A Garganta da Serpente
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Três minutos do pródigo

(Luis Rafael Montero)

"Tendo ele gastado tudo, houve naquela
terra uma grande fome, e começou
a padecer necessidades.
"
Lucas 15:14 - Bíblia Sagrada

Enquanto a água esquenta, e logo vai arder, penso em minha mãe. A última vez que a encontrei lembro sua voz do outro lado do telefone, "Seu pai morreu", toda encolhida o som de cansaço e desconsolo. E mesmo depois não a vi. Me vejo esquecido, numa ilha minha ilha, e sei que para ela não sou, não é assim, ela sempre me diz, e diz sempre as mesmas coisas, eu escuto.

Os braços cruzados assisto ao calor na água, preciso fumar. O cigarro ajuda a cabeça, estraga o pulmão, paciência. Mamãe, não a chamo assim desde o dez anos talvez, agora é a lembrança. Posso até imaginar a velhinha, de joelhos no chão rezando suas orações diárias com tanto apego e o resto de fé. A resignação abala as pessoas, e a solidão. Posso até lembrar sua voz automática, dizia coisas para mim, dizia pérolas para o meu coração como se fosse um terreno fértil uma terra boa e não a lama dos porcos. Talvez não fosse, talvez não seja. Ela sempre diz a bíblia, e sempre as mesmas coisas, e eu, paciência.



A água passa a ferver, arde. E a brasa do cigarro acende, e eu trago. Acredita ainda no seu Deus, acredita ainda no seu Filho. E sabe só crer, acredita e mais nada, esperando o único de seu ventre retornar, como uma profecia.

Um lugar para bater as cinzas, serve aqui. As primeiras bolhinhas na água me levam, quem é o fanático?, quem é o crente?, quem é o Deus? Minha mãe tem seu próprio Deus, talvez o mais conhecido de todos, o maiúsculo, e o mais acreditado. Eu tenho meu próprio deus, um em vários, atroz devastador: deus de fato. Deuses iguais, que trazem nas mãos bênçãos, e feridas. E esse eco de mamãe sai de minha boca.

A água fervida, a fome, arde: hora do macarrão instantâneo na panela - dos mais baratinhos, porque tudo tem preço e valor. Até deus e o seu amor e o seu perdão. Até a fé e a sua falta. E seguir para onde? Alguns chamam de dízimo: ofertado. Alguns chamam de vício: absorvido. Não passam de nomes. Vindos do hábito, como de costume, são preços, cada um com seu custo, paciência, se não te arrebentam o pulmão é a cabeça, o que vai dentro da cabeça, e as costas e os ombros e o peso que te jogam, e com o muito que podem comprar, mesmo que seja caro demais, mesmo que seja pouco demenos. Três minutos, diz a embalagem. Preciso decidir.

Na geladeira não encontro o queijo para incrementar o sem gosto da hora do jantar. É preciso economizar, mesmo que não haja mais nada. Decido, antes mesmo de despejar o insosso pozinho e misturar o repasto de sempre. Como, mastigo, engulo. E depois do cigarro ajeito uma pequena mochila e me ponho no caminho, deixo Patmos sem querer, necessidade a voz precisa calar. Vou atender as preces de mamãe. Serei seu milagre, o fruto de sua crença. Quase me envergonho.

Três dias. A água fervida. E eu de volta. Três minutos, diz a embalagem. Não fui o pródigo que se esperava. A falta de fé, na fé de mamãe, e o apego à minha, me fizeram retornar. E a dor nos ouvidos. Três dias. E comigo minha oferta, guardada em notas pequenas na gaveta de meias do pai e agora oferecida toda ao meu deus.

O macarrão na água quente. O cigarro queimando esquecido no canto da boca. A panela de lado. A colher arde no fogo. Minha fé arde no corpo. Bem-aventurados os pobres de espírito, os que sofrem, os que têm fome. Sempre as mesmas coisas. A veia esticada. A agulha certeira. A pele picada. De joelhos no chão. Um pagão entregue e vencido. E o meu Deus. E as minhas visões miraculosas. E ainda posso ouvir não quero é automático. Olhai para ele, e sede iluminados.

Posso ver o Deus, não o de mamãe - o meu próprio deus.

Quietinha.

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