouco, extasiando-se no beijo que lhe excedia a alma em desejo pleno.
E se sentia conquistadora e conquistada e beijava seu homem tão profundamente,
como se fosse aquele o último momento de suas vidas.
Ele a amava - a seu modo -, na explosão dos seus ciúmes doentios...
a vigiar-lhe os passos... não a deixava sozinha, não a queria
com ninguém... tinha ciúmes.
Você mudou - disse-lhe ela um dia. "Não invente histórias,
eu te amo, Vidinha, e só tenho a ti em minha vida"
.
Mentira! Ela pensava: sei que ele está me traindo. Vou deixa-lo, vou
manda-lo embora de minha vida... seus ciúmes...
As coisas dele arrumadas... três vezes... uma delas, colocadas no carro...
Ele pediu para ficar. "Vidinha, não sei mais viver sem você."
A reconciliação... e o amor foi mais terno... mais selvagem...
Um dia, ela não mais cedeu. Chorando, ele se foi, deixando-lhe ao sair,
por sobre o corpo, seu lençol de ursinho que tem desde menino. "Eis
a prova de que eu te amo... meu lençol do qual não me separo".
Era um domingo... 29 de maio.
Os retratos ficaram... ele os retirou da bagagem. Ficaram outras coisas... o
computador... dentre elas, o pente verde de dentes largos que deslizava mansamente
por sobre os cabelos dele, todas as manhãs, como a cumprir uma devoção.
Todas as noites... os cabelos jogados sobre o rosto dela por força do
abraço, na rede mostarda, bordada, no quarto amplo, embalando corpos
- um só corpo... a bem dizer, pois que eram a mesma alma... - o reflexo
dos espelhos reproduzindo - o. O riso a encher o aposento (mais nos lábios
dele), em promessa constante de amor... em juras "Juntos, felizes para
sempre - a senha."
É. Lá vem a saudade insana arrastando correntes, devastando a
seara do pensamento. O telefone não pára... ele, em mensagens
porque ela não quer atende-lo. "Toque telefone, não te vou
atender". Ele insiste... dez... quinze... vinte vezes consecutivas... por
fim, ela pergunta em mensagem: "o que você quer?"
Então, a noite inteira recebe mensagens "Minha gata, sempre te
amarei. Volte para mim."
As lágrimas quentes por sobre o rosto. E para si mesma, responde: "Não,
Havita - porque carinhoso apelido -, não te divido com ninguém,
portanto, não voltarei para ti."
E pesam as mágoas em choro vertido, no contar e desfiar dos segundos.
Mais uma noite insone a enrugar-lhe os olhos.
Os retratos... ela não quer olha-los... sabe que ele está noutros
braços. Não aceita. Não perdoa.
E sabe que está morrendo - isto é antigo - como sua blusa cacharrel,
sempre na moda... preta, de punhos vermelhos - o crepúsculo -, depois
as sombras. Pois é, depois as sombras.
E o retrato da mãe - mulher belíssima, há trinta e cinco
anos em outras planuras - envelhecido, pendurado à parede, ouve-lhe a
confissão, presencia-lhe o amargor... E os olhos mexem-se azuis, entristecidos,
a transtornar-lhe a serenidade peculiar dos mortos, enquanto os lábios
mudos, falam, docemente, palavras que só as mães proferem numa
noite cumprida, ansiosa, em que ela é ele, em que ele é ela na
fusão de um sentimento afogueado - só deles -, sem rivais, sem
notas de adeus... Distantes... Próximos, sempre próximos... Ela
não cede.. Não atende ao telefone, não responde as mensagens...
Olha o retrato da mãe, levanta-se, beija-o, conversa com ele. Deita-se.
A rede mostarda chora nas escápulas uma saudade infinda. O silêncio
sufocante o vento quebra ao farfalhar a palmeira, atrás da janela...
Voz difusa por entre as folhas... O nome dele... O pensamento cruza mundos -.
o dele, o dela -, em qual dimensão?
Em qual leito ele...
E, sabe ela a sentença.