Tio Pedrinho tomou um copo de água, caminhou devagar até o quarto,
rezou e foi dormir. Lá pelas tantas escutou um barulho no quarto, levantou-se
de um pulo, pegou a espingarda e apontou para o sujeito "Que é que
cé tá querendo aqui, ô nortistinho?", perguntou com
voz determinada, tentando disfarçar o medo. Ninguém respondeu.
Ele ajeitou os óculos e percebeu que o 'nortistinho' era a sua própria
imagem refletida no espelho do guarda-roupa. Riu de si mesmo, largou a espingarda
num canto e foi tentar achar o sono outra vez porque era sábado e domingo
de manhã era dia de ajudar o padre a celebrar a missa. Rezou mais uma
vez para ver se o sono voltava. Com essa história do nortistinho tinha
perdido a vontade de dormir. Levou um belo susto. Também, todo mundo
só fala desse Orlando Sabino e é nisso que dá, a gente
começa a dormir e acorda assustado, vendo coisas, pensava ele. Orlando
Sabino era o bandido mais temido desses dias. Ele já tinha matado com
grandes requintes umas vinte pessoas, ou cinquenta ou cem...os números
e os fatos variavam dependendo do contador. Enfim, tirou os óculos, colocou-os
à mão no banquinho ao lado da cama e dormiu.
De manhã vestiu-se elegantemente, pôs o chapéu e caminhou
devagarinho até a igreja. Lembrou-se do susto durante a noite. Já
tinha esquecido completamente. Riu de novo de si mesmo. Aquilo foi engraçado.
E ele chamando a si mesmo de nortistinho! Era muito engraçado. Se não
estivesse na rua ia rir de verdade mas ali, se passassem por ele ia pensar que
estava louco. Lembrou-se da mulher chata e feia que deixara em casa. Nem se
desejaram bom dia. Tomou o café que ela tinha preparado e foi tudo. Ela
era velha agora mas já era feia e chata quando jovem. Casou-se com ela
meio assim de susto. Não pensou direito. Analisava. Que pena que não
conhecera a irmã dela melhor antes do casamento. Bom, agora já
estava feito. Já estava feito e já faziam muitos anos, muitos
filhos, muitos netos. Não tinha muito sentido pensar nisso agora e não
era culpa dele se não teve tempo de decidir direito antes de casar-se
com essa megera. E era culpa dele se a irmã dela ficava lá na
casa dele tentando? Não era fácil ter aquela mulher feia e chata
com uma irmã tão boazinha e fácil. Um dia não resistiu
e os dois, ele e a cunhada pecaram. Depois da primeira vez foi fácil
fazer novo e de novo até que a cunhada ficou grávida e apesar
de todos os esforços não teve como abafar o escândalo. Depois
disso cada um foi para o seu canto. Ele foi enfrentar a mulher e a cunhada virou
mulher da vida. Mais ou menos mulher da vida, vivia com um, depois com outro.
O tempo ajeita tudo. Analisava.
Assim, sem se dar conta chegou à praça, cumprimentou o farmacêutico
que estava sentado no banco em frente à farmácia. "Esperando
a hora da missa, seu Zezinho?" Atravessou a rua, andou mais um quarteirão.
Do outro lado da rua viu o marido da sua neta e cumprimentou-o um pouco envergonhado
lembrando-se do acidente com a espingarda. Ele tinha pedido uma carona ao marido
da neta e estava levando a espingarda carregada entre os joelhos, apontada para
cima. Quando o carro passou por uma estrada esburacada, chacoalhando muito a
espingarda disparou e fez um furo no teto do carro. Não sabendo o que
dizer, tio Pedrinho disse "Ih, pegou na lamprinha". Ele era engraçado,
tio Pedrinho. O meu primo, entretanto, não achou muito engraçado
o buraco no seu carro. Ficou danado de raiva. Ainda assim, atravessou a rua
e veio pedir a benção e tio Pedrinho respondeu, muito digno "Deus
te abençoe, meu filho. Onde é que você está indo?"
Ele estava indo para a fazenda. Nunca ia à missa.
Chegou à igreja, tirou o chapéu na porta, entrou e foi andando
até o cômodo detrás do altar. Lá onde o padre se
vestia e onde guardavam o cálice, o vinho e as hóstias. O padre
já estava se arrumando. Ele não vestia batina no dia a dia, só
para celebrar a missa e quando ele erguia as mãos consagrando a hóstia
a gente podia ver a barra das calças dele. Eu achava engraçado
isso. Não sei direito a razão, eu era criança. Aquela barra
da calça destoava do resto, não combinava com o espetáculo.
Eu achava tudo muito bonito mas não gostava daquela bainha aparecendo.
Era um desmazelo da parte do padre e parecia acordar a gente para a realidade.
Ninguém estava ali para ver a realidade. A gente estava ali para ver
o padre de branco, a hóstia branca, o altar forrado de branco com umas
flores aqui e ali, as três irmãs na primeira fila e o tio Pedrinho
ajudando o padre. Daí a gente olhava para baixo e via a bainha marrom
do padre. Ah, não! Eu nunca me queixei, entretanto, se não ainda
levava uns cascudos da minha avó que era irmã do tio Pedrinho.
"E porque é que você está olhando para os pés
do padre enquanto deveria estar olhando para a hóstia que ele está
consagrando?" Eu já sabia disso. Eu era criança mas não
era boba, sabia que quanto menos falasse, melhor. Era assim a minha infância
nesta grande família e nesta pequena cidade.
Com as palmas das mãos para cima, todo mundo rezava "Pai nosso que
estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso
reino....." Depois as irmãs entoavam o coro "Eu sou o caminho,
a verdade e a vida...." E todos cantavam desafinadamente. No final o
padre dizia "Vão em paz, que o Senhor vos acompanhe". Então
todo mundo ia saindo, cumprimentando todo mundo. Tio Pedrinho saia também.
Todos discutiam por uns minutos na frente da igreja até que sentiam calor
ou fome e cada um voltava para as suas casas para viver o domingo.