Nenhuma outra época na História foi tão rica e de tanta
fartura para mim quanto o Século XVIII. Vocês, que me acompanham
já há um certo tempo, sabem que vivo de inspirar artistas - e
me alimentar de seu sangue. Nessa época Inglaterra, França, Portugal,
Brasil, vários países fervilhavam com o romantismo: era moda adorar
platonicamente uma musa inspiradora, criar muito, viver intensamente e morrer
jovem, de preferência, tragicamente. Eu não podia querer nada mais
perfeito. Praticamente não tive trabalho para me aproximar dos jovens
artistas e seduzi-los.
Escolhi a França para viver este período. Sempre adorei a língua
francesa: bem falada, soa como notas musicais, tem um apelo altamente sensual,
é macia para os ouvidos. Nasci na Irlanda, morei minha vida inteira enquanto
mortal na Inglaterra, país que verdadeiramente amo. Imortal, viajei muito
e morei em muitos países, e portanto, aprendi muitas línguas.
Mas de todos os idiomas do mundo, é o Francês que mais me excita
os sentidos.
Outro motivo que me levou a escolher a França, foi o fervor revolucionário:
ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade em contraste com a tirania de
Napoleão. Além da língua, a França tinha um charme,
naqueles dias - e apesar de todos os problemas - que nenhum outro lugar possuía:
era o país das Artes, e Paris, a capital do Amor e da Beleza. Homens
e mulheres nobres dividiam o espaço nos cafés, saraus e teatros
com moças não tão bem nascidas. Em nome da elegância,
no entanto, poucas vezes dizia-se algo. Na grande maioria, fingia-se não
ver o que se apresentava tão claramente aos olhos, ou simplesmente cobria-os
com um movimento de leque. Um delicioso show de hipocrisias.
Foi em meio à explosão cultural que cheguei à França.
Uma moça de boa estirpe de uma tradicional família inglesa, que
desejava aprimorar seus dotes artísticos na capital cultural do mundo.
Se não tivesse feito mais nenhum esforço para ganhar a confiança
e simpatia dos franceses, por si só isto já teria sido suficiente:
era como uma rendição inglesa à superioridade cultural
francesa. Mas eu não podia cometer erros, portanto nenhum detalhe foi
negligenciado.
Um mês antes de partir da Inglaterra, conheci um casal muito agradável
cuja filha, Fiona, estavam mandando a Paris, para que se hospedasse em casa
de amigos. Infelizmente uma estranha doença sanguínea acometeu
a família, que veio a falecer pouco tempo depois. Entretanto, como a
missiva já havia sido enviada, tomei minhas providências para que
aquela triste notícia não atravessasse o Canal, e fiz a viagem
no lugar da donzela. Hospedei-me em casa dos amigos de meus "pais",
como havia sido planejado e em seguida era recebida nos melhores salões
do país.
Recordo-me de uma ocasião em especial, quando fui convidada a tomar
parte de um sarau literário em casa de Monsieur Lacan. Havia,
entre os convidados, um jovem artista, Alain Montrose. Dizia-se que seria o
próximo Da Vinci ou Michelangelo, tal o seu talento com os pincéis
e as tintas. No entanto, embora lhe agradasse a pintura, era na poesia que Alain
queria gravar seu nome. E nessa área, o pobre já não obtinha
sucesso. Seus versos eram vazios; suas rimas, vulgares. Havia algumas semanas,
em outra reunião literária, seus amigos, de brincadeira, atiraram-lhe
ovos e tomates, quando se pôs a recitar seu poema. A brincadeira realmente
feriu Alain. Recolheu-se em seu íntimo, deixou de frequentar a noite
parisiense, não comia, estava pálido, triste e deprimido. A muito
custo o jovem Lacan havia conseguido arrastá-lo até ali aquela
noite.
- Vamos, homem, anime-se! Não se pode ser talentoso em tudo! Tens tuas
telas e tuas modelos... - dizia-lhe Lacan, com um sorriso malicioso.
- De nada me valem quando não tenho o dom da poesia - lamentava-se.
