A Garganta da Serpente
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O Carneirinho cego da irmã Leôncia

(Leila Silva)

Irmã Leôncia era a mais brava das três irmãs, entretanto nos permitia dar grama na mão ao seu carneirinho cego. Ela mesma o fazia e quando o fazia se transformava, não era mais aquela mulher carrancuda...Mulher ? Uma irmã, claro mas ainda assim mulher. É que naquele tempo não estava acostumada a pensar assim e só agora me ocorreu que a irmã Leôncia era uma mulher. Mulher como minha avó, como minha mãe. Ela tinha o rosto grave e se houvesse problemas com as crianças bastava fingir que iam chamá-la ou, em alguns casos, simplesmente ameaçar que a ordem reinava outra vez. Vi muitas vezes o sorriso prazeroso no canto da sua boca. Sorriso escondido, disfarçado, claro, já que irmã Leôncia não era dada a sorrisos. Quando sorria, assim sem sorrir de verdade, era pelo gosto de se ver temida. No fundo acho que não era nada daquilo, não tive tempo para confirmações.

A irmã Jacinta era doce e risonha e tinha uma pinta como a da Marilyn Monroe no canto da boca. Será que ela também tinha medo da irmã Leôncia ou irmã Leôncia despejava o seu mau-humor somente em cima das crianças ? Será que foi obrigada a se tornar freira, a irmã Leôncia ? Obrigada pela família ou pelas circunstâncias ? Não sei, nunca perguntei. Jamais teria coragem suficiente para isso. Se fosse a minha irmã certamente teria perguntando. Ela pergunta coisas assim e muito mais. Deu-lhe vontade de saber e ela pergunta. Pronto. Eu sou exatamente o contrário. Fico imaginando mas não pergunto e aí 30 anos depois eis me aqui a pensar na irmã Leôncia da minha infância. Leôncia. Que nome, Não ? De qualquer modo isso não tem sentido. Imagine uma magrelinha de 9 anos dizendo " E aí, irmã Leôncia, agora que já sei todos os dez mandamentos de cor, posso lhe fazer uma perguntinha ? E que eu estava aqui a ruminar sobre a sua escolha profissional, quero dizer, é uma escolha mesmo ou a senhora foi obrigada a isso de alguma forma ? Não é que não pareça uma carreira interessante, não estou criticando, imagina, é que a senhora não parece assim muito contente ". Ainda que eu não fosse uma magrelinha tímida isso seria impossível pois ela teria me interrompido antes da terceira palavra e teria apontado o meu exato papel nessa história que era o de escutar, decorar, fazer de conta que compreendia o mistério da Santíssima Trindade e calar a boca.

A irmã Aurora era magrinha, pequena e bem morena, as outras duas eram branquinhas. Dizia a irmã Aurora : " Decorem os sete pecados capitais porque o padre vem tomá-lo ". Era a prova antes da primeira comunhão. Porque cabia às irmãs ensinar e ao padre verificar o que tínhamos aprendido era um mistério tão grande quanto o Santíssima Trindade. " Quais são os sete pecados capitais, minha filha ? " " Gula, luxúria, vaidade.....Vaidade, vaidade tudo é vaidade.... "Acho que o padre nem ouvia. Ele também não primava pelo bom humor. Será que se encontravam todos nesse fim de mundo a contragosto ? Um italiano, italianíssimo, italiano no nome, na profissão, no sotaque. Duas das irmãs também eram italianas : Leôncia e Jacinta.

Além do carneirinho, irmã Leôncia tinha um grande viveiro de pássaros. Pássaros lindos e coloridos para enfeitar os seus dias sem graça. Fora do viveiro tinha uma Arara que repetia sempre : Aurora, Aurora !

A cidade era empoeirada, poeira vermelha que irritava a minha mãe. O impressionante era que quando adentrávamos a 'casa das irmãs'- nós dizíamos assim- a poeira desaparecia, era só jardim, limpeza, fontes, pássaros, frescura e o carneirinho cego que era alimentado pelas alvas mãos da irmã Leôncia. Não fosse irmã Leôncia e ali poderia ser considerado o paraíso. As vezes as aulas de catecismo aconteciam na igreja, outras na casa das irmãs. Na igreja também eu não me sentia mal. Era igualmente limpo e fresco. Os lugares mais frescos da cidade. Na casa das irmãs era ainda melhor porque tinha a grama e o carneirinho cego.

As irmãs tinham uma perua verde, de um tom muito indiscreto e elas mesmas a conduziam. As únicas mulheres, posto que mulheres eram, a dirigirem na cidade. Tinham por isso um ar de liberdade, de quem não esperava a decisão de homem nenhum. Ou será que o frei decidia ? Frei Giovanni que perguntava : " O que é extrema unção, minha filha ? " Acho que não dizia minha filha. Desfiava uma listinha de perguntas que tinha lá na cabeça e pensava em outra coisa enquanto respondíamos. Depois era a vez de inventar uns pecadinhos sem graça de criança e de ir rezar umas ave marias.

No dia da primeira comunhão, comunguei sabendo de cor cada pecado capital assim como todos os dez mandamentos. O gosto da hóstia não era novidade para mim, eu já conhecia porque o tio Pedrinho, que na verdade era tio da minha mãe e irmão da minha avó, me deixou experimentar alguns pedaços. Ele assistia o padre no seu ofício. Os pedaços que experimentei não tinham sido benzidos pelo padre evidentemente, senão não se podia. Entretanto o gosto que tinham antes de serem benzidas e depois era o mesmo, nada mudava depois da benzição do padre. O corpo de Cristo tinha sempre o mesmo gosto insonso e sempre colava no céu da boca. Acho que não é 'benzer' que se deve dizer, mas sim 'consagrar'. E o Frei Giovanni consagrava com muita má vontade.

Sobrou aqui uma foto da primeira comunhão. De um lado o Frei Giovanni, de outro a sorridente irmã Jacinta, de outro a diretora da escola onde eu estudava e no meio disso tudo, eu, vestida de branco. Acho que foi tudo o que sobrou.

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