- Vá agora para a cama, mocinha! - ordenou o pai. Era sempre a mesma
cena, na hora de dormir. Gabriela enrolava, inventava tarefas de escola de última
hora, leituras para o dia seguinte, assuntos sérios para tratar com os
pais...qualquer coisa que a fizesse ficar pelo menos mais 10 minutos acordada.
Ou melhor, em pé, porque acordada ela ficava mesmo estando na cama.
- Ah, paizinho...só mais 10 minutinhos... - choramingou, enquanto se
encaminhava relutante para a cama.
O pai então a cobriu: primeiro o lençol, depois o edredom de
ovelhinhas. Fazia muito frio aquela noite. O inverno estava sendo um dos mais
rigorosos dos últimos anos. Não se lembrava de noites tão
frias desde o ano em que Gabriela nascera.
- Dorme, Gabi. Amanhã você terá um dia longo - disse, dando-lhe
um beijo na testa e acariciando os loiros cabelos da criança.
A porta do quarto de Gabriela ficou entreaberta, a luz do abajur acesa, iluminando
de leve a noite da menina, que era suavemente embalada pelos noturnos de Chopin.
- Ela dormiu? - Gabriela ouviu a mãe perguntar.
O pai deu uma risada.
- Vai dormir. Mas aposto que ainda está acordada, ouvindo o que estamos
falando - e levantando um pouco mais a voz: -, não é, Gabi?
A mãe também riu. Conheciam a filha que tinham. No quarto, Gabriela
esforçava-se para desmentir os pais, dar a impressão de que estava
no milionésimo sono. Chegava a ressonar alto, até mesmo roncar.
Na sala, os pais só riam. Inocente...mal sabia ela que quanto mais se
esforçava para parecer que dormia, mais falso soava.
- 1 carneirinho, 2 carneirinhos, 3 carneirinhos... - fechou os olhos e começou
a contar - 4, 5 carneiri...6, 7, 8, 9...
Contar carneirinhos nunca funcionara com ela. Iniciavam pulando a cerquinha,
bem devagar, um depois do outro. Aos poucos, no entanto, começavam a
pular mais rápido, e então vários punham-se a saltar juntos.
Não demorava muito, aparecia...
- Cuidado, o lobo!
...o lobo. E então era um tal de carneirinhos espalhados por todo o
campo visual da menina, o lobo correndo atrás deles, uivando e chamando
a matilha, que prontamente respondia. Ao final, o que deveria fazer Gabriela
dormir, mantinha-a ainda mais desperta.
Enquanto carneirinhos e lobos corriam e brincavam de pega-pega na imaginação
de Gabriela, seus pais se organizavam para também ir dormir. Em poucos
minutos, a casa toda estava em silêncio, a não ser por Chopin,
que dedilhava seus noturnos no quarto de Gabi.
A menina, sabendo que seus pais já haviam ido dormir, levantou-se e
abriu a janela, sentando-se em uma poltrona em frente a ela, abraçada
em seu urso de pelúcia. Sentia-se muito bem à noite. Adorava ficar
olhando as estrelas e a lua, ouvindo o silêncio que só a noite
sabe produzir.
Riu sozinha. Enquanto olhava a rua da janela de seu quarto, percebeu que os
carneirinhos e os lobos continuavam correndo em sua mente. Era, na verdade,
como se estivessem ali mesmo em seu quarto. Será que seus pais conseguiam
ouvir a algazarra causada pelos bichos? Sentiu frio, fechou a janela e foi sentar-se
em sua cama.
- Shshshshshshshhhhh...vão acordar meus pais - sussurrou a menina, mas
os bichos não pareciam se importar.
Um lobo saltou sobre um dos carneiros, e Gabriela achou que mordia o pescoço
do bichinho felpudo por brincadeira, como filhotes brincando no chão
da sala. Mas as presas do animal cravaram-se no carneirinho, e quando o lobo
as puxou, trouxe consigo pele, pêlo e sangue. Muito sangue.
Gabriela continuou recostada em sua cama, abraçada ao urso de pelúcia.
Ela observava com olhos atentos àquela brincadeira violenta, que logo
teve a adesão dos outros lobos. Os cordeiros ganiam, gritavam; os lobos
rosnavam alto, latiam e uivavam, enquanto destrinchavam a carne à sua
frente. Gabi não emitia som algum. Chopin continuava a dedilhar as teclas
do piano.
O lobo que havia começado a carnificina, e que parecia ser o líder
da matilha, parou em frente ao último carneiro, que não havia
sido tocado pelos dentes de nenhum dos cães ferozes. Sentou-se em sua
frente, e o cordeiro fez o mesmo. Os demais animais continuavam a batalha ao
fundo. Cordeiro e lobo então voltaram suas cabeças para o onde
estava Gabriela. A garota largou seu urso ao lado do travesseiro e engatinhou
na cama até onde estavam os bichos, sentando-se sobre as penas ao chegar
bem perto.
Os olhos vermelhos do lobo brilhavam. Os olhos castanhos do carneiro também.
Gabriela olhava alternadamente de um para o outro. Sem demonstrar sinal de medo,
acariciou o pêlo do lobo. Depois afundou a mãozinha na lã
macia do cordeiro.
- Desculpa - disse ela, acariciando o pêlo branco do carneiro, beijando-lhe
o focinho.
Olhou fundo nos olhos do lobo, saiu da cama e mergulhou os pezinhos no rio
de sangue que cobria o chão de seu quarto. Saiu pela porta entreaberta
e foi até a cozinha, deixando marcas vermelhas pelo assoalho. Abriu a
gaveta da pia e de lá tirou uma faca de churrasco afiada, que carregou
pela casa toda até o quarto dos pais.
O lobo atacou o último dos cordeiros, arrancando-lhe nacos de carne
ensanguentada. Dirigiu-se então para o quarto do casal e sentou-se
à porta, observando Gabriela. A menina, com total domínio de seus
movimentos, dotada de uma força descomunal e destreza com a lâmina,
esfaqueou dezenas de vezes o pai, depois a mãe. Quem depois viu a cena,
jura que aquele estrago jamais poderia ter sido provocado por uma criança
de seis anos sozinha.
Gabriela largou a faca aos pés da cama, beijou a testa do pai e acariciou-lhe
os cabelos, depois beijou o rosto da mãe, passando-lhe a mão pela
face. Desceu da cama e caminhou a passos firmes, sem olhar para trás,
para onde estava o lobo, lhe esperando. Foram juntos até seu quarto.
Gabi abriu a janela de onde sempre observava a noite, e por ali saíram,
enquanto Chopin continuava a tocar...