Lacan deixou o rapaz em seu canto, já sem argumentos ou ideias
que fizessem Alain Montrose abandonar a tristeza quando me viu, conversando
com outras senhoritas no jardim.
- Se não for demasiado atrevimento, permita-me...sou Auguste Lacan,
filho de Monsieur Lacan. Acredito que não tenhamos sido apresentados,
mademoiselle...
- Leanan Fiona Leatherdale - respondi, acrescentando: - mas meus amigos me
chamam simplesmente Leanan.
Auguste Lacan era charmoso, sem dúvida, mas era no talentoso Alain Montrose
que residia meu interesse. Era dele que eu queria me aproximar.
- O que há com seu amigo? - perguntei a Auguste.
- Está deprimido. Descobriu que, apesar de excepcional pintor, não
sabe compor versos.
Numa dissimulação bastante barata, mas que alcançou o
coração de meu novo amigo, uma única lágrima rolou
por minha face alva, ao ouvir aquela revelação. Auguste Lacan
então, sem dizer palavra, tomou minha mão e conduziu-me ao local
onde estava Alain, apresentou-nos e deixou-nos a sós.
Interessei-me realmente pelo tormento de Alain. Seu sofrimento por não
saber compor poesia era verdadeiro e tocante. Tentei consolá-lo com palavras
ternas, disse-lhe que acreditava no seu talento, que ainda seria um grande poeta.
Foi nesse momento somente que Alain olhou em meus olhos e sorriu. Um sorriso
meio desconcertado, um tanto incrédulo, mas confortado.
- Tentarei mais uma vez. Mas se não conseguir escrever um bom verso
entre uma dezena deles, prefiro que a Morte venha me embalar em seus braços.
- Quando transformamos os desejos em palavras, Alain, eles deixam se ser desejos,
e tornam-se agentes de nossa vontade. Cuidado com o que dizes em voz alta.
- Doce Leanan, obrigado. Escreverei uma ode em vossa homenagem - disse-me e
saiu, com o espírito renovado e a mente fervilhando de ideias,
palavras e rimas jorrando de seu peito. Sentia que conseguiria. Era aquele o
seu momento. Sentia que o poeta se formava dentro dele, e que em breve nasceria.
Auguste Lacan encontrou Alain em um café, dias depois. Entrava
afoito, com a respiração sôfrega. Parecia outro Alain Montrose,
uma cópia fisicamente fiel, mas que em comportamento nada o fazia lembrar
o antigo.
- Auguste, terminei!
- Terminou, terminou, mui bièn. Mas sente-se primeiro, Alain.
Peço que o garçon lhe traga uma xícara de café
e então me contas o que terminou, e que te deixou tão feliz.
Alain respirou fundo e num gesto mais contido e educado, puxou a cadeira que
o amigo lhe ofertava, deixando seus pertences na cadeira ao lado. O garçon
trouxe duas xícaras de café, que beberam civilizadamente.
- Certo, agora que já respirastes...o que há de tão excitante
para contar?
- Auguste, eu consegui! Terminei meu livro de poemas. Ela me inspirou. Leanan.
Minha dama ruiva, minha inglesa de olhos de esmeralda, minha doce Leanan. Está
aqui, leia!
Alain entregou ao amigo um calhamaço cheio de poemas escritos à
pena e nanquim. Falavam de dor, de sofrimento, de morte, mas também de
beleza e de amor. Todos os poemas eram dedicados a uma mesma mulher: Leanan.
Eram versos que traduziam sensações de um amor ingênuo mas
profundo. Neles, o poeta fugia com sua amada para as planícies verdes
da Irlanda, onde viviam de amor e de vinho. Eram visitados, vez ou outra, pelos
deuses. Sua felicidade era tanta que, determinada noite, chamou a atenção
de Afrodite. A deusa, ciumenta e invejosa, matou a jovem Leanan, e condenou
o poeta a vagar pela eternidade a tocar sua lira e cantar sua história.
