A Garganta da Serpente
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Tio Pedrinho

(Leila Silva)

Tio Pedrinho tomou um copo de água, caminhou devagar até o quarto, rezou e foi dormir. Lá pelas tantas escutou um barulho no quarto, levantou-se de um pulo, pegou a espingarda e apontou para o sujeito "Que é que cé tá querendo aqui, ô nortistinho?", perguntou com voz determinada, tentando disfarçar o medo. Ninguém respondeu. Ele ajeitou os óculos e percebeu que o 'nortistinho' era a sua própria imagem refletida no espelho do guarda-roupa. Riu de si mesmo, largou a espingarda num canto e foi tentar achar o sono outra vez porque era sábado e domingo de manhã era dia de ajudar o padre a celebrar a missa. Rezou mais uma vez para ver se o sono voltava. Com essa história do nortistinho tinha perdido a vontade de dormir. Levou um belo susto. Também, todo mundo só fala desse Orlando Sabino e é nisso que dá, a gente começa a dormir e acorda assustado, vendo coisas, pensava ele. Orlando Sabino era o bandido mais temido desses dias. Ele já tinha matado com grandes requintes umas vinte pessoas, ou cinquenta ou cem...os números e os fatos variavam dependendo do contador. Enfim, tirou os óculos, colocou-os à mão no banquinho ao lado da cama e dormiu.

De manhã vestiu-se elegantemente, pôs o chapéu e caminhou devagarinho até a igreja. Lembrou-se do susto durante a noite. Já tinha esquecido completamente. Riu de novo de si mesmo. Aquilo foi engraçado. E ele chamando a si mesmo de nortistinho! Era muito engraçado. Se não estivesse na rua ia rir de verdade mas ali, se passassem por ele ia pensar que estava louco. Lembrou-se da mulher chata e feia que deixara em casa. Nem se desejaram bom dia. Tomou o café que ela tinha preparado e foi tudo. Ela era velha agora mas já era feia e chata quando jovem. Casou-se com ela meio assim de susto. Não pensou direito. Analisava. Que pena que não conhecera a irmã dela melhor antes do casamento. Bom, agora já estava feito. Já estava feito e já faziam muitos anos, muitos filhos, muitos netos. Não tinha muito sentido pensar nisso agora e não era culpa dele se não teve tempo de decidir direito antes de casar-se com essa megera. E era culpa dele se a irmã dela ficava lá na casa dele tentando? Não era fácil ter aquela mulher feia e chata com uma irmã tão boazinha e fácil. Um dia não resistiu e os dois, ele e a cunhada pecaram. Depois da primeira vez foi fácil fazer novo e de novo até que a cunhada ficou grávida e apesar de todos os esforços não teve como abafar o escândalo. Depois disso cada um foi para o seu canto. Ele foi enfrentar a mulher e a cunhada virou mulher da vida. Mais ou menos mulher da vida, vivia com um, depois com outro. O tempo ajeita tudo. Analisava.

Assim, sem se dar conta chegou à praça, cumprimentou o farmacêutico que estava sentado no banco em frente à farmácia. "Esperando a hora da missa, seu Zezinho?" Atravessou a rua, andou mais um quarteirão. Do outro lado da rua viu o marido da sua neta e cumprimentou-o um pouco envergonhado lembrando-se do acidente com a espingarda. Ele tinha pedido uma carona ao marido da neta e estava levando a espingarda carregada entre os joelhos, apontada para cima. Quando o carro passou por uma estrada esburacada, chacoalhando muito a espingarda disparou e fez um furo no teto do carro. Não sabendo o que dizer, tio Pedrinho disse "Ih, pegou na lamprinha". Ele era engraçado, tio Pedrinho. O meu primo, entretanto, não achou muito engraçado o buraco no seu carro. Ficou danado de raiva. Ainda assim, atravessou a rua e veio pedir a benção e tio Pedrinho respondeu, muito digno "Deus te abençoe, meu filho. Onde é que você está indo?" Ele estava indo para a fazenda. Nunca ia à missa.

Chegou à igreja, tirou o chapéu na porta, entrou e foi andando até o cômodo detrás do altar. Lá onde o padre se vestia e onde guardavam o cálice, o vinho e as hóstias. O padre já estava se arrumando. Ele não vestia batina no dia a dia, só para celebrar a missa e quando ele erguia as mãos consagrando a hóstia a gente podia ver a barra das calças dele. Eu achava engraçado isso. Não sei direito a razão, eu era criança. Aquela barra da calça destoava do resto, não combinava com o espetáculo. Eu achava tudo muito bonito mas não gostava daquela bainha aparecendo. Era um desmazelo da parte do padre e parecia acordar a gente para a realidade. Ninguém estava ali para ver a realidade. A gente estava ali para ver o padre de branco, a hóstia branca, o altar forrado de branco com umas flores aqui e ali, as três irmãs na primeira fila e o tio Pedrinho ajudando o padre. Daí a gente olhava para baixo e via a bainha marrom do padre. Ah, não! Eu nunca me queixei, entretanto, se não ainda levava uns cascudos da minha avó que era irmã do tio Pedrinho. "E porque é que você está olhando para os pés do padre enquanto deveria estar olhando para a hóstia que ele está consagrando?" Eu já sabia disso. Eu era criança mas não era boba, sabia que quanto menos falasse, melhor. Era assim a minha infância nesta grande família e nesta pequena cidade.

Com as palmas das mãos para cima, todo mundo rezava "Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino....." Depois as irmãs entoavam o coro "Eu sou o caminho, a verdade e a vida...." E todos cantavam desafinadamente. No final o padre dizia "Vão em paz, que o Senhor vos acompanhe". Então todo mundo ia saindo, cumprimentando todo mundo. Tio Pedrinho saia também. Todos discutiam por uns minutos na frente da igreja até que sentiam calor ou fome e cada um voltava para as suas casas para viver o domingo.

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