O poeta, no entanto, pediu aos deuses, rogou por sua musa, implorou que fosse
feita a troca: sua vida de nada valia sem Leanan. Que os deuses o levassem,
mas a deixassem viver. E assim foi feito: o poeta morreu consumindo-se pela
morte de sua amada, e Leanan voltou à vida, mas em forma de Fada.
- Minha obra está completa, Auguste! Posso morrer, já não
me importa! - anunciou Alain em altos brados.
Claro que meu inocente artista não esperava ser ouvido. De alguma forma,
e por algum motivo que desconheço, as pessoas tendem a não levar
meus conselhos a sério. Tomam-nos como gracejos ou devaneios, às
vezes, mas nunca lhes dão a devida atenção. Se eu tivesse
um coração para ser partido, as palavras de Alain Montrose o teriam
feito em mil pedaços. Mas não tenho.
Certa noite, vi quando Alain chegou em casa, vindo de uma festa onde comemorara
seu sucesso, bêbado como nunca, carregado por um cocheiro. Cantava - ou
tentava cantar - uma canção de rendez-vous, abraçado
na pasta de couro que continha sua obra poética. Não era assim
que eu havia imaginado. Não queria que estivesse ébrio no derradeiro
momento de sua vida. Mas aquela felicidade tola estava começando a ficar
cansativa. Alain não pintava mais, não escrevia mais. Só
sabia ficar de um lado para o outro, de um café a outro, de um sarau
a outro, vangloriando-se de sua "inspirada obra poética". Ele
certamente não valia outro momento de inspiração grandiosa.
Além do mais, o próprio Alain havia ditado sua sentença:
uma vez que sua obra estava completa, não havia mais razão para
viver.
Entrei silenciosamente em seu quarto. Alain, ainda vestido, mas um tanto descomposto,
repousava atravessado em sua cama, ainda abraçado aos manuscritos. Uma
brisa leve soprou, vinda da janela, fazendo com que ele acordasse e levantasse
com certa dificuldade a cabeça.
- Minha doce Leanan! - gritou ele, num sacrílego francês que cheirava
a álcool e a perfume barato.
Não beberia daquele sangue, isso estava absolutamente decidido. Se tivesse
sede, procuraria saciá-la em outro lugar, mais tarde. Recostei-me no
divã e fitei-o nos olhos. Pela primeira vez, desde que me conhecera no
sarau de Monsieur Lacan, eu não lhe sorria e nem tinha uma expressão
suave no rosto. Sem mexer um só dedo ou piscar uma só vez meus
olhos, inundei os pensamentos de Alain Montrose com seus piores medos. Em sua
mente, gritavam palavras que formavam versos e rimas vulgares, poemas de mau-gosto.
Via tudo isso tomar forma diante de seus olhos. Num arroubo de esperança,
buscou na cama os manuscritos, mas o que lia escritas ali eram poesias baratas
de um escritor sem talento. Os versos materializaram-se, e começaram
a ferir a sua carne. Sentia o R a cutucar-lhe o braço, o A a entranhar-se
em seu peito. Gritava. Pegou um abridor de cartas de prata, em forma de punhal,
e passou a combater com ele o ataque das malditas letras. Mal percebia que ao
fazer isso, rasgava a própria pele.
- O que eu sou? - gritou-me Alain Montrose, atirando-se em lágrimas
aos meus pés.
- Fostes um pintor talentoso e um poeta medíocre. Hoje és menos
que um louco.
Nada podia ser pior. Não era mais nada. Então não merecia
também ser Alain Montrose. Numa fúria apaixonada, decepou a mão
direita, que tanto havia criado espetaculares obras de arte, que encantaram
a todos, quanto o havia envergonhado escrevendo aqueles versos indignos de serem
denominados poesia. Sem Arte não havia Amor, e portanto, não havia
Vida. Morreu em desespero, afogado no próprio sangue.
Recentemente, em visita a Paris, assisti a uma peça sobre a vida de
Alain Montrose, grande nome do Romantismo parisiense, mártir do Amor
inocente e puro. Sua obra é constantemente reeditada, e seus quadros
ainda hoje alcançam grandes somas nos leilões de arte.